A história da primeira trans editora-chefe de um jornal no Brasil

Por João Victor Leal.

Foi sua militância política, no LPJ e na Consulta Popular, que ajudou-a no processo de transição. / Reprodução

Orgulhosa, Janaína Lima mostra a edição zero do Brasil de Fato Potiguar, jornal impresso gratuito, fundado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, e que passou a circular nesta terça (6) por todo o Rio Grande do Norte. Entre as ligações com a filial do Brasil de Fato no Recife, responsável pela diagramação e impressão, ela faz os últimos ajustes na edição. Retira uma palavra, coloca outra, pede opiniões, dá o ok…enviado! O jornal já está pronto para impressão.

A edição impressa do jornal faz parte de uma estratégia nacional do Brasil de Fato de regionalizar sua produção. Os grupos que organizam e apoiam o jornal, dentre eles a Frente Brasil Popular, apostam no jornal impresso como um instrumento de conexão com parte da classe trabalhadora, que ainda não consegue ser acessada por outros meios. A intenção do jornal é ousada: lançar edições locais aqui e em estados do Nordeste como Alagoas, Sergipe, Bahia, Paraíba e Ceará, tudo isso ainda em 2018.

O Brasil de Fato Potiguar também marca mais um início para Janaína Lima, dentre muitos que precisou viver nos últimos anos. Ela acaba de se formar em jornalismo pela UFRN onde, em dezembro, apresentou seu Trabalho de Conclusão de Curso. Em 2016, ainda dentro do curso, Janaína iniciou seu processo de transição para uma nova identidade de gênero.

Foi na universidade onde eu a conheci, ainda com outro nome e outra identidade. Foi lá onde ela construiu sua trajetória militante nos movimentos populares e dentro do curso de Comunicação Social.  Forjada na luta, não admite ficar um dia longe dela. Mesmo conhecendo-a por tanto tempo, só agora fui propriamente apresentado à Janaína Lima: uma mulher, revolucionária, dirigente de organização política e a primeira trans editora-chefe de um jornal impresso no Brasil.

Janaína ainda não parece entender a dimensão do seu pioneirismo, quando repito para ela o título que conquistou. “Muitas foram pioneiras”, diz.  Além de editora-chefe do Brasil de Fato, Janaína é a primeira mulher trans a se graduar no curso de Comunicação Social da UFRN e a ser dirigente da organização política que constrói, o Levante Popular da Juventude (LPJ).

“Meio impossível nesse mundo que a gente vive, a pessoa trans não ser pioneira. Nesse momento em que a gente está acessando um pouco mais das políticas públicas, conseguimos ter uma maior visibilidade do pioneirismo. Mas, com certeza, muitas foram primeiras antes de mim. A gente espera um mundo onde as pessoas trans não sejam nem mais as primeiras  em algo, nem as últimas, que só sejam pessoas que ocupam seus espaços como todas as outras na sociedade”, diz.

Foi sua militância política, no LPJ e na Consulta Popular, que ajudou-a no processo de transição. Janaína conta com bom humor, uma de suas características, sobre o início quando comunicou para seus companheiros de direção a decisão de tomar o primeiro comprimido de hormônio feminino após tentar, sem sucesso, o acompanhamento médico especializado. Fala rindo que “burocratizou” seu processo de transição ao se preocupar em não se tornar surpresa, para todas as instâncias da organização, seu desejo de iniciar a transição para uma nova identidade.

“Fiz automedicação e também chamei a minha organização para conversar, existia um medo da minha parte. Será que eu vou ter espaço de fato? Era a primeira trans na coordenação nacional do Levante Popular da Juventude. Tentei coesionar na organização para que não fosse uma surpresa. O momento que tive condições de contar e iniciar a transição foi porque a própria organização me deu forças para conseguir fazer isso, a partir de muitos espaços auto-organizados de formação LGBT que construímos coletivamente”, afirma.

O processo de transição de Janaína é gradual e marcado por conquistas. Pequenas para observadores distantes, mas gigantescas para ela. Na universidade teve uma boa recepção dos professores, onde todos fizeram questão de garantir que sua monografia fosse impressa com nome social. Sentiu-se respeitada, e agora já fala em tentar o mestrado na instituição. A mudança de nome em todos os seus documentos oficiais também está nos seus planos, mas primeiro pretende alugar sua própria casa, onde diz que “vai conseguir de fato ser Janaína.” Hoje, ainda mora com sua família, e convive com um ambiente que classifica como conflituoso. “A casa treme quando passo um batom, visto uma roupa mais feminina”, lembra.

A mudança de Janaína está prevista para o fim de fevereiro e o  trabalho no Brasil de Fato também vai ajudá-la na construção de sua autonomia financeira.

“Eu vi que não basta formação política e o fortalecimento pessoal, a questão financeira é um elemento muito barra. Moradia, por exemplo, é algo crucial pois sem isso não se consegue ter acesso à saúde, aos seus direitos mais básicos. Agora sinto que vou conseguir viver como eu sou”, diz.

Da infância, lembra que sempre quis brincar de boneca, mas nunca ganhava uma. A solução era usar as bolas de tecido, que enfeitavam a árvore de Natal e, junto com alguns palitos e imaginação, improvisar suas próprias bonecas. Mesmo com uma infância muito reprimida diz que “quanto mais sofria, mas tentava buscar a felicidade.”

Janaína parece ter consciência das batalhas que vai enfrentar como editora-chefe: “Quando me apresento como jornalista ainda existe um estranhamento”.

Cansada de saber que no campo da esquerda também há transfobia, acredita que trabalhar num jornal que tem uma perspectiva popular e militante pode ajudar num processo de conscientização coletiva. Durante a greve da Polícia Militar, em dezembro de 2017, teve uma prova do tamanho do desafio que decidiu assumir. Junto de uma amiga cis, pessoa em que o gênero é o mesmo que o designado no nascimento,  partiu para entrevistar policiais  para uma matéria especial do Brasil de Fato. Eles preferiam se reportar à amiga, como se ela fosse Janaína, simplesmente  por não acreditar que uma mulher trans era a jornalista que havia marcado as entrevistas e que conduziria as perguntas.

“Foi bizarro. Não tem como se preparar para as violências do dia, mas penso que no meu dia existem vários incidentes que não consigo evitar que aconteçam, mas consigo evitar que me machuquem tanto”, enfatiza.

Na empolgação de lembrar sobre o passado comum,  sem me dar conta, cometo o desrespeito de chamar Janaína por seu antigo nome. A reação, ao constrangimento que causei, é uma resposta serena. “Você não é meu inimigo”. Janaína conta que sua vida é muito mais coletiva do que individual, assim compreende que seu inimigo não é o trabalhador, mas o sistema perverso que o impede de compreender o que a transsexualidade é.

“Eu compreendo que meu inimigo não é o trabalhador, a trabalhadora, não é meu pai, não é minha mãe, nem a vizinha fofoqueira, eles só não compreendem por completo o que é a transsexualidade. Assim como eu, eles são vitimas desse sistema que quer as nossas vidas. É com a estrutura que quero  romper, aí vou sempre me esforçando, de maneira pedagógica, conversando com as pessoas  para que as pessoas entendam. Adoro a contradição, é lá onde está a política, é lá onde você promove mudança de pensamento.

Terminamos a conversa, que nesse ponto já dura mais de uma hora, falando sobre sonhos.  E entre brincadeiras sobre sonhar com uma casa, um marido e a monogamia, Janaína exprime em uma curta frase o mais sincero de seus desejos:

“Meu sonho é ser Janaína por inteiro”, enfatiza.

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