Por Venício A. de Lima.
Uma das características da grave crise política que o país atravessa tem sido a questionável relação estabelecida entre os responsáveis pela operação Lava Jato e os meios de comunicação.
A estratégia de vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, ou a suspensão do sigilo seguida da entrega seletiva de informações à mídia foi descrita e defendida pelo juiz Sérgio Moro em artigo de 2004. Para ele, trata-se de “(manter) o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva” e “(garantir) o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas (obstruam) o trabalho dos magistrados” mesmo sob “o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado (…) pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios”. [cf.http://ferreiramacedo.jusbrasil.com.br/artigos/187457337/consideracoes-sobre-a-operacao-mani-pulite-maos-limpas ].
A cobertura política
Graças ao trabalhado de uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenado pelo professor João Feres Júnior, a partir de 2014, qualquer interessado pode acompanhar sistematicamente a cobertura política que a grande mídia brasileira oferece.
No caso específico da Operação Lava Jato, o LEMP faz esse acompanhamento nos jornais Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de S. Paulo e no Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão desde o dia 27 de outubro de 2014, isto é, o dia seguinte ao segundo turno da eleição presidencial. Os resultados estão disponíveis em http://www.manchetometro.com.br/cobertura-2015/cobertura-2015-operacao-lava-jato/
Verifica-se que a cobertura “negativa” em relação ao governo, à presidente Dilma e ao Partido dos Trabalhadores tem sido constantes desde que o acompanhamento se iniciou e fica cristalino, não só a execução da estratégia da Lava Jato, como a partidarização unânime da mídia.
Protestos
Embora aplaudido por seguimentos da classe média urbana como parte do combate “missionário” à corrupção, o viés de “oposição” ao governo, à presidente Dilma e ao Partido dos Trabalhadores não tem passado despercebido de advogados, juristas, estudiosos da comunicação e, sobretudo, militantes de diferentes movimentos sociais que identificam a seletividade, as omissões, as ênfases, os enquadramentos, as distorções como ameaça à democracia e a direitos fundamentais duramente conquistados na história política recente do país.
Uma das consequências dessa percepção é que manifestações populares tem incluído protestos dirigidos à conduta partidarizada dos meios de comunicação, em particular, ao maior e mais influente deles, o Grupo Globo que, ademais, carrega em sua história o ônus de haver apoiado não só o golpe civil-militar de 1964, como admitido publicamente quase meio século depois [cf. http://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604], mas de ter sido um dos principais suportes do regime autoritário que durou 21 longos anos.
Nota Pública
Reagindo ao que chamam de “atos de violência perpetrados contra jornalistas e meios de comunicação” as associações empresariais representativas dos concessionários do serviço público de rádio e televisão [ABERT e ABRATEL] e dos proprietários de jornais [ANJ] e revistas, [ANER] acrescidos de forma inédita pela Representação no Brasil da UNESCO, estiveram em audiência com o Ministro-chefe da SECOM-Presidência da República no dia 10 pp. com o objetivo de “(instá-lo) a coordenar junto aos órgãos federais competentes, em especial o Ministério da Justiça, a adoção de todas as mediadas necessárias que garantam a segurança e o livre exercício da atividade jornalística”. No dia seguinte, 11 de março, publicaram uma Nota Pública de meia página em jornais do país.
O que primeiro chama atenção na Nota é ter sido assinada também por um organismo das Nações Unidas, sob a justificativa – aliás muito cara aos empresários da comunicação – da defesa da “liberdade de expressão e do acesso à informação”.
Seria o caso de se perguntar: combater manifestações de protesto que reclamam da cobertura política comprovadamente partidarizada da grande mídia coloca em risco a liberdade de expressão de quem? Ou ainda: liberdade de expressão é igual à liberdade das empresas que exploram comercialmente as concessões de RTV e/ou são proprietárias de jornais e revistas?
A Nota afirma que: “É equivocado o pensamento daqueles que creem que os veículos de comunicação são protagonistas do processo político. A imprensa cumpre seu papel constitucional de cobrir e reportar os fatos de interesse da sociedade”.
O entendimento de que cabe à imprensa “cobrir e reportar os fatos de interesse da sociedade” é um princípio constitucional ou trata-se de função auto atribuída à imprensa nas democracias desde que existam pluralidade e diversidade para a formação de uma opinião pública autônoma e independente?
Será que os subscritores da Nota ignoram as toneladas de papel que já foram gastas na publicação de textos da ciência política e dos estudos de comunicação que demonstram que, nas sociedades contemporâneas, a mídia vem ocupando o lugar que antes era exclusivamente exercido pelos partidos políticos?
Será que os subscritores da Nota pretendem, em pleno século XXI, ressuscitar para os oligopólios de mídia a superada “teoria do mensageiro” como se fossem apenas repórteres neutros de “fatos de interesse da sociedade” [ver a propósito o excelente artigo da profa. Sylvia Moretzsohn “O jornalista e a falácia do mensageiro” inhttp://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/_ed822_o_jornalista_e_a_falacia_do_mensageiro/]?
E a Nota diz ainda que “as entidades signatárias (…) reiteram o seu compromisso diário com a sociedade brasileira de cobrir todo e qualquer fato com isenção (sic), de modo assegurar ao cidadão o pleno acesso à informação e à pluralidade de ideias e de pensamento”.
No Dicionário Aurélio a palavra “isenção” significa “imparcialidade, neutralidade”, exatamente o oposto do que revelam os dados do LEMEP de acordo com as mais atuais técnicas de acompanhamento e avaliação de coberturas jornalísticas.
Quais as razões?
Nestes tempos sombrios talvez fosse mais republicano que “as entidades que representam a Comunicação Social e o escritório da UNESCO no Brasil” refletissem sobre quais as razões que levam milhares de pessoas, país afora, a protestarem contra a cobertura política que vem sendo oferecida.
Ao contrário do que possa parecer, cada vez mais brasileiros percebem que a seletividade, as omissões, as ênfases, os enquadramentos e as distorções, na verdade, escamoteiam interesses ocultos.
Para a grande mídia o que está em jogo, de fato, é a sua credibilidade. E a retórica hipócrita de elaboradas Notas Públicas, mesmo que subscritas pela UNESCO, não consegue esconder a crua realidade dos fatos.
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Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da Universidade de Brasília (aposentado), pesquisador sênior do CERBRAS-UFMG e autor de Cultura do Silêncio e Democracia no Brasil, EdUnB, 2015, dentre outros livros.
Fonte: Pátria Latina.