A imigração vista pelos olhos de uma criança

Por Urda Klueger.

Eu convivi muito com a minha avó, Emma Katzwinkel Klueger, que chegou ao Brasil no final do século XIX, vinda da Lituânia. Ela chegara já com sete anos, idade em que uma criança se lembra de quase tudo, e como gostava de ouvi-la contar sobre sua vida lituana, sua viagem para o Brasil, a chegada às terras que seriam do meu bisavô, um lugar meio indefinido, que, segundo ela, é onde hoje está a represa de Rio dos Cedros! Como ela era criança (tinha mais dois irmãozinhos pequenos, nascidos em terras Bálticas – outros dois nasceriam no Brasil), o que ela viu, assistiu, participou, foi sempre com os olhos de uma criança, e foi com essa visão de criança que, muitas décadas depois, ela me passou o que aconteceu.

Eu sei que Blumenau tinha o “Barracão dos Imigrantes”, lugar onde essa gente que passava três meses atravessando o mar podia descansar um pouco, refazer-se um pouco, antes de pegar o rumo da floresta desconhecida que seria o seu lar. Fala-se, hoje, nos desconfortos do tal Barracão, mas, em todo o caso, era um lugar em terra firma onde  havia aquele descanso tão necessário. Minha avó nunca me falou do Barracão, nem de como eles andaram mato adentro para chegarem nas terras, mas me falou muito da sua primeira noite no mato. Seu pai cortou palmitos e montou uma pequena casa, um rancho, coberto pelas folhas dos próprios palmitos, e eu fico a imaginar que ele aprendera a técnica nos dias ou semanas em que ficou no Barracão dos Imigrantes, para fazer num instantinho uma casinha assim.  Lá dentro, arrumaram as suas coisas para uma primeira noite: baú e caixas contra a parede, camas muito precárias no chão. Mais tarde, talvez no dia seguinte, tratariam de fazer camas suspensas, estrados de renda de cipó, onde as pessoas poderiam dormir mais ao abrigo de formigas e outras coisas. Naquela primeira noite, porém, não houve tempo. Tão logo houve cama pronta no chão, e alguma coisa para comer, as crianças foram dormir.

Pensem comigo: criança é assim mesmo, desde que o pai e a mãe estejam por perto, elas dormem calmamente em qualquer lugar, sem sentir medo de nada. E minha avó e seus dois irmãozinhos entregaram-se aos braços de Morfeu tranqüilamente, e dormiram que foi uma beleza. Teriam dormido assim até de manhã, não fosse a trovoada que caiu: a pequena cabana fora construída num declive de terreno, e a água daquela assustadora trovoada tropical entrou cabana adentro, querendo levar tudo de roldão e molhando todo o mundo que dormia no chão. Ela lembrava-me como acordara, como foram socorridos pelos pais. Era um pouco folclórico, aquele acontecimento da trovoada, e o que ela contava a seguir era da manhã seguinte, quando meu bisavô tomou as primeiras providências contra trovoadas tropicais, abrindo valetas ao redor daquela casinha de nada, feita de palmitos. Decerto depois que a água inundou a casinha, os pais botaram as crianças a dormir em lugar seco, isto é, sobre as caixas e baú , e elas de novo se esqueceram do mundo. Muitas outras coisas da vida desta minha avó eu já contei em crônicas e livro – ela não é uma estranha para a Literatura.

Então eu chego à conclusão: soube do que acontecia na primeira noite de um imigrante no mato pelos olhos de uma criança, e criança dorme bem e é feliz desde que os pais estejam por perto. Tive dessa primeira noite uma experiência romântica, bonita, apesar da assustadora trovoada, pois tudo foi visto pelos olhos de uma criança que se sentia protegida pelos pais.

Como terá sido para os meus bisavós, no entanto, tal experiência? Que sentiram, pessoas adultas, ao verem a tempestade quase pôr abaixo a casinha que era o único socorro que tinham? Quais os medos que os acometeram quando ouviram todos os ruídos do mato circundante, todos os pios, rugidos e outras coisas, e pensaram na possibilidade de índios andando ali fora, já que se estava em plena guerra com os nossos Xoklengs? Isto foi coisa que eu descobri depois. Um dia eu conto.

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