A infância, o território da imaginação. Por Marco Vasques

O escritor Viegas Fernandes da Costa disse que “escolher um livro para uma criança exige muita responsabilidade”. Num país racista, misógino, homofóbico e eivado de violência e preconceito, isso é um ato de muita responsabilidade.

Imagem: Andrea Honaiser.

Por Marco Vasques, especial para o portal Desacato

Estamos em plena Semana Nacional do Livro Infantil. Há, no curso de
nossas vidas, uma curva muito estranha de entender, pois, quando somos
crianças, estamos mergulhados no mundo da fantasia, da descoberta e, por
conseguinte, abertos às experiências de forma plena. Fôssemos resumir,
poderíamos dizer que, quando estamos na infância, temos a capacidade de
executar a real tarefa do poeta, isto é, ver o mundo sendo afetado por ele,
unindo imaginação, sonho e invenção para se relacionar com a realidade.

Ver o mundo é muito diferente de olhar o mundo. Parece que, com o
tempo, vamos perdendo a capacidade de ver com os olhos livres, como exige o
poeta Oswald de Andrade, e passamos apenas a olhar os encantos do mundo
quase sempre direcionados por interesses que suprimem nossas fantasias,
nossos universos feéricos, lúdicos e mágicos. Na prática, para não me estender,
quando criança, via de regra, gostamos dos livros. Contudo, no decorrer de
nossa formação, começamos a nos afastar deles. Não à toa o índice médio de
leitura de um adulto brasileiro não ultrapassa o de quatro livros por ano.

No ensaio “O poeta e o fantasiar”, Freud já anunciou que o poeta faz o
mesmo que uma criança que brinca. E aqui entra a primeira questão
importante, pois, com o passar do tempo, a educação e a leitura passam a nos
ser apresentada com um fim instrumental. A pergunta “o que você vai ser
quando crescer?”, imposta a todos nós, é de uma crueldade sem fim. A pergunta
retira a nossa dimensão humana, pois nega a ideia de que uma criança já é um
ser pleno, completo e vivo de desejos. Não apenas isso, tal questionamento
coloca no futuro a ideia de ser. Para fazer mais um resumo, passamos a ser
quando estamos bem agasalhados na cadeia do trabalho, quando nossos desejos
e corpos estão a serviço do capital e quando somos alguém que produz algo
exigido pela sociedade. Nesse contexto, só se pode inventar dentro da lógica
capitalista; por isso tanto dinheiro investido em mecânica e tecnologia, por
exemplo. Essa visão instrumental da leitura, da educação e da vida leva nossos
corpos, desejantes por princípio, a ser cooptados e irmanados à condição de
máquina a serviço do capitalismo.

Não faz muito tempo o escritor Viegas Fernandes da Costa disse que
“escolher um livro para uma criança exige muita responsabilidade”. Num país
racista, misógino, homofóbico e eivado de violência e preconceito, isso é um ato
de muita responsabilidade. Sim, conteúdo também é forma, embora tenha
muita gente estudada que pense o contrário.

A reflexão acima, pode não parecer, se constitui num elogio ao livro Voar
na Imaginação, escrito por Celso Vicenzi e ilustrado pela artista Andrea
Honaiser. O leitor mais exigente poderá, num primeiro momento, pensar que o
título da obra é um tanto comum, por se tratar de uma expressão bastante usada
no dia a dia. Se, como disse outro poeta, “poesia é voar fora da asa”, o livro faz
um convite para a gente ver, ler e ouvir a poesia dentro da asa. Trazer uma
expressão tão usada no cotidiano para o título poderia ser uma demonstração de
fragilidade; contudo, Vicenzi, notável jornalista com morada no humor, é um
artista provocativo. Quem acompanha sua escrita sabe, quem não acompanha
passará a saber!

A partir de nomes de pássaros, a obra coloca o leitor dentro de uma
floresta em que os voadores travam uma conversa. São 48 espécies brasileiras,
todas pintadas em aquarela por Honaiser. Entre a poesia e o bom humor do
texto, os desenhos se impõem, altivos, como o são o voo e a beleza dos pássaros.
Aos poucos os nomes das aves ganham labor narrativo, que resulta num diálogo
lúdico e engraçado. Estamos diante de um livro que brinca e propõe a
brincadeira como descoberta. Após as 56 páginas da obra, publicada pela Arte
Editora, há um QR Code que dá acesso a um site onde é possível ouvir o canto
de cada um dos pássaros que figuram em Voar na Imaginação.

É fato que estamos cada vez mais distantes da natureza e corremos risco
real de, em breve, não termos motivos para nos orgulhar dos rumos que
escolhemos para o nosso planeta. É o próprio Vincenzi quem alerta isso:
“Atualmente, a maioria das crianças vive em cidades e tem limitado contato com
a natureza. Até mesmo adultos, como eu, conhecem pouco sobre toda a imensa
riqueza de flora e fauna do País. Os pássaros, por sua beleza de cores e cantos,
nos levam a embarcar num voo de imaginação, humor e surpresas.”

Surpresa terá o leitor ao ler, ver e ouvir Voar na Imaginação. Mais
surpreendente ainda é que a dupla Celso Vicenzi e Andrea Honaiser já
anunciaram que o livro é apenas o primeiro de uma coleção que será composta
de cinco volumes que adentrarão nas florestas e nos mares de nossas
imaginações. Sim, estamos na Semana Nacional do Livro Infantil, então, é só
voar e procurar sua imaginação. E, sim, Viegas tem razão: escolher um livro
para jovens e crianças exige muita responsabilidade, muita! No entanto, para
voltar ao início do texto, lembrem-se de que um livro precisa estar livre da visão
instrumental que alimenta a competição, o acúmulo e que vive a serviço do
capital. A infância é o território da imaginação libertadora. Respeitar e preservar
esse território pode ser uma saída para esse labirinto agônico no qual nossa
sociedade mergulhou!

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