Por João Peres, para O Joio e o Trigo.
O feudo digital de Elon Musk despertou em polvorosa. A trilha de choros incontroláveis e aplausos eufóricos leva à resposta: Elis voltou. O que a terá feito deixar a casa no campo do eterno descanso para retornar a um mundo que tem mais mortos-vivos do que vivos? Um novo dueto com Tom? Uma nova repulsa à ditadura? Uma nova guerra contra as tradições e os costumes?
Elis retornou por um motivo mais comezinho: vender a nova kombi. Elétrica. A onda de euforia foi causada pelo encontro com a filha Maria Rita. Em um comercial da Volkswagen. Sem uísque nem guaraná, ainda sem ter digerido a privatização dos cemitérios de São Paulo, começo a pensar qual o mecanismo social que permite a alguém mercantilizar a voz e a memória (neste caso, a lindíssima memória) do finado parente. E me deparo com a constatação de que não há cova que o neoliberalismo não consiga cavar em busca de mais alguns vinténs.
Meu coração traiçoeiro, descompasso de horror, precisou de mais alguns centímetros de rolagem para chegar a uma nova tuitada emocionada. É Janja. E leio uma, duas, dez vezes para entender se bem entendi: a primeira-dama está entusiasmada com uma publicidade da Volkswagen. Uma liderança política de um país como o Brasil, celebrando uma jogada de marketing de uma corporação acusada de envolvimento com o nazismo e associada à ditadura de 1964. Começo a pensar, agora, qual o mecanismo social que permite desconectar os pontos e esvaziar de sentido nossa memória coletiva, nossas vítimas, nossas dores.
A mesma Janja que se insurgiu contra a ideia de que corporações pagassem impostos – já pensou que absurdo se vira moda cobrar tributos de quem conduz ao fechamento dos postos de trabalho no país? Enquanto Marias e Clarices choram as milhares de pessoas vitimadas por corporações públicas e privadas, Janja chora o encontro promovido por inteligência artificial.
O problema dos nossos tempos, Janja, não é Jair Bolsonaro. São as corporações. O poder privado, tão absurdamente desproporcional, é o grande problema do século 21. Jair Bolsonaro é apenas uma expressão corporativa da necessidade de criar regimes de extrema-direita para dar sustentação a uma agenda sem igual de apropriação de renda. O marido de Janja, aliás, é, tristemente, cada vez mais uma outra expressão corporativa dessa mesma necessidade – e me lamento que a inteligência artificial não tenha dado conta de criar aquilo que Lula nunca foi, salvo em nossos sonhos mais lindos.
Ao ignorar o estado da arte de nossos tempos, o governo de seu marido é como se fosse… um comercial da Volkswagen na voz da Elis Regina. Pode servir para chorar, é verdade, mas cada vez nos leva a voos mais baixos. Já não há ideias em disputa: governar é, agora, usar as redes sociais como termômetro, os emojis como tomadores de decisão e o shopping center virtual como expressão máxima de alegria.
A publicidade da Volkswagen é só uma entre milhares de manifestações diárias de nosso vazio existencial. Já não há limites para produzir lucro. Não há finado parente que esteja a salvo. Não há escândalo que não seja transformado em guerra de narrativa. Não há passado sombrio que não seja apagado por uma bela campanha de marketing.
Na narrativa do capítulo final do lulismo (espero, de coração partido, que seja o final), CLT vira MEI, fome se resolve com empreendedorismo e luta de classes se dissolve no consumismo.
A kombi de Janja atropelou o carrinho de rolemã da esquerda quando colocou a realização individual pelo consumo à frente da cobrança de impostos que nos garantam serviços. Não se trata de construir cidadania e igualdade, mas de garantir uma mísera descarga de hormônios na compra online de quem não tem nem para o feijão.
Na verdade, já não se trata de simplesmente isolar e ridicularizar o pensamento de esquerda: é qualquer ideia de mudança que fica jogada ao escanteio. A própria razão de existência do Estado entra em jogo. Ficamos satisfeitos em trocar o teto de gastos pelo arcabouço fiscal e o orçamento secreto pelo orçamento do relator.
Nosso imaginário de dias melhores foi apagado pela enxurrada de rebrandings, ativações de marca e marketing de causa. Se Elis sonhava com a volta do irmão do Henfil, Maria Rita se contenta com muitos menos. Ao mercado dizemos amém, a Arthur Lira dizemos talvez, aos pobres dizemos não.
A voz murmurante de Dilma, nesse caso, sempre esteve certa: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.”
Lula, ainda apegado à ideia de conciliação de classes, discursa ora sobre comunismo, ora em prol do agronegócio, mas o que oferece a um e a outro dá a medida das coisas. É o equilibrista sofrível de desequilíbrios insanáveis. “A outra polêmica, que eu acho maluca, é o pequeno proprietário e o agronegócio. Olha, são duas coisas totalmente necessárias ao país. Não há rivalidade, não há por que o preconceito do grande contra o pequeno ou do pequeno contra o grande.”
Nessa versão renovada do mito da democracia racial, Lula pede aos escravizados que não tenham preconceitos contra os latifundiários. Que Celso Furtado e Chico Mendes sentem para tomar café com Joesley Batista e Boris Casoy. Que os bóias-frias espantem a tristeza com uma birita enquanto sonham com o bife a cavalo que jamais chegará. Que as vítimas da Volkswagen engulam o orgulho dirigindo uma kombi – elétrica, é sempre bom enfatizar.
Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos. E vivemos muito pior do que nossos pais. Menos Maria Rita, com seu falso brilhante. Nós, com um torturante band-aid mental, torcemos por um lugar no rabo de foguete de Elon Musk. Elão, onde você parar, pra mim, tá bão. Se puder armar uma rede (não de wi fi), já vivo feliz.
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