Por Aline Djokic.
Eu comecei a ter contato com o mundo fora da minha família, depois de entrar para a pré-escola. Até então, eu brincava quase exclusivamente com minhas primas, todas negra. Pessoas de todos os tipos de tonalidades de pele negra faziam parte do meu cotidiano.
Pouco antes desse período, a minha avó veio morar nos fundos de casa e eu passei a ouvir diariamente relatos de sua infância, de sua juventude, de toda a sua vida de luta e resistência como mulher negra. Ela não sabe, mas esses momentos de carinho e cuidados diários me marcaram profundamente e suas histórias formaram uma casca protetora contra o racismo ao qual eu estaria exposta diariamente, à partir da pré-escola.
Talvez por ter sido uma criança muito tímida, eu ficava muito em casa, lendo, às vezes assistindo tv ou ouvindo as mil e umas histórias e crendices que a minha avó tinha para contar. Aliás somente depois de muitos anos eu fiquei sabendo como isso era típico do nosso povo negro, contar histórias. Na minha cabeça infantil, todos, fossem brancos ou negros, tinham avôs e avós que tinham essas coisas para contar, que tinham cantigas que contavam histórias de cem anos atrás. E para mim todos tinham esse profundo respeito pelos mais velhos, assim como um senso de responsabilidade por eles.
Como a minha avó não tinha mais forças nos braços, era eu quem cuidava dos seus cabelos crespos e brancos, eu os trançava diariamente. Até hoje, em momentos de inquietação, um dos rituais que mais me trazem paz interior é trançar os meus cabelos. Ao invés de uma boneca ou de um cobertor da infância eu tenho o trançar como ligação direta a um momento de transição infantil, em que se fez necessário um intermediário entre a criança e o mundo ao seu redor. Minha avó, suas histórias e nossas vivências conjuntas continuam sendo uma corda a que eu me agarro e que me ajuda na caminhada de luta diária pela minha identidade negra.
Com o início da minha escolarização e a chegada de mais brancos no cotidiano da família tudo começou a mudar. Foi já nesse período em que eu comecei a perceber que existiam dois mundos, um onde eu, menina negra, era possível e outro onde eu deixava de existir e entrava em cena uma outra menina, à qual davam denominações e onde suas experiências e vivências não tinham importância alguma.
Pouco a pouco, eu fui compreendendo que o meu universo negro, com o qual eu me identificava e que me dizia quem eu era, era um universo clandestino, negado à partir do momento em que um branco entrava em cena. Raramente encontrei na minha infância uma pessoa branca que tivesse desconstruindo seu racismo e com quem nós nos sentíssimos à vontade para ser quem éramos, sem receio de que mais uma piada racista fosse contada ou que as nossas vivências de racismo cotidiano fossem caladas, contestadas.
Eu fui aprendendo a guardar para mim minhas dúvidas, meus questionamentos, depois de perceber que eu começava a incomodar a branquitude ao meu redor quando não reagia de acordo com o que ela esperava de uma pessoa negra. Aos poucos as pessoas brancas que me conheciam diziam aos desavisados que deveriam tomar cuidado comigo, porque era muito „brava“. Sim esse é um dos primeiros adjetivos que uma pessoa negra recebe ao reagir a um ataque racista, esse ou qualquer outro que justifique o nosso silenciamento, que insinue um „desiquilíbrio psíquico“ de nossa parte.
As tentativas de embranquecimento foram constantes, inúmeras vezes me foi dito „que eu não era negra, não era preta“. Uma vizinha insistia que eu tinha sido adotada, pois era muito clara para pertencer à minha família. Esses ataques, porém, só me deixavam ainda mais furiosa, pois eram compreendidos por mim, como um ataque ao meu direito de pertencer à minha família. E essa era mesmo a intenção por trás dessas „brincadeiras“.
A sociedade brasileira não se livrou de sua mentalidade escravocrata e crê ter poder sobre todo e qualquer corpo negro. Como „mulatinha inteligente“ eu merecia algo melhor, que aquela família negra, pobre e de baixa escolaridade. Eu poderia, como me seria oferecido mais tarde, me tornar um belo brinquedo nas mãos de um dos senhores brancos e ricos da minha cidade natal já que toda mulher negra, continua sendo vista como um mero objeto naturalmente destinado à exploração sexual. Esse era o lugar que a branquitude previa para mim dentro do sistema de subcastas, em que cada negro segundo seu gênero e fenótipo é designado.
No cotidiano esse sistema de subcastas é velado pelas pequenas concessões que acumulamos ao escalá-lo através do embranquecimento, seja ele genético ou artificial. Sim quanto mais claros, mais amenos os ataques racistas e mais profusos os eufemismos de que se utilizam para nos negar a identidade negra. Aos mais escuros, os ataques desvelados e mais claro o ódio e o desprezo com o quais a maioria da sociedade brasileira nos vê.
Porém nem mesmo os eufemismos usados para designar as cores de nossa pele consegue esconder como nos viam e continuam a ver: como coisas e animais e não como seres humanos. Segundo o dicionário Michaelis o termo pardo (do lat. Pardu) quer dizer: entre o branco e o preto, branco-sujo, V. mulato. O termo mulato por sua vez, segundo Grada Kilomba vem do termo português mula, o resultado do cruzamento entre o cavalo e o burro. Por último o termo mestiço (do esp. Mestizo), aparentemente mais neutro, mas cujo significado é vira-lata, o resultado do cruzamento de cães de raças diferentes. Ainda citando Grada Kilomba „todos esses termos tem uma conotação animal ofensiva e estão relacionados à idéia de infertilidade e proibição.“
Como poderia eu contentar-me com o status de „bastarda“, de „animalesca“, de „coisificada“, de “proibida”, que a sociedade via para mim? O máximo que eu poderia alcançar dentro dessa escala seria o status de „entre branca e negra“ a que se refere o termo pardo ou seria melhor dizer „branca-suja? Até quando a minha verdadeira identidade, aquela que eu conhecia e que me formou, nas cantigas da minha avó, no trançar dos seus cabelos e no emaranhado das nossas vivências conjuntas, teria que ser negada? Até quando ela teria que ser algo que eu guardaria para mim, por ter medo de que a sociedade a destruísse através de seu racismo?
O contato com outras mulheres negras e suas vivências, assim como o processo de construção de suas identidades, mostrou-me que eu era possível. E eu percebi que havia chegado a hora de viver plenamente a minha identidade, completa em suas raízes e em contínuo desenvolvimento, como uma árvore frondosa e firme.
Poder declarar-me mulher negra, é fazer visível o laço invisível da minha ancestralidade, identidade legítima e que me aceita, esfera onde eu deixo de ser bastarda. Nela eu sou filha, sou humana, tenho voz e tenho o amor e a aceitação daqueles que se reconhecem em mim, por vezes nos meus cabelos crespos, por outras vezes na cor da minha pele, mas sempre nas nossas histórias de resistência e conquistas.
A convivência com outras mulheres negras tem me ajudado a me aproximar da pessoa que eu sempre fui, mas não sabia ser possível. Com elas e por elas, eu encontro forças para quebrar o círculo vicioso da inexistência, que nos foi predestinada.
Eu quero agradecer através desse texto a cada uma delas, por terem sido e continuarem sendo um espelho, onde eu vejo o verdadeiro reflexo de mim mesma, e não mais aquela imagem apagada e negada pela branquitude brasileira.
Imagem: “As tranças de Bintou“ de Sylviane A. Diouf.