Na Nicarágua, “a espiral repressiva ‘decapita’ a oposição”, é a manchete do diário francês Le Monde (17 de junho de 2021), referindo-se à detenção de treze dirigentes “a quatro meses das eleições presidenciais”. O nome do jornal é puramente uma particularidade curiosa: sejam de direita, de esquerda, de centro, ou mesmo aqueles que professam “imparcialidade”, quase todos os meios de comunicação, como um “partido único”, denunciam “o desvio do regime de Daniel Ortega para a criminalidade”. Essa unanimidade deveria nos colocar em dúvida. Ou a Nicarágua se transformou realmente no “Gulag centro-americano”, como disse o diário espanhol El País (27 de junho), ou esse surpreendente consenso é uma perversa (ou indolente) abstração da realidade.
Herdeiro da luta de libertação contra a ditadura de Anastásio Somoza (1979) e depois da resistência à guerra de baixa intensidade imposta por Ronald Reagan (1981-1989) e George H.W. Bush (1989-1993), a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) voltou ao poder, pelas urnas, desde 2007 na pessoa de Ortega. Sem fazer milagres, e com uma política pragmática, com seu lado bom e também outro não tão bom, ele resgatou os nicaraguenses menos afortunados do grande pesadelo em que a direita neoliberal os mantinha desde a chegada à presidência, em 1990, da teleguiada de Washington, Violeta Chamorro. Esta é a razão pela qual Ortega foi reeleito duas vezes com uma cômoda maioria sandinista no Congresso.
Apesar de ainda não ter anunciado oficialmente, é dado como certo que em novembro Ortega se apresentará novamente à reeleição (como Helmut Kohl ou Angela Merkel, que permaneceram no poder por 16 anos na Alemanha). Entretanto, para não destoar com o que está se convertendo numa mania suja dentro da direita continental, a oposição “Nica” denuncia antecipadamente uma “farsa eleitoral”. Isto acontece apesar de todas as pesquisas darem como vencedor o atual chefe de Estado (independentemente da orientação política do instituto de pesquisas, incluindo o CID Gallup, que realizou duas sondagens). Daí a busca obsessiva: como, e por que meios, livrar-se do sandinismo e de Ortega?
A oposição tentou fazê-lo, em 2018, por meios violentos. Mas não conseguiu resultados concretos, fora um número muito elevado de mortos: 220, entre eles 22 policiais e 48 sandinistas, segundo a Comissão da Verdade do Governo. Ao contrário do que afirmam os sandinistas, não se tratou de uma tentativa de “golpe de Estado”. Para que haja um “golpe”, uma ou várias instituições de Estado – as Forças Armadas, a Polícia, o Judiciário, o Parlamento – devem participar na derrubada do presidente – como na Venezuela com Hugo Chávez em 2002 (facções militares), em Honduras com Manuel Zelaya em 2009 (Parlamento, Suprema Corte de Justiça, Exército), no Paraguai de Fernando Lugo em 2012 e no Brasil de Dilma Rousseff em 2016 (Parlamento), na Bolívia de Evo Morales em 2019 (Polícia, Exército) – com uma contribuição mais ou menos discreta do USG (Governo dos EUA)…
Voltando a 2018, todas as instituições se mantiveram fiéis ao poder legítimo, prova, se fosse necessário, da fortaleza do sistema democrático na Nicarágua. Por outro lado, houve uma tentativa inconstitucional de derrubar o presidente eleito. O que no geral têm sido descritas como “manifestações pacíficas” tinham todas as características de uma rebelão antidemocrática levada a cabo por intermédio da violência insurrecional. A ela se opuseram, de maneira igualmente dura, o governo e sua base social sandinista, um movimento organizado de massas, calejado por uma longa história de agressões, e subestimado tanto pela oposição quanto pelo cartel de “observadores” a ela subservientes. [1]
Desde então (e inclusive antes), a direita, com dificuldade de enfrentar o casal Ortega-Murillo (Daniel, presidente; Rosario Murillo, sua esposa e vice-presidenta) “com justiça”, só pode culpar a si mesma. Nostálgica da época em que os “mendigos” eram aniquilados por suas políticas, não creem ser necessário elaborar e propor um programa ou um projeto para o país que faça seus compatriotas esquecerem o desastre social que causaram no passado. Nada – exceto o ódio a Ortega! E as ambições pessoais. Inclusive ambições familiares, no caso do clã Chamorro – Cristiana, Carlos Fernando, Juan Sebastián, Pedro Joaquín – que, como herdeiros de uma dinastia de presidentes conservadores [2], se consideram os legítimos donos da Nicarágua. De modo que, além dos grandes discursos destinados essencialmente aos estrangeiros, a confraria de personalidades, que supostamente combatem o sandinismo, se dedica a brigar entre si.
Da crise de 2018 sobrevieram duas correntes. Uma, a Alianza Cívica por la Justicia y la Democracia (ACJD), foi criada por bispos conservadores visando um suposto “diálogo nacional” realizado em maio e junho de 2018. Desde o início, a ACJD conta em seu seio com o setor empresarial e dos empregadores. Por seu lado, a Unión Nacional Azul y Blanca (UNAB) [3] representa, grosso modo, a “sociedade civil”, um punhado de “autoconvocados”, organizações não governamentais (ONGs) que defendem desde o “feminismo” até supostos “direitos humanos”, passando por um amontoado de partidos políticos sem representação na Assembleia Nacional, entre eles o Movimiento de Renovación Sandinista (MRS). Esses “dissidentes” da FSLN se converteram nos mais ferrenhos inimigos do antigo compañero Ortega desde que foram derrotados em um congresso extraordinário do partido em 1994.
Apresentando-se como a oposição “de esquerda”, o MRS não vacilou em apoiar a direita mais extremista nas eleições de 2008, 2011, 2012 e 2016. Pondo fim a uma ambiguidade mantida desde 1995 em torno do adjetivo “sandinista”, o partido renegou finalmente sua origem ao se rebatizar como Unión de Renovación Democrática (Unamos) em janeiro de 2021. Em 3 de março, sua presidenta Suyen Barahona, assim como Tamara Dávila, membro de sua comissão executiva e do Conselho Político da UNAB, assumiram abertamente seu matiz político ao participar de uma reunião virtual com o autoproclamado presidente Juan Guaidó para falar sobre “a luta pela democracia” tanto na Nicarágua quanto na Venezuela.
Em outubro de 2018, a ACJD e a UNAB anunciaram alegremente seu casamento. Sem concordarem com nada. A UNAB pedia uma greve geral [4] a fim de “derrubar Daniel”. A ACJD – que tem como diretor executivo Juan Sebastián Chamorro – preferia a pressão diplomática internacional visando impor reformas ao chefe de Estado com o menor dano possível aos setores econômicos. Assim teve início a uma interminável, às vezes grotesca, novela. Em janeiro de 2020, a ACJD anuncia sua separação “amistosa” com a UNAB para formar…”uma grande coalizão nacional”. Segundo José Pallais, seu diretor executivo (ex-ministro do Exterior de Violeta Chamorro), a ACJD estava “superando uma etapa de unidade” e passando para “uma etapa superior de integração”. Por sua parte, Medardo Mairena, líder de uma facção de camponeses antissandinistas, reclama autonomia. Diante tanta falta de coerência, até a conservadora revista britânico The Economist prevê que, devido à volta à normalidade e a paulatina recuperação da economia, Ortega vencerá as eleições de 2021.
Em 25 de fevereiro de 2020, com as mesmas pessoas e outras mais, surge uma Coalición Nacional, sem na verdade ter nascido. Seus estatutos incluem um “artículo” que estabelece que os “desacordos e dúvidas pendentes” podem ser discutidos posteriormente e que as diferenças fundamentais devem ser resolvidas por consenso. Racha do antigo Partido Liberal Constitucionalista (PLC), dos ex-presidentes conservadores Arnoldo Alemán (1997-2002) e Enrique Bolaños (2002-2007), a aliança Ciudadanos por la Libertad (CxL), ligada ao grande setor privado, nega-se a integrar o bloco e convida a todos os opositores a se unirem a um… “movimento unitário”, que ela liderará! Entretanto, a Coalición Nacional decola finalmente em 25 de junho, com a força da UNAB, a ACJD, o Movimiento Campesino, uma facção da Frente Democrática Nicaraguense (FDN; ex-contras [5] e alguns partidos políticos, o PLC, Restauración Democrática – PRD; evangélico – e Yátama – Indígenas da Costa Atlântica. Salta aos olhos o projeto político altamente democrático do agrupamento: “o fim último da coalizão”, confessou Alexa Zamora, do conselho político da UNAB, “não são as eleições [de 2021], nosso objetivo é tirar Ortega, nosso inimigo comum”. Medardo Mairena, do Movimiento Campesino, confirmou que “esta é uma nova etapa para unirmos e derrubar este regime ditatorial que tanto sofrimento causou” [6].
Entre todas essas belas pessoas já é possível encontrar uma dúzia de aspirantes à presidência no “pós Ortega”. E as brigas não param. Em 26 de outubro de 2020, a ACJD formaliza sua saída da Coalición para “promover uma plataforma política e eleitoral unitária e inclusiva”. Juan Sebastián Chamorro quis fazer acreditar que não se tratava de uma ruptura. “Queremos ter uma relação respeitosa com todos os opositores, mas nossa opção é voltar à questão da unidade, e a unidade não é só a Coalición Nacional”, disse seriamente. Em desacordo com esta particular concepção de unidade, dirigentes das cidades de León, Estelí, Madriz, Chontales entre outras abandonaram a ACJD e permanecem na Coalición. Mas em julho, foi o líder camponês Medardo Mairena que se desligou da Coalición em uma reunião virtual com o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). E explicou: os dirigentes da Coalición “se retiraram do Zoom da reunião (do grupo) e se conectaram ao Zoom de Luis Almagro, sem sequer se preocupar em nos perguntar ‘se vocês estivessem com Luis Almagro o que diriam’ e tampouco nos convidaram para participar” [7].
E então, para não ficar para trás, a chamada Coalición expulsa o PLC em 30 de novembro, o acusando de estar “sob o controle e e a influência” do “orteguismo”… Sabendo que dentro desse mesmo PLC um presidente de fato, Miguel Rosales, se opõe a María Fernanda Flores de Alemán (esposa do ex-presidente), que também tem suas ambições.
O primeiro passo para qualquer reflexão razoável sobre a Nicarágua, e que todos estrategistas sabem, é que não se deve lutar de forma dispersa. Diante de tamanha desordem, um bloco unido e disciplinado, com forte identidade e liderado por um reconhecido “líder”, tem todas as chances de vencer. Para ser vitorioso nas eleições de novembro de 2021, Ortega e a FSLN não precisam “decapitar” a oposição. Ela mesma cortará suas cabeças. No exterior (exceto talvez nos Estados Unidos), isso é ignorado. Na Nicarágua, até os líderes de direita estão bem cientes disso. Novamente em outubro de 2020, quando o Movimento Boliviano pelo Socialismo (MAS) frustrou o golpe e trouxe à presidência Luis Arce, sucessor de Evo Morales [8], o ex-deputado Eliseo Núñez Morales, membro da ACJD, alertou: “A oposição nicaraguense deve aprender uma lição, devemos deter as guerras internas, parar esses ataques permanentes que existem entre todos os grupos de oposição e gerar uma alternativa a Ortega”.
Nas campanhas eleitorais de 2001 e 2006, embaixadores estadunidenses alertavam aos nicaraguenses que era preciso impedir a qualquer custo a volta dos sandinistas. Que uma vitória de Ortega levaria à suspensão da ajuda e da cooperação. A ameaça era tanto mais ouvida porque, em 2001, por exemplo, dos 6,5 milhões de nicaraguenses, 10% viviam nos Estados Unidos, de onde enviaram dezenas de milhões de dólares em “remessas”. Ainda assim, o descontentamento popular era tanto que a chantagem deixou de funcionar. Em novembro de 2006, na pessoa do ex-banqueiro Eduardo Montealegre, a direita foi derrotada. Depois disso, Washington relançou sua “diplomacia paralela” (da força).
O universo midiático francês – Le Monde, Médiapart, Radio France etc. – sempre se gaba da suposta prática de “jornalismo investigativo”. Quando se trata de cobrir a América Latina, essas chamadas “Forças Tarefa” da informação se caracterizam sobretudo pelo conformismo e pelo “copiar e colar”. Felizmente, alguns profissionais… estadunidenses – Max Blumenthal, Ben Norton etc.- em mídias alternativas – The Grayzone [9], Behind Back Doors [10], The Intercept – salvam a honra da profissão promovendo um rigoroso trabalho de pesquisa. Então … são ignorados por seus queridos colegas da mídia chamada “mainstream”. De quem seriam arrancados a língua, caneta, teclado, microfone ou câmera se simplesmente mencionassem as informações, mesmo não citando a fonte, sobre os métodos usados por Washington e seu “poder brando” (soft power) para desestabilizar a Nicarágua (assim como muitos outros países da região, começando por Cuba e Venezuela).
Os principais atores desta guerra não convencional “made in USA” são: a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID); a Nova Fundação para a Democracia (NED), criada em 1983 por Reagan para substituir a CIA na organização de ações “não armadas” [11]; o Instituto Nacional Democrata (NDI;) e o Instituto Republicano Internacional (IRI), dependentes do Congresso estadunidense; a Freedom House, a Open Society de George Soros; e alguns comparsas menos conhecidos. O objetivo é se infiltrar (se for necessário), criar, financiar, formar, controlar e instrumentalizar as instituições da mítica “sociedade civil”: sindicatos, partidos políticos, instituições acadêmicas ou profissionais e, especialmente, a imprensa e as ONGs.
Entre 2010 e 2020, a USAID transferiu impressionantes US$ 68,4 milhões para a direita nicaraguense para ajudá-la a desacreditar o governo (interna e externamente) enquanto treinava novos “líderes” e criava uma massa crítica de oponentes. Dois anos antes do levante “espontâneo” de 2018, acrescentou outros US$ 8 milhões.
No centro da trama, a Fundação Violeta Barrios de Chamorro para a Reconciliação e a Democracia (FVBCH ou, para abreviar, a Fundação Chamorro) serviu de base para a redistribuição de parte substancial desse prêmio de loteria, US$ 14,6 milhões. Filha do respeitado Pedro Joaquín Chamorro, assassinado pela ditadura de Somoza poucos meses antes do triunfo da revolução sandinista, e de sua esposa Violeta, posteriormente presidente (1990-1997), Cristiana Chamorro (67 anos) está à frente da fundação. Durante a presidência de sua mãe, dirigiu a comunicação do governo assim como o jornal “da família” desde 1926, La Prensa.
Desde a FVBCH, que “promove a liberdade de imprensa”, colocaram os primeiros fluxos de dólares ofertados pela USAID, a NED e o IRI – a caridade começa em casa – nas contas dos membros da família: Carlos Fernando Chamorro, seu irmão, proprietário do semanário Confidencial e do Centro de Investigación y Comunicación (CINCO), próximo ao ex-MRS; Jaime Chamorro Cardenal, seu tio, redator chefe de La Prensa (da qual Cristiana é vice-presidenta), que tem uma linha editorial claramente definida: “As grandes vitórias dos Contras sobre o Exército Popular Sandinista”, foi a manchete do diário em 16 de dezembro de 2020, enaltecendo os tempos sombrios da agressão estadunidense [12].
Ao mesmo tempo, a fundação alimentou os canais de televisão: 10, 11 e 12, Vos TV, Radio Corporación, Radio Show Café con Voz. Assim como financiou as plataformas digitais: 100% Noticias, Artículo 66, Nicaragua Investiga, Nicaragua Actual, BacanalNica e Despacho 505… Deixaremos de mencionar, para não aborrecer o leitor [13], o grande número de jornalistas “independentes” que são regiamente remunerados para difundir, aberta ou subliminarmente, uma mensagem que tem o mérito da simplicidade: “Ortega tem de cair!” Como coroamento, a campanha incendiária de 2018 para exacerbar os ânimos instrumentalizando (em nome do meio ambiente) um grave incêndio ocorrido na Reserva da Biosfera Índio Maíz e, depois, (em defesa da justiça social) uma reforma da Previdência Social (retirada rapidamente diante dos protestos). A princípio, isso fez com que multidões de jovens saíssem às ruas, acreditando sinceramente que lutavam pela liberdade, sem saber a que interesses realmente serviam. O confronto mudou de alma e natureza quando a mesma “Camorra midiática” encorajou, apoiou e encobriu, sem qualquer distanciamento, as ações irresponsáveis de criminosos hiperviolentos e assassinos.
USAID – Fundação Chamorro – 100% Noticias
Desde 2009, a USAID destinou US$ 10 milhões aos meios de comunicação da oposição – dos quais mais de US$ 7 milhões passaram pela Fundação Chamorro de 2014 a 2021. Sabendo-se que, além disso, ela recebeu uma doação de 831.527 euros (mais de um milhão de dólares) da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID). [14] Temendo que esse fluxo de inocentes contribuições fosse pouco, um programa “Nicaragua Media” da Family Health International (FHI), uma organização com sede na Carolina do Norte e parcialmente financiada pelo governo dos Estados Unidos, concedeu 45 subvenções, que vão de US$ 10 mil a US$ 15 mil, aos meios de comunicação antissandinistas num total de US$ 2,8 milhões.
Em dez anos, o canal 100% Noticias recebeu uma subvenção (que chegou a US$ 43.100 em 2015) da USAID através da Fundação Chamorro. Ao difundir “fake news”, incitar à violência e conclamar as pessoas a pegarem em armas contra os sandinistas, esse meio de comunicação teve um papel central nos acontecimentos de 2018. Seu diretor, Miguel Mora, continua pedindo uma intervenção militar dos EUA na Nicarágua, semelhante à realizada em 1989 no Panamá.
O número e a diversidade de conexões estabelecidas para travar essa guerra não convencional são impressionantes. Além da mídia, existe um exército de ONGs de todos os tipos que, desde o fim dos conflitos armados da década de 1980, se abate sobre a América Central. É uma verdadeira teia de aranha.
A presidenta da fundação que leva o nome de sua mãe, Cristiana Chamorro, é também vice-presidenta das Voces Vitales Nicaragua, à qual sua organização aporta fundos da USAID. Berta Valle é a diretora da ONG Voces Vitales Nicaragua e proprietária da Voces en Libertad, dirigida por seu marido, Félix Maradiaga, que também é sócio de Javier Meléndez no Instituto de Estudos Estratégicos e Políticas Públicas (IEEPP, fundado por Maradiaga).
Em 25 de junho de 2020, ao ser perguntado na CNN em espanhol sobre a origem do dinheiro que financia sua revista “investigativa” Expediente Público, Javier Meléndez, engasgou mais do que respondeu: “Eehhh. Garanto que não vem da Venezuela nem de narcotraficantes… garanto que são fontes… como te explico… são fontes que cumprem uma linha de absoluta transparência, mas devido à crise na Nicarágua, os colaboradores nos pediram para não revelar a origem dos fundos que recebemos…”. Pode-se entender sua relutância em revelar a origem e o destino do dinheiro recebido. Sua esposa, Deborah Ullmmer, é diretora de programas para a América Latina e Caribe no NDI (Congresso dos Estados Unidos).
Deve-se acrescentar que muitos dos empregados de Meléndez, que trabalha desde Washington, também colaboram com a CINCO, uma plataforma dirigida por Carlos Fernando Chamorro (que é igualmente dono do semanário Confidencial), e que a ONG Voces Vitales Nicaragua tem sua sede no mesmo endereço da Fundação Chamorro – Km 8, Carretera Sur, Plaza San José -. Tanta proximidade e tanta falta de transparência sugere algumas perguntas. Por exemplo: essa falta de transparência não permitiria o desvio de centenas de milhares de dólares para particulares? Ou por que, ao invés de financiar diretamente Voces Vitales Nicaragua (e a outras muchas ONG), a USAID e o NDI a financiam através da fundação [15]?
USAID : US$ 80.000 para o Centro de Investigações da Comunicação (CINCO)
Mencionaremos aqui alguns bons exemplos, com algumas exceções, durante os cruciais anos 2017-2018 (e a partir de documentos oficiais ainda não expurgados – tanto a USAID quanto o NED evitam agora mencionar pelo nome alguns receptores de suas doações) [16].
USAID: US$ 4.740.000 em 23 de fevereiro de 2017 ao projeto Voces para Todos; US$ 2.071.639 em 2 de maio de 2017 à Voces Vitales Nicaragua; U$ 1.750.000 em 17 de julho de 2017 a Mujer, Voz Vital para el País; US$ 100.000, em 4 de maio de 2018 ao Movimiento Puente; US$ 643.214 em 23 de maio de 2018 para o projeto Creación de Plataformas; etc. Implementado de 2010 a 2020, para promover a contestação dos projetos de infraestrutura do governo, o Programa de Governança Municipal, por sua parte, recebeu a módica quantia de 29,99 milhões de euros.
NED: US$ 525.000 ao Hagamos Democracia desde 2014. Em 2017, US$ 111 mil à Comisión Permanente de Derechos Humanos de Nicaragua (CPDH); US$ 79 mil à Fundación Iberoamericana de las Culturas (FIBRAS); US$ 40 mil à Fundación para el Desarrollo Económico y Social (FUNIDES), vinculada ao Conselho Superior da Empresa Privada (COSEP); US$ 260 mil ao IEEPP, encabeçado em 2018 por Madariaga, um dos maiores incentivadores dos crimes (no sentido literal da palavra) na oposição; US$ 564 mil à Fundación Chamorro; uma soma não especificada à Popol Nah, uma ONG encabeçada por Mónica Baltodano, deputada do MRS de 2007 a 2011; US$ 305 mil a um grupo não identificado de organizações etc.
Fundação George Soros: US$ 6.148.325 à Fundación Chamorro o em 9 de março de 2018; US$ 574.000 da Open Society, do mesmo Soros, também à Fundación Chamorro.
Financiamentos USAID
Em relação aos beneficiários, os termos ONG e fundação criam confusão. Seria mais preciso falar em Organizações Para-Governamentais (GPO), em referência a Washington e seu Departamento de Estado. Todas elas participaram ativamente na preparação e planejamento do levante de 2018, em campanhas de desinformação nas redes sociais. Redes ocultas financiaram a logística dos manifestantes coordenados por líderes opositores como Medardo Mairena, Pedro Joaquín Mena ou Francisca Ramírez, assim como a violência, às vezes bárbara, dos “tranqueros” (participantes de barricadas). [17] Outros estavam (e continuam) destinados a serem fumaça e espelhos para o que se chama erroneamente de “comunidade internacional”.
O exemplo mais emblemático é a Associação Nacional de Direitos Humanos (ANPDH). Financiada pela NED, o NDI e a Open Society do banqueiro Soros, ela anunciou número exagerados de mortos (560 ao final do conflito), “sequestrados” e “desaparecidos” (1.300). Além das fronteiras da Nicarágua, suas estimativas foram reproduzidas por meios de comunicação tão diversos como Le Point (29 de julho e 9 de agosto de 2018), La Croix (11 de setembro), CNN em espanhol, Diario Las Américas (Miami), El País (Madri). Até mesmo no Médiapart circulou uma petição na qual acadêmicos e intelectuais “de esquerda”, entre eles um punhado de franceses que passaram das Brigadas Internacionais à Doutrina Monroe, denunciavam os “métodos ditatoriais do governo Ortega-Murillo” e exigiam “a formação de um governo de transição”, tomando como referência os “espantosos”, mas completamente “falsos”, números da ANPDH. [18]
Em 23 de julho de 2019, em uma conferência de imprensa em Manágua, três líderes desta ANPDH – Gustavo Bermúdez, Francisco Lanzas e Germán Herrera – acusaram seu diretor Álvaro Leiva de ter “embarcado” para Costa Rica, onde se exilou, com US$ 500 mil, entre eles mais de US$ 100 mil enviados pelo NED em 2017 e 2018. Revelaram também que em 2018, a ANPDH inflou artificialmente o número de mortos e feridos a fim de receber mais subvenções dos Estados Unidos.
Outras fantasias também foram rasgadas. Entre outras, a da Imaculada “Santa Amaya Coppens” do Cetri (Centro Tricontinental, com sede em Lovaina la Nueva, Bélgica, que se converteu na porta-voz quase oficial da oposição antissandinista no mundo francófono). Com dupla nacionalidade nicaraguense-belga (o que ajuda muito a sensibilizar os “pequenos burgueses” europeus, muito menos apegados às declarações dos sindicatos operários e camponeses nicaraguenses), figura destacada do Movimento Universitário 19 de Abril (fundado durante a insurreição), e detida duas vezes, Coppens foi apresentada na Europa, onde fez campanha após sua libertação, como integrante da esquerda nicaraguense. Isto contribuiu para isolar Manágua ainda mais.
Toda dor merece uma recompensa. Em 3 de março de 2020, Coppens foi a Washington receber o prêmio “Women of Courage”, que o Departamento de Estado dos EUA concede anualmente a doze mulheres que demonstraram “valor e liderança extraordinários”. Sem dúvida incomodados, seus amigos progressistas europeus evitaram publicar as fotos nas quais ela é vista, sorridente, recebendo a distinção das mãos de Melania Trump e do muito humanista secretário de Estado Mike Pompeo. Talvez concordem conosco que a consciência política não é mais o que era … Parece, infelizmente, que para eles a reflexão não foi levada adiante.
Melania Trump, Amaya Coppens, Mike Pompeo
Todos esses fatos são amplamente conhecidos e documentados na Nicarágua. Eles desempenharam um papel crucial na desestabilização interna, na tentativa de uma “revolução colorida” e na condenação do governo sandinista por parte das potências imperialista (EUA) e subimperialista (UE). Eles permitem justificar as ameaças e sanções de Washington.
Em 2019, enquanto ocorria uma tentativa de diálogo entre o governo e a ACJD, passaram de regime semiaberto para prisão domiciliar grupos de detidos durante o levante do ano anterior. Em 8 de junho, uma lei de anistia a favor de “todas as pessoas que participaram nos eventos que ocorreram desde 18 de abril de 2018” foi aprovada pela Assembleia Nacional. A anistia para delitos investigados e julgados, assim como para os delitos ainda não investigados – ou seja, os relativos à direção do MRS (agora UNAMOS), Félix Maradiaga, Cristiana e Juan Sebastián Chamorro, Violeta Granera – foi criticada pela oposição porque também anistiava as forças policiais e os sandinistas que cometeram abusos. Entretanto, permitiu a libertação da maioria dos presos “políticos”, incluídos líderes da subversão – Miguel Mora, Medardo Mairena, etc.
Por isso o processo iniciado pela justiça nicaraguense em 2 de junho contra diversos opositores, inclusive alguns dirigentes anistiados em 2019, poderia ser considerado curioso; a menos que um detalhe seja lembrado. O artigo 3º da Lei de Anistia estabelece que os que dela se beneficiarem “devem se abster de praticar novos atos que incorram em condutas que gerem os crimes aqui previstos. A inobservância do princípio da ‘Não Repetição’ resulta na revogação do benefício estabelecido por esta Lei”. Isto não proíbe em absoluto a oposição jurídica e democrática ao poder, mas censura a possibilidade de tentar desestabilizá-lo usando os mesmos métodos de antes.
Como vimos, as pesquisas apontam para uma vitória da Frente Sandinista nas eleições gerais de 7 de novembro. Diante desse provável e, acima de tudo, amargo fracasso de sua política, os Estados Unidos se moveram. Já se pode prever que Washington não reconhecerá o resultado eleitoral – como na Venezuela (2018 e 2020) e na Bolívia (2019), munido respectivamente de um presidente fantoche, Juan Guaido, e do governo de fato de Janine Añez.
A nova ação de desestabilização iminente, antes, durante ou depois das eleições, é chamada de “Assistência Responsável na Nicarágua” (RAIN). O programa prevê, de 11 de agosto de 2020 a 10 de fevereiro de 2022, a alocação de US$ 2 milhões para se conseguir “uma transição ordenada” do governo Ortega para “um governo comprometido com o Estado de Direito, as liberdades civis e uma sociedade civil livre”. Sem ao menos tentar esconder sua estratégia, o documento traz cem vezes a expressão “regime de transição” e antecipa um expurgo dentro do exército e da polícia sandinista. Como parte do programa anual YouthPower para o ano fiscal de 2020, a USAID também planejou alocar US$ 17 milhões para o programa de Jovens e Comunidades da Nicarágua Seguros, Capacitados e Resilientes (NYCSER) para financiar grupos de “jovens e feministas”. [19] Os mesmos jovens que foram às ruas em 2018?
“Assistência Responsável na Nicarágua” (RAIN)
Daniel Ortega não é um cordeiro disposto a esticar o pescoço para a faca do açougueiro. Para qualquer sandinista digno desse nome, a soberania da Nicarágua não se discute, se defende. Em 15 de outubro de 2020, o Parlamento aprovou a Lei 1.040, conhecida como “Lei de Regulamentação de Agentes Estrangeiros”. Embora não sejam proibidas por lei, as ONGs são obrigadas a relatar todo financiamento estrangeiro, especificando a identidade de seus doadores, a quantidade de fundos recebidos, a finalidade das doações e uma descrição de como o dinheiro foi gasto.
Em 30 de outubro aparece a lei (nº 1042) sobre crimes cibernéticos. A lei permite processar e punir difamação, ameaças, atentados contra a integridade física de crianças e mulheres, roubo de identidade, pirataria ou espionagem cibernética, assim como quem dissemine “fake news”.
Finalmente, em 21 de dezembro, a Assembleia Nacional aprovou (70 votos a favor, 15 contra, 4 abstenções) a Lei 1055 de “defesa dos direitos do povo à independência, à soberania e à autodeterminação para a paz”. A lei estabelece que “qualquer pessoa que exija, apoie e aceite a imposição de sanções ao Estado da Nicarágua” não poderá se apresentar às eleições gerais. Também fica excluído quem fomente ou financie um golpe de Estado, sabote a ordem constitucional, incite a ingerência estrangeira ou participe, com financiamento externo, em atos de terrorismo e desestabilização. A oposição reclama contra esta “lei guilhotina”. Mas não se dá conta que ela é inspirada na Lei 192 de 1 de fevereiro de 1995, sancionada por seu ícone Violeta Chamorro: “Não poderão ser candidatos à presidência ou vice-presidência da República (…) aqueles que lideraram ou financiaram um golpe de Estado, aqueles que alteraram a ordem constitucional e, como consequência de tais atos, assumiram a chefia do governo e ministérios ou magistraturas nos demais poderes do Estado.”
“Já me perguntaram se vou lançar minha candidatura à presidência da república”, comunicou por escrito, em 12 de janeiro de 2021, Cristiana Chamorro. “Minha resposta é que não acho que seja esse o momento, acho que a primeira coisa que devemos fazer é conseguir uma grande unidade em torno de uma visão consensual do país (…)”. Como sempre, a guerra eclodiu entre a Coalición Nacional, a UNAB e o Partido Ciudadanos por la Libertad (CxL), cujo presidente Kitty Monterrey acaba de declarar que as duas organizações mencionadas “não existem”.
Uma semana antes, em aplicação da Lei 1.040, o Ministério do Interior anunciou que as pessoas e organizações afetadas deveriam se registrar como “agentes estrangeiros” antes de 5 de fevereiro, sob pena de perderem a personalidade jurídica. No dia 6 de fevereiro, para evitar a aplicação da lei e pela necessidade de prestação de contas, Cristiana Chamorro anuncia o encerramento “voluntário” e suspensão das operações de sua fundação.
Além das pomposas declarações de princípios, se desnudar publicamente, ou seja, admitir que é financiada por Washington, tiraria toda credibilidade diante de seus compatriotas. No entanto, com a sombra da legislação pairando sobre sua cabeça, Chamorro está começando a falar com mais frequência de sua provável candidatura à presidência. À sua volta, e em parte pelas mesmas razões, emanadas da UNAB, ACJD e CxL, crescem como cogumelos os candidatos a uma ou mais primárias possíveis: Félix Maradiaga, Medardo Mairena, Miguel Mora, Juan Sebastián Chamorro, Arturo Cruz.
A justiça segue seu curso. A análise das movimentações financeiras da fundação no período 2015-2019, de acordo com o Ministério Público, revela claros indícios de “lavagem de dinheiro”. Entre outras inconsistências: enquanto US$ 7 milhões apareciam no saldo credor da fundação ao fechá-la, essa quantia apareceu pouco depois em três contas bancárias pessoais de Cristiana Chamorro. Quando intimada em 27 de maio, ela se recusou a responder às perguntas dos investigadores sobre o uso de recursos recebidos de uma potência estrangeira e movimentos financeiros suspeitos. Limitou-se a dizer: “O Departamento de Estado dos Estados Unidos rejeitou as supostas denúncias de lavagem de dinheiro contra a Fundação Violeta Barrios de Chamorro com base em auditorias realizadas por eles, que não encontraram evidências de lavagem de dinheiro ou desvio de fundos.” [21] Não poderia ser mais claro: para ela, as jurisdições estadunidenses seriam as únicas em vigor em uma Nicarágua reduzida à condição de colônia!
Quando se percebe estar entre a cruz e a espada, escolhe-se a melhor opção: quatro dias depois, em 1º de junho, Cristiana Chamorro anuncia sua intenção de participar, por meio do CxL, das primárias de direita organizadas pela ACJD para disputar a presidência da República. Quando, no dia 3, é detida e colocada em prisão domiciliar, torna-se “a estrela em ascensão da oposição”, [21] “a mais séria rival do chefe de Estado Daniel Ortega” [22] e mártir da democracia.
Desde então, já ocorreram cerca de 20 prisões, de conhecidos ativistas colocados em prisão domiciliar ou em prisão preventiva por três meses: Arturo Cruz, em 5 de junho, no aeroporto de Manágua, voltando dos Estados Unidos de posse de um grande soma de dinheiro não declarada; Maradiaga; Juan Sebastián Chamorro; Miguel Mora; os líderes da UNAMOS (ex-sandinistas, alguns com um passado glorioso) Dora María Téllez, Víctor Hugo Tinoco, Hugo Torres Jiménez, Ana Margarita Vigil, Suyen Barahona, Tamara Dávila…
Antonio Belli e Gerardo Baltodano são procurados por evadirem-se de uma intimação judicial para investigar a FUNIDES. Carlos Fernando Chamorro, diretor do Confidencial e de outros jornais, deixou o país com a esposa após uma batida policial em sua casa em 21 de junho.
Nem todos são candidatos à Presidência da República! Mas alguns se tornaram apressadamente “candidatos”, como é o caso de Pedro Joaquín Chamorro, preso em 25 de junho. Perguntado no dia anterior na CNN e na Univisión sobre sua possível candidatura, ele, sabendo-se no olho do furacão, logo colocou o colete salva-vidas que lhe confere o status de “perseguido” e respondeu afirmativamente.
Terror na Nicarágua! A grande Internacional da Ordem Global está em festa: Estados Unidos, a Organização dos Estados Americanos (OEA), a União Europeia (UE), os meios de comunicação e suas “causas justas”, as belas almas da “esquerda” europeia, as burocracias dos direitos humanos (da burguesia)… Não há razão para se surpreender. O mesmo alvoroço envolveu o governo boliviano de Luis Arce quando, no final de março último, foram detidos ou processados a ex-presidenta de facto Janine Añez, vários de seus ministros e oficiais da policia e das Forças Armadas envolvidos no golpe de Estado de 2019.
“Os Estados Unidos estão profundamente preocupados com os crescentes sinais de comportamento antidemocrático e a politização do judiciário na Bolívia, à luz da recente detenção preventiva de ex-funcionários do governo interino”, se atreveu a comunicar o governo de Joe Biden, seguido por seus “poodles” da UE, da Conferência dos Bispos Católicos e dos grupos de extrema direita bolivianos, as chamadas organizações locais de direitos humanos e os infalíveis “Tartufos”: Anistia Internacional e Human Rights Watch (HRW).
Uma porta-voz desta última organização, Tamara Taraciuk, pede agora que a questão da Nicarágua seja levada ao Conselho de Segurança da ONU.
“Essas pessoas estão sendo indiciadas porque pediam publicamente medidas coercitivas contra a economia nicaraguense, por terem conspirado para cometer atos terroristas e por estabelecerem uma estrutura fraudulenta de ONGs sem fins lucrativos para a bilionária indústria de lavagem de dinheiro com fundos enviados do exterior, o que constituiu uma intervenção política no país visando provocar uma desestabilização catastrófica”, resumem os jornalistas Jorge Capelán e Stephen Sefton. [23] Falando de Manágua na Cúpula da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), que o apoia, assim como a esquerda latina em geral, do Grupo Puebla ao Foro de São Paulo [24], Daniel Ortega ironizou: “Os Estados Unidos estão nos pressionando por causa dessas vinte pessoas, então eu lhes digo: libertem imediatamente as quatrocentas pessoas que vocês detiveram e estão mantendo na prisão por assaltar o Capitólio!” [25].
A América Latina não se equivoca, denuncia regularmente – Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador (sob Rafael Correa) – ferramentas de desestabilização usadas pelos Estados Unidos contra os governos progressistas. Muito antes da agressão lançada contra Caracas após a morte de Hugo Chávez, a USAID, entre 2004 e 2006, já tinha enviado cerca de US$ 15 milhões para mais de 300 ONGs presentes na Venezuela, oferecendo-lhes “apoio técnico e treinamento” por meio de seu Escritório de Iniciativas de Transição (OTI). [26]
Mais recentemente, em um país aparentemente menos “ácido”, Jesús Ramírez, porta-voz da presidência mexicana, revelou que a agência de notícias Artigo 19, de oposição ao governo do presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO), é financiada por Washington (e pelas fundações Ford e Heinrich Böll, Google, UE e embaixadas do Reino Unido, Holanda, Alemanha e Irlanda).
Algumas dicas: à frente do Artigo 19 por dez anos, Darío Ramírez tornou-se diretor de comunicação da ONG Mexicanos contra a Corrupção (MCCI). Entre os benfeitores da MCCI estão a USAID (US$ 2,3 milhões em três anos, concedidos em 2018), o NED e o Conselho Empresarial Mexicano (CMN), base dos empresários mais ricos e poderosos do país. Enfrentando a grande eleição legislativa, regional e municipal em 6 de junho de 2021, três partidos notoriamente corruptos, mas firmemente opostos ao projeto reformista da AMLO – Partido Revolucionário Institucional (PRI), Partido da Ação Nacional (PAN) e Partido da Revolução Democrática (PRD) – se unem no âmbito do projeto “Sí por México“, liderado pelo empresário Claudio González Guajardo, presidente do MCCI de 2016 a julho de 2020. [27] Este último foi substituído à frente da ONG por María Amparo Casar Pérez, coordenadora do Ministério do Interior no governo do neoliberal Vicente Fox (2000-2006). [28]
As antigas acusações da AMLO de que agências estrangeiras estavam tentando minar seu governo culminaram com uma nota diplomática enviada em maio à embaixada dos Estados Unidos no México. Numa entrevista coletiva, López Obrador acusou o governo estadunidense de “um ato de intervencionismo que viola nossa soberania”.
Portanto, a Nicarágua seria uma ditadura, se for dado crédito à maquina de propaganda “ianque”. Entretanto, se observamos com atenção, Ortega está certo quando critica Washington e a legião de hipócritas que arremetem contra seu país.
Repressão ilegítima em 2018? “O FBI tem uma memória muito boa e um braço longo”, disse o porta-voz do FBI, Steven D’Antuono, em 13 de janeiro de 2021, em uma coletiva de imprensa conjunta com o procurador-geral de Washington. A mensagem foi dirigida aos participantes pró-Trump da invasão do Capitólio, que as autoridades identificaram por meio de fotos e vídeos. Cerca de 465 pessoas foram indiciadas no Tribunal Distrital dos Estados Unidos em Washington, mais de 200 foram acusados de delitos menores (“conduta desordeira”, “apoio passivo”) e até agora foram libertados sob fiança; mais de 130 outros, sob acusações mais graves – “agressão”, “violência extrema”, “posse ilegal de arma de fogo” – podem pegar até 20 anos de prisão. Os quase 40 manifestantes que entraram no Capitólio portando armas letais ou perigosas podem pegar até 10 anos de prisão, de acordo com o Departamento de Justiça. [29]
Além disso… Como a doutrina merece ser aplicada além da fronteira, um porta-voz do Departamento de Estado declarou recentemente: “violência e vandalismo são um abuso [do] direito de manifestação pacífica”. É verdade que se referia à Colômbia e seu movimento social reprimido com violência (mais de 70 mortos) pelo “amigo”, radical de direita radical, Iván Duque.
Assim que a Lei 1040, conhecida como “Lei de Regulamentação de Agentes Estrangeiros” foi aprovada na Nicarágua, o Departamento de Estado dos EUA emitiu uma nota considerando que a “lei autoritária” colocava em risco a democracia. Curioso… Nos Estados Unidos existem muitas ONGs nacionais e estrangeiras, às vezes financiadas sem limites ou restrições por governos estrangeiros ou partidos políticos, mas com uma condição: que se registrem como… “agentes estrangeiros” no Departamento de Justiça, que apresentem declaração de imposto de renda e cumpram a legislação da Lei de Registro de Agentes Estrangeiros (FARA, na sigla em inglês). A FARA exige que as pessoas que atuam como agentes estrangeiros “divulguem periodicamente ao público sua relação com a entidade estrangeira e as atividades, receitas e despesas de apoio a essas atividades”. “O objetivo principal da lei é promover a transparência em relação à influência estrangeira nos Estados Unidos” e permitir “que o público estadunidense e seus legisladores conheçam a fonte de certas informações destinadas a influenciar a opinião pública, a política e as leis dos Estados Unidos, facilitando assim uma avaliação de tais informações pelo governo e pelo povo.” [30] Claro, o texto oficial acrescenta que “as leis que são aplicáveis a todos os estadunidenses podem ser aplicadas às ONGs, como restrições sobre o recebimento de contribuições de uma organização terrorista”. Também há restrições ao apoio financeiro direto a candidatos políticos por estrangeiros.
No fim, a única diferença entre a Nicarágua e os Estados Unidos é que aqui se referem à “Lei 1040” e lá à “FARA”…
Na Divisão de Segurança Interna do Departamento de Justiça, uma unidade FARA é responsável pela administração e aplicação da legislação. Para isso, identifica as infrações, revisa os autos para detectar falhas e audita os livros e registros dos declarantes. O descumprimento deliberado do FARA acarreta pena de prisão de até cinco anos, multa de até US$ 250 mil ou ambas. [31]
Treze países da União Europeia possuem leis relativas ao financiamento político estrangeiro. Na Suécia, receber dinheiro de um outro país ou de uma pessoa agindo em seu nome é crime se o objetivo for influenciar a opinião pública em questões relacionadas ao governo ou à segurança nacional. [32] Na Itália, receber este tipo de fundos para atividades políticas nacionais é punível com pena não inferior a 10 anos de prisão (artigos 243 e 246 do Código Penal).
Só por diversão: um cidadão norte-americano poderia, como na Nicarágua (e na Venezuela), sem nenhum inconveniente, pedir a uma potência estrangeira que impusesse sanções a seu país, ou mesmo exigir e fazer campanha ativamente por uma invasão militar? As Diretrizes de Sentenças Federais dos Estados Unidos (USGG), Seções 2381-2390, contêm definições e penalidades para crimes de traição, incitação à traição, rebelião ou insurreição, conspiração sediciosa, incitação para derrubar o governo, registro de organizações estrangeiras etc. Todos esses delitos estão sujeitos a sanções penais. Todos esses crimes são processados na esfera federal e, dependendo da gravidade, podem resultar em multas, proibição de candidatura, prisão ou morte. Fique tranquilo … Não estamos pedindo aqui a câmara de gás para ninguém! Tampouco em Manágua. A Constituição da República, que entrou em vigor em 9 de janeiro de 1987, sob o governo sandinista de Daniel Ortega, afirma no artigo 23: “a pena de morte não existe na Nicarágua.” Os bárbaros não são aqueles que cremos que são.
Cooperação espanhola
Depois de receber os diretores do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh) e do IEPP, que acabavam de ter sua personalidade jurídica extinta, o Quai d’Orsay (Ministério de Relações Exteriores da França), em 13 de dezembro de 2018, reiterou sua “profunda preocupação com a deterioração da situação dos direitos humanos na Nicarágua”. No dia 16 de julho anterior, ele pediu às autoridades de Manágua que “parassem com a repressão”. O governo francês gosta de dar aulas. Mesmo que isso signifique perder a memória. Tão rápido em condenar o governo sandinista, parece ter esquecido o episódio dos coletes amarelos: 12.107 prisões, 10.718 sob custódia policial, 3.100 condenações, incluindo 400 sentenças de alguns meses a três anos de prisão, com mandado de prisão (prisão imediata ) [33].
Ao apelar à “libertação imediata da Sra. Cristiana Chamorro”, ao unir sua voz com a da Espanha em particular e da UE em geral para condenar, entre outras coisas, as leis de “liberticidas” sobre segurança cibernética – “Lei Putin”, segundo ao Financial Time – e sobre “agentes estrangeiros”, Paris persiste. Engraçado! Em uma “Tribuna pela Europa”, publicada em 5 de março de 2019 em vários jornais europeus, o presidente Emmanuel Macron propôs “que seja criada uma Agência Europeia para a Proteção das Democracias que fornecerá especialistas europeus a cada Estado-Membro para proteger seu processo eleitoral contra ataques cibernéticos e manipulação. Neste espírito de independência, devemos também proibir o financiamento de partidos políticos europeus por potências estrangeiras”.
No mesmo espírito, à frente da Secretaria-Geral de Defesa e Segurança Nacional (SGDSN), Stéphane Bouillon anunciou, em 2 de junho de 2021, que pretende instituir, a partir do início de setembro, um serviço com nacional responsável para rastrear interferências estrangeiras no campo da informação. “Não se trata de fazer inteligência, esclareceu, mas de identificar o que está se tornando pandêmico no plano da informação e se provém de um país estrangeiro ou de uma organização estrangeira, que visa desestabilizar o Estado no plano político [34] ”.
Há algum tempo (setembro de 2020), Raphaël Glucksmann, o homem que, modestamente, à frente de seu pequeno grupo Place Publique (próximo ao Partido Socialista), quer “refundar a esquerda francesa” sobre uma base “europeísta” e “Otanesca”, assumiu a chefia de uma comissão especial do Euro-parlamento sobre “a interferência estrangeira em todos os processos democráticos da União Europeia, incluindo a desinformação”. Com o objetivo de “avaliar o nível de ameaças, sejam campanhas de desinformação, financiamento de partidos ou campanhas políticas, ou ataques híbridos”, a comissão deverá “examinar a transparência do financiamento e das campanhas partidárias, verificar também as ações e normas nacionais como influências externas por meio de empresas, ONGs ou tecnologias”. Ao comentar a sua nomeação, Glucksmann sublinhou: “A era da ingenuidade europeia acabou. “
Não nos admiremos: a da Nicarágua também.
Notas
[1] https://www.medelu.org/Nicaragua-une-contre-enquete
[2] Fruto Chamorro Pérez (1854-1855), Pedro Joaquín Chamorro Alfaro (1875-1879), Emiliano Chamorro Vargas (1917-1921), Diego Manuel Chamorro Bolaños (1921-1923) e finalmente Violeta Barrios de Chamorro (1990-1996 )
[3] Azul e branco: cores da bandeira da Nicarágua.
[4] Em espanhol, “paro” significa “greve”. Mas, como na Colômbia nas últimas semanas, o conceito vai muito além de uma interrupção da atividade assalariada (especialmente porque o setor informal reúne a maioria dos trabalhadores). É uma paralisia do país, em protesto, pelos mais diversos setores da sociedade.
[5] Contrarrevolucionários que, treinados, equipados e financiados por Washington, confrontaram militarmente a revolução sandinista ao longo da década de 1980.
[7] https://100noticias.com.ni/politica/101623-lider-campesino-motivos-retirarse-alianza/
[8] https://www.medelu.org/Avec-Evo-ou-sans-Evo
[9] https://thegrayzone.com/category/nicaragua/
[11] No New York Times de 1º de junho de 1986, o primeiro presidente do NED, Carl Gershman, foi direto: “Seria terrível para grupos democráticos em todo o mundo serem vistos como subsidiados pela CIA. A Fundação foi criada porque não podíamos continuar fazendo isso. “
[13] Luis Galeano, María Lily Delgado, Miguel Mora Barberena, Dino Andino, Gerald Chávez, Roberto Mora, Lucía Pineda e Wendy Quintero, Jenifer Ortiz, Héctor Rosales, Álvaro Navarro, Uriel Hernández, Uriel Pineda, Carlos Salinas, Jackson Orozco, Letícia Gaitán, Fidelina Suárez, Patricia Orozco, Anibal Toruño.
[14] https://thegrayzone.com/2021/06/01/cia-usaid-nicaragua-right-wing-media/
[15] https://trincheradelanoticia.com/2021/06/29/la-dualidad-de-la-integridad/
[16] https://www.usaid.gov/stabilization-and-transitions/closed-programs/nicaragua
[17] Manifestantes operando nas barricadas (“tranques”).
[20] https://www.canal4.com.ni/avances-investigacion-en-contra-fundacion-violeta-chamorro-lavado-dinero/
[21] La Presse, Montreal, 4 de junho de 2021.
[22] Le Monde, Paris, 3 de junho de 2021.
[23] Resumen Latinoamericano, Buenos Aires, 27 de junho de 2021
[24] https://diariodecuba.com/internacional/1623950766_31993.html – https://www.grupodepuebla.org/manifiestoprogresista/
[26] https://wikileaks.org/plusd/cables/06CARACAS3356_a.html
[27] Apesar desta aliança, AMLO manteve a maioria na Câmara dos Deputados.
[29] Os réus que cooperarem e se confessarem culpados de alguns dos crimes mais graves podem ter suas sentenças reduzidas para três ou quatro anos atrás das grades.
[30] https://www.state.gov/non-governmental-organizations-ngos-in-the-united-states/
[31] https://www.justice.gov/nsd-fara/frequently-asked-questions#1
[32] [13] http://www.aalep.eu/ban-donations-foreign-interests-political-parties-th-eu
[34] Le Monde, 6 a 7 de junho de 2021.
*Publicado originalmente em Mémoires de lutte | Tradução por Carlos Alberto Pavam