“Na história da indústria da mentira, parte integrante do aparelho industrial militar do imperialismo, 1989 é um ano de viragem. Nicolae Ceausescu ainda está no poder na Roménia. Como derrubá-lo? Os meios de comunicação ocidentais difundem de modo maciço junto à população romena informação e imagens do “genocídio” cometido em Timisoara pela polícia por indicação de Ceausescu.”
Texto de 2013 do italiano Domenico Losurdo que segue atual.
OS CADÁVERES MUTILADOS
O que acontecera na realidade? Beneficiando da análise de Debord sobre a “sociedade do espectáculo”, um ilustre filósofo italiano (Giorgio Agamben) sintetizou de modo magistral a história de que aqui se trata:
“Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres sepultados ou alinhados sobre mesas das morgues foram desenterrados às pressas e torturados para simular frente às câmaras o genocídio que devia legitimar o novo regime. O que o mundo viu em directo como verdade real, no écran da televisão, era a não verdade absoluta. Embora a falsificação fosse óbvia, ela todavia era autenticada como verdadeira pelo sistema mundial dos media, porque estava claro que agora a verdade não era senão um momento do movimento necessário do falso. Assim, a verdade e a mentira tornaram-se indiscerníveis e o espectáculo legitimava-se unicamente mediante o espectáculo.
Timisoara é, neste sentido, a Auschwitz da sociedade do espectáculo: e como já foi dito que depois de Auschwitz é impossível escrever e pensar como antes, da mesma forma, depois de Timisoara não será mais possível ver um écran de televisão do mesmo modo” (Agamben, 1996, p. 67).
No ano de 1989 a transição da sociedade do espectáculo para o espectáculo como técnica de guerra manifestou-se à escala planetária. Algumas semanas antes do golpe de Estado, ou seja, da “revolução Cinecittà” na Roménia (Fejtö 1994, p 263), a 17 de Novembro de 1989, a “revolução de veludo” triunfava em Praga agitando uma palavra de ordem de Gandhi: “Amor e Verdade”. Na realidade, um papel decisivo coube à divulgação da notícia falsa de que um aluno fora “brutalmente assassinados” pela polícia. Vinte anos mais tarde, revela satisfeito um “jornalista e líder da dissidência, Jan Urban”, protagonista da manipulação: a sua “mentira” havia tido o mérito de suscitar a indignação em massa e o colapso de um regime já periclitante (Bilefsky 2009).
Algo semelhante acontece na China: em 08 de Abril de 1989 Hu Yaobang, secretário do PCC até há um par de anos, sofreu um enfarte durante uma reunião da Comissão Política e morreu uma semana depois. Para a multidão na Praça da Paz Celestial a sua morte está ligada ao duro conflito político verificado no decorrer naquela reunião (Domenach, Richer, 1995, p 550.), De qualquer modo ele se torna vítima do sistema que se tenta derrubar. Em todos os três casos, a invenção e a denúncia de um crime são chamados a suscitar a onda de indignação de que o movimento de revolta tem necessidade. Se se consegue o êxito completo na Checoslováquia e na Roménia (onde o regime socialista havia-se seguido ao avanço do Exército Vermelho), esta estratégia falhou na República Popular da China que brotou de uma grande revolução nacional e social. E aqui é que tal fracasso se torna o ponto de partida de uma nova e mais maciça guerra mediática, que é desencadeada por uma superpotência que não tolera rivais ou potenciais rivais e que ainda está em pleno desenvolvimento. Fica definido que o ponto da viragem histórica está em primeiro lugar em Timisoara, “a Auschwitz da sociedade do espectáculo”.
A “ANUNCIAR BEBÉS” E O CORVO MARINHO
Dois anos depois, em 1991, verificou-se a primeira Guerra do Golfo. Um corajoso jornalista estado-unidense explicou como se deu “a vitória do Pentágono sobre o media”, ou seja, a “derrota colossal dos media por obra do governo dos Estados Unidos” (Macarthur 1992, pp. 208 e 22).
Em 1991, a situação não era fácil para o Pentágono (nem para a Casa Branca). Tratava-se de convencer da necessidade da guerra um povo sobre o qual ainda pesava a memória do Vietname. E então? Espertezas várias reduziram drasticamente a possibilidade de jornalistas falarem directamente com os soldados ou reportarem directamente a partir da frente. Na medida do possível, tudo deve ser filtrado: o fedor da morte e sobretudo o sangue, o sofrimento e as lágrimas da população civil não devem invadir as casas dos cidadãos dos EUA (e dos habitantes do mundo inteiro) como no tempo de guerra Vietname. Mas o problema central mais difícil de resolver era outro: como demonizar o Iraque de Saddam Hussein, que ainda há alguns anos era considerado digno aos olhos dos EUA, agredindo o Irão que brotara da revolução islâmica e anti-americana de 1979 e inclinado a fazer proselitismo no Oriente Médio. A demonização teria sido muito mais eficaz se ao mesmo tempo a sua vítima fosse angelical. Operação nada fácil, e não apenas pelo facto de no Kuwait ser dura e impiedosa a repressão de todas as formas de oposição. Havia algo pior. Para executar as tarefas mais humildes os imigrantes eram sujeitos a uma “escravatura de facto” e uma escravatura de facto que muitas vezes assumia formas sádicas: não despertou particular emoção casos de “servos arremessado a partir do terraço, queimados ou cegados ou espancados até a morte ” (Macarthur 1992, pp. 44-45).
E ainda assim… Generosamente ou fabulosamente recompensada, uma agência de publicidade encontra remédio para tudo. Essa denunciou o facto de que os soldados iraquianos cortavam as “orelhas” dos kuwaitianos que resistiam. Mas o golpe de teatro desta campanha era outro: os invasores haviam irrompido num hospital, “removendo 312 bebés das suas incubadoras e deixando-os morrer no chão frio do hospital de Kuwait City” (Macarthur 1992, p 54). Proclamada repetidamente pelo presidente Bush Sr., confirmado pelo Congresso, endossado pela imprensa de referência, e até mesmo pela Amnistia Internacional, esta notícia tão horripilante, mas mesmo assim circunstanciada para indicar com precisão o número de mortes, não poderia deixar de provocar uma onda avassaladora de indignação: Saddam Hussein era o novo Hitler, a guerra contra ele era não só necessária como também urgente e aqueles que se opusessem a ela ou fossem recalcitrantes deveriam ser considerados como cúmplices mais ou menos conscientes do novo Hitler! A notícia era obviamente uma invenção habilmente produzida e distribuída, mas foi para isso que a agência de publicidade bem merecera o seu dinheiro.
A reconstrução desta história está contida em um capítulo do livro aqui citado com um título adequado: “Publicitar bebés” (Selling Babies). Na verdade, o “anunciado” não foram apenas os bebés. Logo no início das operações militares foi difundida por todo o mundo a imagem de um corvo marinho que se afogava no petróleo a jorrar de poços explodidos pelo Iraque. Verdade ou manipulação? A causa da catástrofe ecológica era Saddam? E há realmente corvos marinhos naquela região do globo e naquela estação do ano? A onda de indignação, autêntica e habilmente manipulada, varreu a última resistência racional.
A PRODUÇÃO DO FALSO, O TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E O DESENCADEAMENTO DA GUERRA
Façamos um novo salto alguns anos em frente e chegamos assim à dissolução, ou melhor, ao desmembramento da Jugoslávia. Contra a Sérvia, que historicamente fora a protagonista do processo de unificação deste país multi-étnico, nos meses que antecederam o bombardeamento total desencadeou-se uma onda de bombardeamentos multimedia. Em Agosto de 1998, um jornalista americano e um alemão
“Referem-se à existência de valas comuns contendo 500 cadáveres de albaneses, incluindo 430 crianças, perto de Orahovac, onde se combateu duramente. A notícia foi retomada por outros jornais ocidentais com grande destaque. Mas era tudo falso, como evidenciado por uma missão de observação da UE ” (Morozzo Della Rocca 1999, p. 17).
Nem por isso a fábrica de falsificações entrava em crise. No início de 1999, os meios de comunicação ocidentais começaram a bombardear a opinião pública internacional com fotografias de cadáveres empilhados no fundo de um penhasco e, por vezes, decapitados e mutilados; as legendas e artigos que acompanhavam tais imagens proclamavam que se tratava civis albaneses inermes massacrados pelos sérvios. Só que:
“O massacre de Racak é horrendo, com mutilações e cabeças decepadas. É um cenário ideal para despertar a indignação da opinião pública internacional. Mas alguma coisa parece estranha nesta modalidade de carnificina. Os sérvios matam habitualmente sem fazer mutilações […] Como ensina a guerra na Bósnia, as denúncias de brutalidade sobre corpos, sinais de tortura, decapitações, são uma arma da propaganda difundida […] Talvez não fossem os sérvios, mas sim os guerrilheiros albaneses que mutilaram os corpos” (Morozzo Della Rocca 1999, p. 249).
Ou, talvez, os corpos das vítimas de um dos inumeráveis confrontos entre grupos armados tivessem sido submetidos a um tratamento sucessivo, a fim de fazer acreditar numa execução a frio e num desencadeamento de fúria bestial, da qual era imediatamente acusado o país que a NATO se preparava para bombardear (Saillot 2010, pp. 11-18).
A encenação de Racak foi apenas o culminar de uma campanha de desinformação obstinada e cruel. Alguns anos antes, o bombardeamento do mercado de Sarajevo havia permitido à NATO erguer-se como suprema autoridade moral, que não se podia permitir deixar impune a “atrocidade” sérvia. Hoje em dia pode-se ler, mesmo no Corriere della Sera, que “foi uma bomba de paternidade muito duvidosa a fazer o massacre no mercado de Sarajevo provocando a intervenção da NATO” (Venturini 2013). Com este precedente anterior, Racak aparece hoje como uma espécie de reedição de Timisoara, uma reedição prolongada por alguns anos. E no entanto, também neste caso, houve êxito. O ilustre filósofo que em 1990 havia denunciado “o Auschwitz da sociedade do espectáculo” verificado em Timisoara, cinco anos depois alinhava-se ao coro dominante, trovejando de forma maniqueísta contra “o deslizamento repentino da classe dirigente ex-comunista no racismo mais extremo (como na Sérvia, com o programa de limpeza étnica)” (Agamben 1995, pp. 134-35). Depois de haver agudamente analisado a trágica indiscernibilidade da “verdade e falsidade” na sociedade do espectáculo, ele acaba, involuntariamente, por confirmá-la, aceitando de modo precipitado a versão (ou seja, a propaganda de guerra) difundida no “sistema mundial dos media”, que anteriormente apontara como a fonte principal da manipulação. Depois de ter denunciado a redução do “verdadeiro” para “momento do movimento necessário do falso”, feito pela sociedade do espectáculo, ele limitava-se a conferir uma aparência de profundidade filosófica a esse “verdadeiro” reduzido a “momento do movimento necessário do falso”.
Por outro lado, um elemento da guerra contra a Jugoslávia, mais do que em Timisoara, nos leva de volta à primeira Guerra do Golfo. É o papel desempenhado pelas relações públicas:
Milosevic. “Milosevic é um homem tímido, não gosta de publicidade, não gosta de se mostrar ou fazer discursos em público. Parece que aos primeiros sinais de desagregação da Jugoslávia, a Ruder&Finn, empresa de relações públicas que trabalhara para o Kuwait, em 1991, apresentou-se a oferecer os seus serviços. Foi recusada. A Ruder&Finn foi ao invés contratada de imediato pela Croácia, pelos muçulmanos da Bósnia e pelos albaneses do Kosovo por 17 milhões de dólares por ano, a fim de proteger e promover a imagem dos três grupos. E ela fez um óptimo trabalho!
James Harf, diretor da Ruder&Finn Global Public Affairs , afirmou numa entrevista […]:
“Fomos capazes de fazer coincidir na opinião pública sérvio e nazista […] Nós somos profissionais. Tínhamos um trabalho a fazer e fizemos. Não somos pagos para fazer moral” (Toschi Marazzani Visconti 1999, p. 31).
Chegamos agora à segunda Guerra do Golfo: nos primeiros dias de Fevereiro de 2003, o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, mostrava à plateia do Conselho de Segurança da ONU as imagens de laboratórios móveis para a produção de armas químicas e biológicas que o Iraque dispunha. Algum tempo depois o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, redobrava a dose: não só Saddam tinha essas armas como já havia feito planos para usá-las e era capaz de activá-las “em 45 minutos.” E mais uma vez o espectáculo, nada mais que o prelúdio para a guerra, constituía o primeiro acto de guerra, pondo em guarda contra um inimigo de que o género humano se devia absolutamente desembaraçar.
Mas o arsenal das armas da mentira executadas ou prontas para o uso foi muito além disso. A fim de “desacreditar o líder iraquiano aos olhos do seu próprio povo”, a CIA propunha-se a “divulgar em Bagdad, um filme revelando que Saddam era gay. O vídeo devia mostrar o ditador iraquiano tendo relações sexuais com um garoto. “Devia parecer feito a partir de uma câmara oculta, como se fosse uma gravação clandestina”. A ser estudada estava também “a possibilidade de interromper a transmissão da televisão iraquiana com uma pretensa edição extraordinária do telejornal contendo o anúncio de que Saddam havia renunciado e que todo o poder fora retirado de seu filho Uday, temido e odiado” (Franceschini 2010).
Se o Mal deve ser mostrado e marcado em todo o seu horror, o Bem deve aparecer em todo o seu esplendor. Em Dezembro de 1992, fuzileiros navais dos EUA desembarcaram na praia de Mogadiscio. Para maior exactidão, desembarcaram duas vezes e a repetição da operação não se deveu a dificuldades militares ou logísticas imprevistas. Era preciso mostrar ao mundo que, mesmo antes de ser um corpo militar de elite, os fuzileiros eram uma organização beneficente e caridosa que trazia esperança e um sorriso ao povo somali devastado pela miséria e pela fome. A repetição do desembarque-espectáculo destinava-se a emendá-lo nos seus pormenores errados ou defeituosos. Um jornalista e testemunha explicou:
“Tudo o que está a acontecer na Somália e que se verá nas próximas semanas é um show militar-diplomático […] Uma nova época na história da política e da guerra começou realmente, na noite bizarra de Mogadíscio […] A “Operação Esperança” foi a primeira operação militar não apenas filmada em directo pelas câmaras, mas pensada, construída e organizada como um show de televisão” (Zucconi 1992).
Mogadíscio era a contrapartida de Timisoara. Há alguns anos de distância da representação do Mal (o comunismo que finalmente desmoronou) seguiu-se a representação do Bem (o império americano, que emergia do triunfo alcançado na Guerra Fria). São agora claros os elementos constitutivos da guerra-espectáculo e do seu êxito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Giorgio Agamben 1995
Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita, Einaudi, Torino
Giorgio Agamben 1996
Mezzi senza fine. Note sulla politica, Bollati Boringhieri, Torino
Dan Bilefsky 2009
«A rumor that set off the Velvet Revolution», in International Herald Tribune del 18 novembre, pp. 1 e 4
Jean-Luc Domenach, Philippe Richer 1995
La Chine, Seuil, Paris
François Fejtö 1994 (em colaboração con Ewa Kulesza-Mietkowski)
La fin des démocraties populaires (1992), tr. it., di Marisa Aboaf, La fine delle democrazie popolari. L’Europa orientale dopo la rivoluzione del 1989, Mondadori, Milano
Enrico Franceschini 2010
«La Cia girò un video gay per far cadere Saddam», La Repubblica, 28 maggio, p. 23
John R. Macarthur 1992
Second Front. Censorship and Propaganda in the Gulf War, Hill and Wang, New York
Roberto Morozzo Della Rocca 1999
«La via verso la guerra», in Supplemento al n. 1 (Quaderni Speciali) di Limes. Rivista Italiana di Geopolitica, pp. 11-26
Fréderic Saillot 2010
Racak. De l’utilité des massacres, tome II, L’Hermattan, Paris
Jean Toschi Marazzani Visconti 1999
«Milosevic visto da vicino», Supplemento al n. 1 (Quaderni Speciali) di Limes. Rivista Italiana di Geopolitica, pp. 27- 34
Franco Venturini 2013
«Le vittime e il potere atroce delle immagini», in Corriere della Sera del 22 agosto, pp. 1 e 11
Vittorio Zucconi 1992
«Quello sbarco da farsa sotto i riflettori TV», in La Repubblica del 10 dicembre
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