
Por Roberto Liebgott e Ivan Cesar Cima do Cimi Regional Sul.
A Constituição Federal de 1988 consolidou os direitos indígenas como fundamentais e originários. Esse reconhecimento se deu durante a Assembleia Nacional Constituinte, entre 1986 e 1988, quando se firmou o entendimento de que tais direitos deveriam ser declarados, cabendo à União respeitá-los, protegê-los e assegurá-los.
O Capítulo VIII – Dos Índios – alicerça-se em apenas dois artigos, 231 e 232, mas que são revolucionários e potentes, porque retiram os povos indígenas de uma visão essencialmente do passado, sem, no entanto, negá-los. E mais, os acolhe num presente enlaçado ao futuro. Rompe-se com a tutela estatal e se reconhece as diversidades étnicas dos povos (línguas, crenças, culturas, tradições) referindo-se a eles como sujeitos de direitos e determinando a demarcação de todas as suas terras.
A Carta Magna funda-se no indigenato, reafirmando que os povos são portadores de direitos originários (anteriores à colonização), inalienáveis (não podendo ser negociados), indisponíveis e imprescritíveis, ou seja, que não se esgotam com o passar dos anos.
Mas, apesar de todas estas garantias virem expressas na Lei Maior do País, os 304 povos, falantes de mais de 270 línguas, têm suas terras, suas vidas e os seus modos de ser – incessantemente – agredidos pela força do racismo, da intolerância, da ganância, cobiça e destruição.
Aqueles e aquelas que ocupam o topo da pirâmide social no país, que frequentam salas de jantar e os finos cafés nas salas dos palácios, unem-se, ao redor das mesas fartas, para tramarem a desregulamentação dos direitos dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, dos pequenos agricultores, dos pescadores, dos ribeirinhos e dos demais pobres do Brasil injusto e profundo.
Há segmentos de Poder, por dentro da política, da economia (minerária, agrária, agrícola) e do judiciário, que criam inúmeras estratégias legislativas e administrativas, assim como teses jurídicas, para limitar o alcance da Constituição Federal em relação aos direitos das populações que precisam da terra para viver.
Nos últimos cinco anos, travou-se no Brasil – a partir do Judiciário – um interminável debate jurídico, através do qual se buscava reafirmar, ou rejeitar, os Direitos Indígenas expressos na Constituição Federal.
A discussão se deu a partir da imposição da tese do marco temporal, uma espécie de ficção jurídica, visando impor, como critério para a demarcação das terras indígenas no Brasil, que os povos estivessem na posse das áreas requeridas na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. E, caso não estivessem na posse de tais terras, deveriam, ao menos, disputá-las – física ou juridicamente –, configurando-se o que veio a ser denominado de renitente esbulho.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), depois de três anos de discussões e debates, julgaram, em 27 de setembro de 2023, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, em ação de reintegração de posse movida pelo estado de Santa Catarina contra uma parcela da Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnô, do povo Xokleng. Devido a seu caráter de repercussão geral, o processo também passou a ser denominado de Tema 1031.
Acabou sendo consolidado, nesse julgamento, por nove votos a dois, o entendimento de que a tese do marco temporal é inconstitucional. Em relação a essa decisão há alguns embargos de declaração a serem apreciados.
Apesar da rejeição à tese, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/2023, através da qual reintroduz o marco temporal no ordenamento jurídico brasileiro e obriga – ou vincula – toda administração pública a segui-la. Contra a lei foram propostas quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidades (ADI) e, a favor dela, uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO). O relator de todas as cinco ações, no âmbito do STF, é o ministro Gilmar Mendes.
O Congresso Nacional, ao editar a Lei 14.701/2023, recolocou no mundo político e jurídico a discussão sobre a tese do marco temporal, e o fez de modo premeditado, buscando medir forças com o Poder Judiciário. Além disso, pretende explicitar, dentro dele, as tendências e contradições
O Congresso Nacional, ao editar a Lei 14.701/2023, recolocou no mundo político e jurídico a discussão sobre a tese do marco temporal, e o fez de modo premeditado, buscando medir forças com o Poder Judiciário. Além disso, pretende explicitar, dentro dele, as tendências e contradições.
Ou seja, além de pressionar os ministros da Corte Suprema, o atual parlamento, em sua maioria, expõe os magistrados quanto aos seus posicionamentos: ou de apoio incondicional ao agronegócio predador, contaminador, disseminador de venenos, muitos deles proibidos em outras regiões do planeta; ou coerente à própria decisão no Tema 1031 e à Constituição Federal.
Os sujeitos do poder, que estão no andar de cima, ao editarem a lei, também se anteciparam, numa evidente negociação prévia, em ingressar com uma ação que pede à Corte que confirme a constitucionalidade da lei que eles aprovaram. De antemão, eles sabiam que a ação deveria ficar sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, pois era um dos plantonistas do STF no final de dezembro de 2023, em meio ao recesso do Poder Judiciário. As demais ações, pedindo a inconstitucionalidade da lei, foram propostas depois. No entanto, pelas regras da prevenção, o relator de todas as ações, quando da discussão do mesmo objeto, deveria ser o mesmo – no caso, Gilmar Mendes, a quem coube a relatoria da primeira ação, a ADC. Se essa regra fosse aplicada também à primeira ação, a relatoria caberia ao ministro Edson Fachin, relator do Tema 1031. Essa questão, contudo, jamais foi analisada.
O que fez Gilmar Mendes diante das ações que pediam a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023?
De início, nada! Deixou que a lei se fortalecesse por dentro da administração pública e que gerasse confusão e controvérsias. A tática, em sua essência, buscava a validação da lei e seus resultados no cotidiano.
Dois ou três ministros que poderiam fazer frente a Gilmar Mendes – dentre eles o ministro Fachin, relator do RE 1.017.365 e o próprio presidente da Corte, Luís Roberto Barroso –, optaram pela paciência, prudência e colegialidade.
Passado o tempo, a Lei 14.701/2023 desencadeou insegurança jurídica, paralisou as ações da Funai e estimulou conflitos e confrontos, com mortes de indígenas em todas as regiões do Brasil. Nesse período se formou, inclusive, o famigerado “Invasão Zero”.
A estagnação da Funai, a paralisação das demarcações de terras e o aumento das violências contra os povos explicitou a segunda tática do ministro Gilmar Mendes: buscar negociar por fora da lei, da Constituição, bem como da decisão do STF, solução alternativa que pudesse contemplar indígenas e fazendeiros.
Ocorreu, também, a negociação pelo pagamento da terra nua aos fazendeiros de Mato Grosso do Sul, invasores da TI Nhanderu Marangatu, dos povos Guarani e Kaiowá. Na negociata, aos fazendeiros caberia a “bagatela” de R$ 154 milhões. Depois do pagamento, eles se retiram das terras e se esquece o sangue derramado dos indígenas. Se esquece os assassinatos, torturas, espancamentos e a degradação do território originário.
Essa negociata empoderou ainda mais o ministro Gilmar Mendes, que passou a analisar as ações contra a Lei 14.701/2023. Ele então convocou, no âmbito do STF, uma Comissão Especial de Conciliação buscando um entendimento consensual em torno da lei que recriou a tese do marco temporal – mesmo já tendo sido refutada pelo plenário do STF.
A comissão contou com mais de 90 integrantes, passando por parlamentares, governantes, agentes do agronegócio, ONGs e organizações indígenas. No cômputo geral havia uma mesa de conciliação onde a maioria de seus integrantes era favorável à lei que deveria ser discutida. Portanto, de início, houve a falência do acordo que se pretendia buscar.
Os povos indígenas e suas organizações se retiraram da mesa de conciliação e nela se mantiveram os demais integrantes das bancadas do Congresso Nacional, do governo federal e dos empresários ruralistas e do agronegócio.
As reuniões da comissão foram sendo realizadas e nelas se chegou a uma minuta de projeto de lei substitutivo à lei 14.701/2023, a ser apresentado ao Congresso Nacional. Mas nem dentre os do andar de cima dos palácios houve consenso frente à proposta.
Ou reage-se de forma articulada e contundente agora, neste contexto de aparente democracia, ou sucumbe-se no período pré-eleitoral, onde os direitos indígenas e dos demais povos e comunidades tradicionais serão lançados na vala comum
De tudo isso, o que se pode espremer – extrair – como resultado prático para a busca de uma solução aos problemas indígenas no Brasil?
Primeiro: não haverá nenhuma proposição dignificante para os povos indígenas elaborada ou ofertada pelos representantes dos segmentos sociais, políticos e econômicos que consomem suas riquezas, obtém seus prazeres e privilégios nos andares de cima, nas salas de jantares e cafés elitizados.
Segundo: o ministro Gilmar Mendes instaurou a dispersão nesse debate. Ele instalou o caos de forma premeditada, visando fragilizar seus pares na Suprema Corte ao retomar a discussão sobre uma decisão já tomada, de rejeição ao marco temporal. Com essas ações, o ministro teve êxito em tornar o debate disperso, em meio às conciliações e acordos, e desviar o foco do essencial: a apreciação da constitucionalidade da lei.
Terceiro: a pretensa conciliação serviria, como serviu, para dividir as lideranças dos povos indígenas, deixando explícito que os integrantes do governo, em geral, irão optar pelos jantares e cafés oferecidos nas salas dos palácios, distanciando-os da terra, das dores, das angústias e dos direitos de seus povos no país. Eles devem comungar da mesma tática, a de postergar ao máximo uma posição acerca do fim da mesa de conciliação, porque isso mantém a insegurança aos povos, fortalece a consolidação da Lei 14.701/2023 e cansa, traz desânimo aos que se opõem a ela, chegando ao ponto de aceitá-la como um fato consumado e seguirem lutando por suas pautas específicas apesar da vigência da lei – cuja consequência prática, em muitos casos, é inviabilizar a própria concretização dessas pautas.
Quarto: as organizações de apoio e os demais segmentos sociais que atuam direta ou indiretamente no indigenismo também ficaram fragilizados diante da dispersão e confusão orquestradas por Gilmar Mendes. Houve dúvidas e falta de foco nas ações de combate e rejeição ao marco temporal, bem como a todas as suas consequências.
Quinto: dos povos indígenas, suas organizações e aliados se espera, de forma incisiva, que atuem junto ao STF, para cobrar dos ministros coerência quanto ao julgamento do Tema 1031. É central que eles concluam o processo e publiquem os seus resultados, julgando, por conexão, a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023.
Sexto: intensificar as ações e campanhas em defesa da Constituição, contra as negociatas de direitos, exigindo do governo federal, para além de discursos, homenagens, adornos e fantasias, a implementação de políticas públicas que garantam as demarcações de terras indígenas, sua proteção e fiscalização, bem como políticas públicas que assegurem o bem-estar e o fim da vulnerabilidade por falta de terra, água e comida.
Os tempos são de graves e profundas incertezas. Ou reage-se de forma articulada e contundente agora, neste contexto de aparente democracia, ou sucumbe-se no período pré-eleitoral, onde os direitos indígenas e dos demais povos e comunidades tradicionais serão lançados na vala comum, de onde não se vislumbra saídas.