A “Jihad” de Edward Snowden

edward-snowden-escritos

Por Mark LeVine.

Assumamos, para argumentar, que o sentinela-apitador [orig. whistleblower ] da Agência de Segurança Nacional dos EUA Edward Snowden é o personagem que criou para ele mesmo: não mero patriota, mas um humanista, que se fartou de viver preso nas armadilhas de uma vida de sucessos, e decidiu que “a federação das leis secretas, julgamentos sem igualdade de direitos e poderes executivos absolutos que governam o mundo que eu amo têm de vir à luz, nem que seja só por um momento”.

Snowden, 29 anos, que vazou para o jornal The Guardian informações cruciais sobre o governo de vigilância clandestina que os EUA impõem ao mundo, mediante programas como PRISM e o “Informante Sem Limites”, acerta, com certeza, ao lançar luz sob o perigo que são as políticas de vigilância impostas ao mundo pelo governo Obama e a “guerra global ao terror” à qual servem aquelas políticas, e perigo não só para a democracia norte-americana mas, igualmente, para “o mundo inteiro”.

Os EUA engajaram-se numa jihad de proporções globais, não apenas nos dez últimos anos, mas, de fato, há mais de um século. Como em todos os impérios, no islâmico também, a jihad dos EUA começou pequena, mas rapidamente se expandiu, a partir do momento em que as condições políticas e econômicas que habitavam no coração do projeto e nas periferias afinal entraram no alinhamento adequado.

Como se viu em outros impérios, os jihadistas norte-americanos buscaram suas raízes nas ideologias mais agressivas, que justificaram a disseminação, apresentada simultaneamente como inevitável e boa, enquanto – e não surpreende que assim tenha sido – apresentavam as oposições como irracionais, más e condenadas justamente a serem suprimidas pelos meios necessários. Como disse no século 19 o pregador protestante e arqui-imperialista Josiah Strong, o emergente império norte-americano era destinado por Deus a governar a Terra, e o resto do mundo que se preparasse para “pronta e submissa assimilação”, ou seria “extinto”. Pelo menos na retórica, os grandes conquistadores islâmicos sempre tenderam a ser, no mínimo, mais generosos que isso.

Claro que os líderes norte-americanos sempre cuidaram de declarar a melhor das intenções, enquanto iam ocupando novos territórios, entrepostos ou esferas de influência, mesmo que a coluna de cadáveres de colonizados só aumentasse, já alcançando a casa dos muitos milhões, resultado da avançada para expandir, manter e defender o império norte-americano. As linhas entre jihad de defesa e jihad de ataque – e os EUA, como muitos países antes deles, desde sempre defenderam suas guerras como guerras de defesa, sancionadas por Deus e justas “em si” – foram sempre convenientemente confundidas. “Converter infiéis” – pela espada ou pelo napalm, sempre foi ação inseparável de proteger as fronteiras do império.

Para garantir que o povo norte-americano visse as aventuras externas de seus governos sob a luz adequada, era normal que o inimigo fosse definido como o contrário de tudo que os EUA defendiam, e como ameaça mortal ao modo de vida e, até, à existência dos EUA.

E é também verdade que, assim como no apogeu dos grandes impérios muçulmanos, e nos dias do pós-guerra e auge do poder dos EUA, a vida, sob o guarda-chuva imperial, quase sempre se comprovou muito melhor que as alternativas – pelo menos para os aliados íntimos e para os que viviam em semi (e, portanto, ainda não absolutamente exploráveis) periferias.

A ascensão do neoliberalismo 

Mas essa dinâmica mudou, com a emergência do capitalismo neoliberal como forma dominante da organização econômica, política e até cultural nos anos 1970s – não só no chamado “terceiro” mundo, mas também nos países centrais do “ocidente”. O neoliberalismo criou uma dinâmica de neocolonização dentro dos EUA e de outros países “maduros”, tanto quanto no mundo em desenvolvimento, com o capitalismo – mais uma vez! – tornando-se tão predatório dentro das fronteiras norte-americanas, quanto longe delas. Cá e lá se assistiu a um crescimento econômico feito pela concentração sempre maior do poder das corporações e à custa de continuado crescimento da pobreza e da desigualdade.

As empresas titãs, que já dominavam a economia dos EUA e sua respectiva cultura obcecada por celebridades – “gênios” da tecnologia e czares do complexo industrial-militar – são, como se deveria esperar que fossem e não surpreende que sejam, precisamente as mesmas empresas que vivem hoje amancebadas no mesmo leito com os programas que Snowden revelou ao mundo.

O desejo dos EUA de estabelecer a “dominação de pleno espectro” sobre todos os negócios do mundo, imediatamente depois do colapso do bloco soviético, militarizou-se definitivamente depois do 11/9/2001. A “Guerra ao Terror” – a jihad essencialmente ofensiva e automaticamente “justificada” – ofereceu a justificativa básica para a ânsia de acumular cada vez mais poder, poder “panopticônico”, como Snowden o descreveu, recolhendo a análise que Michel Foucault desenvolvera, de uma máquina radical de controle político criada por Jeremy Bentham no final do século XVIII.

Essa aparente dominação, ou, no mínimo, a ideia dessa dominação, converteu-se em componente núcleo de todo o aparato de inteligência dos EUA, produzindo visível maioria de relatórios de inteligência, que viria a alimentar o processo diário de tomada de decisões políticas ao longo dos anos, a partir da constituição e utilização dos programas que Snowden revelou.

É nesse ponto que a ideia de jihad torna-se relevante para a história de Snowden. Assim como todas as doutrinas da guerra são usadas e abusadas por seus expoentes, assim também a jihad foi usada e abusada por muçulmanos desde sempre, desde que existe o conceito. Mas, ainda assim, o conceito é altamente relevante na situação na qual, num certo momento, gente como Snowden, Bradley Manning e outros “sentinelas-apitadores” de consciência [orig. whistleblowers] descobrem-se enredados.

O conceito de jihad tem raízes – tanto gramaticais quanto teológicas – no conceito de luta e empenho pessoal e comunitário pelo aprimoramento.

É verdade que, no período clássico do Islã, essa conotação estava ampla e diretamente associada à guerra, e incontáveis intelectuais islamistas, ao longo das eras, tenderam a desqualificar a interpretação segundo a qual o Profeta Maomé estabelecia diferenças entre uma jihad menor (violenta) e uma jihad maior (espiritual/pessoal). Mesmo assim, na era moderna, a noção de jihad “da língua” ou “da pena”, assim como a ideia de jihad como jornada pessoal e comunitária para o aperfeiçoamento, tornou-se cada vez mais importante em várias linhas do discurso político muçulmano. Essa interpretação chegou até a ser usada para justificar e explicar os levantes árabes, como brotaram, inicialmente – em modalidades relativamente não violentas – na Tunísia e no Egito.

A explicação de Snowden para suas ações deixam entrever alguém que perdeu toda a fé no sistema para sanar injustiças mediante meios democráticos, legislativos, normais. Como disse em entrevista ao The Guardian, ele esperou durante anos que os líderes políticos dessem atenção à tendência potencialmente fatal de esterilizarem-se todas as principais liberdades constitucionais. Até que, afinal, se deu conta de que:

(…) não se pode viver à espera de que outros ajam. Eu esperei que os políticos agissem. Mas acabei por perceber que liderança só tem a ver com ser o primeiro a fazer alguma coisa.

 bradley-manning-edward-snowden

BradleyManning Edward Snowden

Como Bradley Manning, talvez com mais sofisticação, Snowden percebeu que o único modo de existir num estado dedicado a assaltar todas as liberdades civis dos cidadãos teria de ser, bem literalmente, declarar sua pessoal jihad contra aquele estado.

Uso aqui o termo jihad, em vez de guerra, porque Snowden, claramente, não declarou guerra alguma; não está usando nenhum tipo de violência contra o estado norte-americano. De fato, é exatamente o oposto disso.

Mas Snowden retirou-se, afastou-se completamente, do campo da ordem e do poder do estado ao qual, literalmente, ele jurara fidelidade; pôs-se fora do alcance das leis daquele estado, e, essencialmente, declarou jihad moral, política e ideológica contra todas as mais importantes políticas daquele estado. Nesse sentido, há muito de traição em suas ações – mas só trai um sistema que, ele próprio, e essencialmente, já traiu os cidadãos e já declarou guerra contra todos os mais altos ideais, sem os quais já não há Estados Unidos da América.

Que Snowden tenha declarado sua jihad pela pena e pela língua, não pela proverbial espada, combina muito bem com uma interpretação moderna/progressista de jihad, e o põe, com honra, no campo da vanguarda da Primavera Árabe – de todos que se recusaram a participar de um sistema que, afinal, perceberam como irremediavelmente fracassado. Como o próprio Snowden disse:

O governo atribui-se um poder que não tem direito de exercer. Não há supervisão pública. O resultado disso é que gente como eu tem espaço para ir muito além do que lhe é permitido ir.

É claro que o governo Obama dirá que Snowden não tem o direito de se autoatribuir esse tipo de poder. Só líderes eleitos teriam esse poder, em sociedade democrática. E, como todos, do diretor da Segurança Nacional aos deputados e senadores das comissões de Inteligência já estão argumentando, por menos que gostemos das tais políticas, todas elas foram legitimamente votadas e aprovadas pelos legítimos representantes do povo dos EUA.

Talvez até seja verdade, embora, como Jim Sensenbrenner, congressista e principal autor da Lei Antiespionagem [orig. Patriot Act] (documento que dá base legal para toda a vigilância clandestina que Snowden revelou) argumenta, o que está sendo feito, de fato, implica “abuso da lei” e está sendo feito sem consulta à maioria dos representantes do povo no Congresso. Mas o que Snowden e Manning afinal perceberam é que o sistema está tão grave e perigosamente fraturado que teriam de se autossacrificar, eles mesmos, se preciso fosse, para fazer parar o crime repetido. Porque não poderiam continuar a viver, eles com eles mesmos, se não agissem como agiram.

Alguns poucos homens valentes 

É altamente instrutivo que a coragem de uns poucos homens valentes como Bradley Manning e Edward Snowden tenha causado maior dano à hegemonia do poderoso e sempre bem entrincheirado aparato de guerra dos EUA, que até hoje ninguém conseguiu ameaçar tão gravemente quanto eles, que legiões de soldados da al-Qaeda, inspirados por ela, ou de terroristas treinados. A verdade é que Snowden não se deixou intoxicar pelo gigantesco poder que tinha ao alcance dos dedos. Em vez disso, cuidou de selar a fonte – e essa é ação de altíssimo potencial revolucionário, a ser aprendida por outros que queiram seguir seu chamado. Snowden é jihadista autêntico, grande homem de jihad profunda.

Se dois trabalhadores relativamente inferiores na hierarquia da inteligência, como Manning e Snowden, têm acesso a informação tão crucial para tantas das políticas do governo de seu país, e às mentiras e meias verdades sobre as quais aquelas políticas baseiam-se, imagine-se o que podem fazer 20 ou 200 Snowdens, 20 ou 200 Mannings. Podem, sim, arrancar milhões de norte-americanos dos seus sofás e pô-los nas ruas, a exigir o tipo de reforma política para a qual, até hoje, nenhum político foi realmente empurrado, queira ou não queira reformas.

Ninguém é obrigado interpretar como jihad a luta de Snowden, mas, depois de mais de uma década de desastrada e sangrenta “guerra ao terror” contra o mundo muçulmano, jihad é uma bela palavra para definir esse tipo de decisão político-pessoal vital.

Escolha-se, para definir, qualquer outra palavra, e nada muda: esses dois homens mostraram ao governo, à inteligência norte-americana, às burocracias militar e empresarial em todo o mundo que, sim, eles também têm voz e têm escolhas. Que absolutamente não estão condenados a viver como parafusos de uma máquina de opressão. Que obedecer a governo opressor não é a única escolha que resta a ninguém – por mais alto que seja o preço a pagar.

Resta-nos esperar que mais alguns bravos, pelo menos, se inspirem na ação de Manning e Snowden, esses dois pioneiros.

[*] Mark LeVine é professor de história do Oriente Médio na Universidade da Califórnia-Irvine e professor visitante ilustre no Centro de Estudos do Oriente Médio na Universidade de Lund, na Suécia e autor do livro sobre as revoluções no mundo árabe: The Five Year Old Who Toppled a Pharaoh.

 Al-Jazeera, Qatar Edward Snowden’s jihad

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here


This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.