Por Laura Capriglione.
Chegou a hora de assumirmos os novos desafios colocados por um país humilhado pelo golpe, pela ganância das suas elites, mas também pela timidez, medo, fraqueza e falta de criatividade e ousadia dos partidos, sindicatos e vários movimentos sociais, a quem caberia a organização das ações de resistência dos trabalhadores e do povo pobre e oprimido.
Entre os possíveis antônimos do substantivo “ousadia” estão as palavras atenção, cautela, circunspecção, cuidado, método, moderação, ponderação, prudência, reflexão, sensatez, respeito, comedimento, modéstia.
Pois é. Parece que isso há em excesso e o resultado é que o debate político nunca esteve tão truncado, fechado, interditado. Ouso dizer que nem mesmo nos tempos da Ditadura vivemos, enquanto esquerda, um tal embotamento da inteligência criativa e transformadora. Os reflexos disso na discussão sobre a democratização da mídia são imediatos.
É esse estado de coisas dentro da esquerda que tem permitido, autorizado e legitimado o incrível processo de “social washing” operado pela Rede Globo, a mesma que dirigiu as esquadras golpistas e incensou os monstros que mataram a democracia. A mesma que mereceu gritos de “Fora Rede Globo” entoados em uníssono por estádios inteiros, entre outros imensos protestos contra a manipulação da informação operada pelo Grande Irmão da mídia.
“Social washing” é um anglicismo que indica apropriação auto-proclamada de virtudes “sociais” por empresas, governos ou pessoas, mediante o uso de técnicas de marketing e relações públicas. Tal prática tem como objetivo criar uma imagem positiva, diante da opinião pública, sobre o grau de comprometimento social dessas organizações ou pessoas (bem como de suas atividades e seus produtos), ocultando ou desviando a atenção dos impactos sociais negativos reais gerados por elas.
A Rede Globo que tem, como poderoso chefão do seu jornalismo (e ele continua!), Ali Kamel, o negacionista-mór do racismo brasileiro, o autor do livro “Não somos racistas – uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor” (Nova Fronteira), afastou William Waack por racismo. Uau! Ainda bem que a gente tem a Globo!
Pedro Cardoso, o arguto ator que se tornou persona non grata na emissora da Família Marinho, desmascarou o mecanismo perverso do “social washing” Global. Em entrevista na Record, ele criticou uma mini-série da Globo, “Verdades Secretas”, nos seguintes termos:
“Você faz algo com modelos que se prostituem e isso vira um sem número de cenas eróticas. Parece que você está tratando seriamente do assunto, que está preocupado em salvar a vida dessas moças. Quando, na verdade, você está apenas vendendo conteúdo erótico disfarçado de interesse intelectual”.
E, então, aquela Globo que produziu e produz o consumo do corpo da mulher, que invisibiliza a tragédia do genocídio nas periferias pretas e pobres, que usa o corpo nu da mulher negra para promover seu big business do Carnaval, degola em praça pública o galã acusado de assédio sexual. Ufa! Sorte que a Globo está ao nosso lado neste momento de ascenso do obscurantismo fascista.
Os roteiristas do programa de Fátima Bernardes já sabem que não podem mais compor um bate-papo sem negros e sem que se mencione o fenômeno pop do momento, Pablo Vittar, para ficar de bem com o mundo Queer e LGBT.
E dois atores globais de olhos azuis agora são linha de frente da luta anti-racista, em que pese o sacrifício diário e a resistência de milhões de afrodescendentes discriminados de todas as maneiras possíveis. Apropriação cultural é o nome disso.
Como é bom um espantalho de ultradireita como Bolsonaro para legitimar a Pax da Globo e de Geraldo Alckmin!
Enfim, eles podem posar de equilibrados, gentis, educados, civilizados. Já tem gente honesta no campo da esquerda cogitando votar no tucano assassino de São Paulo para evitar o mal maior… Vai ser louco ver esse voto piedoso no cara que massacrou os movimentos sociais, que cegou e mutilou jornalistas com bombas, balas de borracha e gás de pimenta. Será o cúmulo da capitulação apoiar o chefe dos assassinos fardados nas periferias; o inimigo das escolas públicas.
O debate está embotado porque a esquerda brasileira não aceitou ainda encarar suas responsabilidades nos fatos que geraram o impeachment, o golpe, os ataques contra o povo pobre e a vitória do discurso neoliberal de estrangulamento do Estado.
Talvez precisemos desafinar os mantras desenvolvimentistas e modernizadores, além, é claro, da narrativa autoindulgente dos “pactos de governabilidade” a todo custo, que caracterizam a parte ainda hegemônica da esquerda brasileira e abrir um debate mais qualificado, mais inteligente, mais corajoso, mais focado nos valores humanos da liberdade, do trabalho, da solidariedade, do amor, da fraternidade, da igualdade, dos direitos humanos. Na defesa apaixonada da natureza. Na crítica ao fetiche da mercadoria, das grifes e da ostentação. Na defesa dos povos ancestrais e de sua sabedoria.
Porque o que estamos vivendo é a demonstração cabal de como desenvolvimentismo, modernização e governabilidade, em suas decorrências práticas, contraditoriamente se transformaram em “desvalores em seu trajeto até as zonas marginalizadas” (cf. Carolina Silva Mercês). A especulação imobiliária nas periferias gentrificadas pelos mega-projetos da Copa e Olimpíadas; a substituição da ideia de cidadão pela de consumidor com carnê das casas Bahia; a JBS como maior empresa do mundo na produção de proteína animal (e foda-se o meio-ambiente); o agronegócio pop construído sobre as terras indígenas, o consumismo dos lixos capitalistas em shopping centers que se reproduziram como cogumelos pelo país; a “paz” transformada em discurso vazio, “conservador e abusivo”.
Precisamos pensar sobre tudo isso. E abrir as páginas, e todos os sentidos, para os lutadores que possam falar “de dentro” sobre nossas dificuldades, sobre os erros e acertos, apontar saídas, redesenhar os horizontes da utopia. Porque chegou a hora da verdade.
Fonte: Jornalistas Livres