Por Lucia Helena Issa.
O domingo de outono no Rio de Janeiro já se aproximava do crepúsculo quando recebi de um amigo a notícia de que o médico brasileiro Victor Sorrentino havia sido preso pelas autoridades egípcias em Luxor.
Eu havia passado os últimos dois dias compartilhando com ativistas brasileiras o vídeo do assédio cometido pelo médico bolsonarista contra uma jovem muçulmana.
As cenas do vídeo em que a jovem egípcia muçulmana explicava a ele como eram feitos os milenares papiros do país, tentando se expressar da melhor forma possível, enquanto o sujeito perguntava, às gargalhadas e em português, coisas como “vocês gostam bem duro, né?” me davam náuseas.
O comportamento misógino e criminoso de Sorrentino despertou em mim, como mulher e jornalista, não apenas indignação, mas a solidariedade e o afeto que sinto pelas muçulmanas em geral, que receberam com esta jornalista com imenso afeto e respeito no Egito, na Palestina, Líbano e Turquia.
O vídeo avançava e o ”cidadão-de-bem-bolsonarista–cristão-exemplar” continuava dizendo as palavras pseudo eróticas que conhecemos bem, as ofensas sexistas e misóginas em português que ela, claro, não entendia.
Coisas ditas no Brasil por homens que não conhecemos, em algum momento de nossas vidas e que nos constrangem, nos ofendem, nos agridem, mas que continuam a ser sussurradas para nós no metrô, nos bares, nos parques, nas fábricas, nas lojas ou numa festa cristã.
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Victor Sorrentino, o “médico exemplar”, compartilhou seu crime de assédio alegremente, na certeza de que ficaria impune, com cerca de um milhão de seguidores em uma rede social. Mas o médico bolsonarista, que já havia cometido um assédio vergonhoso com outra mulher na Austrália, enganara- se.
Victor Sorrentino foi preso pelas autoridades policiais em Luxor, no Egito, na tarde de domingo, 30 de maio.
A prisão do assediador brasileiro só foi possível graças a uma mobilização conjunta entre centenas de mulheres egípcias e brasileiras, entre elas eu, solidárias à jovem muçulmana, e indignadas pelo comportamento sexista, humilhante e misógino do médico de extrema-direita.
A imensa ironia desse episódio, especificamente para mim, é que Victor Sorrentino é um seguidor de Olavo de Carvalho, um dos maiores islamofóbicos do Brasil e um dos gurus ideológicos de Bolsonaro.
Descobri também que Sorrentino fazia parte de vários grupos de bolsonaristas islamofóbicos. Um desses grupos, liderados por Olavo de Carvalho, que teve recentemente seu canal no YouTube desmonetizado por discurso de ódio, me deixou assustada e perplexa em 2017, quando me atacou por vários dias nas redes, por minha decisão de acolher e dar voz aos refugiados muçulmanos no Brasil e de luta contra a intolerância religiosa.
Eu havia acabado de voltar de uma estadia no Campo de Refugiados palestinos de Chatila, no Líbano, onde eu testemunhei a dignidade, a capacidade de renascer e jamais perder a esperança, a resistência não-violenta e o exemplo das mulheres refugiadas que conheci.
Assim que voltei do Campo de Refugiados, decidi contar ao Brasil tudo o que aprendi com as muçulmanas, vivendo no Campo como se eu fosse refugiada, comendo o que elas comiam, dormindo nos mesmos lugares, partilhando da mesma dor e da mesma esperança. Queria contar aos brasileiros que o Islã deu ao mundo os primeiros cientistas, o primeiro hospital do mundo em Bagdá, os primeiros instrumentos cirúrgicos, o imenso médico muçulmano Avicena, o filósofo Ibin Rushd, a primeira Universidade do mundo, fundada no Marrocos no ano de 859 por uma mulher, queria contar tudo isso em artigos e vídeos e contei. Mas logo após os primeiros vídeos, os seguidores de Olavo de Carvalho, vindos exatamente dos grupos de bolsonaristas islamofóbicos e da mesma cidade de Sorrentino, Porto Alegre, começaram a escrever nos comentários dos vídeos que eu deveria ser “estuprada” porque estava defendendo a paz com muçulmanos, que eu era “traidora do cristianismo” e que eu “merecia ser estuprada e morrer”.
Foram seis dias de terror.
Mas também foram seis dias de muito afeto, solidariedade e manifestações de carinho de muçulmanos do Brasil, Chile e Portugal, muçulmanos que jamais vi e que se uniram para ajudar, responder aos criminosos e proteger essa jornalista cristã de uma forma que me emocionou.
Foi muito triste e aterrorizante, sobretudo por meus pais e minha filha, uma menina de apenas 12 anos, que passou vários dias sem conseguir dormir por medo de que aqueles concretizassem as ameaças que faziam.
Passadas algumas semanas, os bolsonaristas criminosos dos mesmos grupos de Victor Sorrentino, liderados por Olavo de Carvalho, encontraram novos alvos para perseguir, como fazem os pseudocristãos, os que sequestraram o cristianismo e o legado de Jesus par justificar guerras, ódios, genocídios e apartheid.
Mas a grande ironia desse caso é que Sorrentino via e comentava os vídeos islamofóbicos de Olavo de Carvalho, um homem que já afirmou que “todos os muçulmanos são extremistas e loucos”. Mas a realidade do Brasil e do mundo é muito diferente do universo paralelo criado pelos islamofóbicos bolsonaristas.
O registro de assédios e de violência sexual no Brasil vem crescendo assustadoramente enquanto apontamos os dedos para os muçulmanos e os chamamos de “violentos e estupradores”.
Foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil apenas em 2018, maior índice desde que o estudo começou a ser feito em 2007.
A maioria das vítimas (53,8%) são meninas de até 13 anos. Segundo as secretarias de Segurança Pública de todos os estados e do Distrito Federal, quatro meninas até essa idade são estupradas por hora no Brasil. Ocorrem em média 180 estupros por dia no Brasil e o perfil do agressor é, muitas vezes, o de uma pessoa muito próxima da vítima, como um tio, um padrasto, um professor.
O índice de feminicídios no Brasil é um dos mais altos do mundo, o Brasil não é um país muçulmano.
Os refugiados muçulmanos que conheci jamais me ameaçaram de estupro ou colocaram minha vida em perigo.
Homens como Victor Sorrentino, hoje preso no Egito por assédio sesexual, sentem- se mais viris humilhando e até mesmo. mostrando o rosto de uma moça muçulmana, e se sentem autorizados a agir assim em um país em que o chefe do poder executivo já afirmou que “o feminicídio não existe”.
Bolsonaristas pastores, médiuns ou “cristãos exemplares” como o médico brasileiro têm sido presos por vários crimes no Brasil e no exterior nos últimos anos.
O médium brasileiro João de Deus foi condenado pelo estupro de dezenas de mulheres, assim como o pastor evangélico Marcos Pereira ou como.centenas de padres condenados por pedofilia em várias partes do mundo.
Não sei ainda como terminará a saga do médico assediador que não sabia que em um país muçulmano existem leis que protegem as mulheres de pessoas como ele.
O que sei nesse momento é que o ódio religioso aos muçulmamos e a outras minorias no Brasil costuma ser um irmão perverso da hipocrisia e um filho nefasto da ignorância.
Lucia Helena Issa é Jornalista, escritora e embaixadora da paz por uma organização Internacional.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.