A inocência dos jornalistas

Por Bruno Carmelo*.

Trabalhando com jornalismo cultural e crítica de cinema, chegou o inevitável momento em que tive que me perguntar se deveria tratar, e como deveria tratar, da polêmica em torno do filme Innocence of Muslims (“Inocência dos muçulmanos” em tradução literal).

Para quem ainda não leu a respeito, trata-se de um longa-metragem amador, apresentado na Internet como um curta-metragem de 13 minutos, ridicularizando a figura do profeta Maomé. A produção é precária, e o roteiro acusa seu personagem principal de pedofilia e abuso de mulheres. Muitos atores foram enganados, com suas falas substituídas, através de dublagem, por frases intolerantes. A revolta em diversos países islâmicos foi instantânea, gerando ataques a embaixadas americanas e assassinato de um diplomata.

Se é eticamente simples abordar a questão de um ponto de vista político (pela condenação de sua mensagem), a situação fica mais complicada quando se pensa em uma abordagem cultural. O jornalista deveria ignorar o filme, para não fomentar ainda mais uma polêmica intolerante e extremista? Ou pelo contrário, relatar os fatos com detalhes, porque “as pessoas têm o direito de saber”, como sempre insistem os jornalistas, ou simplesmente pela crença de que esconder a informação nunca é uma posição ética correta?

Fui pesquisar a postura adotada pelos colegas de profissão, e os resultados não poderiam ser mais diferentes. Gigantes europeus como o AlloCiné preferiram simplesmente ignorar o tema, como se nada tivesse acontecido. Já o Hollywood Reporter, apesar deste nome que sugere uma ligação direta com o mercado, dedicou-se com afinco a esta obra não comercial e criou um extenso dossiê, atualizado diariamente. Neste caso, apenas mensagens críticas ao filme foram produzidas e publicadas. O IMDB adotou uma postura intermediária, e curiosa: preferiu fazer notícias frequentes sobre o assunto, mas não criar uma ficha da produção em sua extensa base de dados. Fala-se portanto em uma obra que não tem traços no próprio site. Um filme-fantasma.

A dúvida ética está sendo levantada para a questão de um curta-metragem em particular, mas poderia ser feita em geral para as imagens de violência doméstica, de atos ilegais filmados com câmeras secretas, de cadáveres em cenas de acidente e outros. Qual é o limite entre informar sobre um ato condenável e disseminar esta ideia condenável? Ou seja, a partir de quando o fatual torna-se ideológico?

Logicamente, a questão é complexa, e este curto artigo não tem a pretensão de oferecer uma resposta. Talvez o mais importante seja procurar as boas perguntas. No meu caso particular, apesar de não discordar profundamente das posições de outras mídias, acabei criando uma ficha na base de dados sobre o curta-metragem, sem disponibilizá-lo para a visualização. Se alguém realmente quiser vê-lo, não terá muita dificuldade em encontrar estas imagens, e julgar por si mesmo. O meu papel foi de certo modo imortalizar este produto como um filme qualquer, com direito a título, sinopse e, logicamente, comentários sobre a polêmica que originou. Por mais execrável que seja Innocence of Muslims, ele também é um filme, e merece ser registrado, mesmo que seja pelo contraexemplo que constitui.

Por fim, talvez a ética jornalística tenha sido preservada, mas fica clara a dificuldade em retratar aspectos polêmicos como esse. O jornalista deve supor que ele tem poder o suficiente a ponto de influenciar as pessoas? Seria arrogante ou inocente pensar desta maneira, principalmente quando ele não trabalha em um jornal de grande circulação (como é o meu caso)? Ou então, ele aceita que as suas informações se misturem na cabeça do leitor, na massa de textos e artigos disponíveis, e componha apenas uma voz indistinta na multidão?

O jornalismo pode ser, em alguns momentos, uma profissão amarga.

* Editor do Discurso-Imagem.

Fonte: http://www.outraspalavras.net

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