– um beijo no meio da avenida –
Por Raul Longo.
A “Grande Noite” nos era, sobretudo, a noite da liberdade.
Naquela juventude, ainda quase adolescente, ao deixarmos a escola onde cursávamos o ginásio, numa noite de sexta feira vejo uma grávida lua cheia desenhando um buraco de luz no céu e, ansioso por fugir da escuridão instaurada no país pela ditadura militar, decreto aos colegas o caráter irrevogável da Grande Noite.
Desde então, para nós todas as sextas-feiras passaram a ser a Grande Noite.
Quantas carraspanas tomamos de nossos pais por nos esquecermos nas madrugadas já do sábado, ainda comemorando a Grande Noite da sexta!
Jamais entenderiam que a Grande Noite era, acima de qualquer circunstância, a noite da liberdade.
“Os tarados, o exército, os pervertedores, a polícia, os bandidos!” – alardeavam extemporaneamente. E como explicar-lhes que na Grande Noite se aboliam todos os medos? Para seus desesperos, nos despíamos de todos aqueles pavores e previsões drásticas, olvidando-nos até da repressão doentia daqueles anos 60.
Pois a Grande Noite se estendeu ao longo de nossa juventude pela década seguinte, impondo-se ao terror das notícias sobre a Guerra do Vietnam e superando até nossas dores pelos companheiros caídos. Tínhamos certeza de que em algum futuro aquela Grande Noite seria as de toda a semana, de todos os anos, revogando o estado de Quarta-Feira de Cinzas imposto ao continente.
Na Grande Noite sempre fazíamos nosso sabá, o ritual de bruxas. Queimávamos na fogueira de nossa indignação todos os grandes inimigos da liberdade: “Garrastazu, Goebbels, Geisel, Goering!”, relacionei alfabeticamente num anátema comemorativo à morte de Francisco Franco, ditador de Espanha, durante uma Grande Noite de 1975.
Por essa época já estava na Bahia e é preciso dizer que as Grandes Noites não eram só de maldições, muito pelo contrário! Na maioria delas festejávamos nossos amores e as boas amizades. Evocávamos nossos heróis da liberdade: Luther King e Malcom X, Jean Paul Sartre e Marighela, Mahatma Gandhi e Agostinho Neto, Che Guevara e Simon Bolívar.
Também nas Grandes Noites de sexta-feira bebíamos nos lábios de nossas paixões. E como me embriaguei na Bahia! Mas em Salvador, naquela época, as sextas-feiras já se faziam plenas de paz e boa vontade desde a manhã. Bem mais tarde Gal Costa veio a cantar que na Bahia “toda sexta-feira todo mundo é baiano”. E eu era baianíssimo no subir e descer daquelas ladeiras todo de branco em homenagem à Oxalá. Ah! Quanto me orgulhava quando naquelas diagonais senhores e senhoras, negros ou brancos, igualmente devotos nos ritos ao orixá, me contemporizavam à geração de suas idades num aceno de mão e um cumprimento sorridente: “- Epa Babá!”
“- Epa Babá, meu pai!!” “- Epa Babá, minha mãe!” “- Epa Babá, camará!” – íamos nos reconhecendo, felizes com a certeza na liberdade do futuro de nossa gente.
Agô Bahia!
Depois, Recife. E na tristeza do recrudescimento da opressão social, a Grande Noite se desfazia em luares de prata onde se misturavam nossas lágrimas às águas do Capibaribe para junto com o Beberibe formarem a imensidão do Oceano Atlântico. Mas claro que também as tínhamos em sorrisos de alegria pelo forró e pelo baião. Por Luís Gonzaga e Lampião.
Éramos eufóricos, sim, por maiores as diversidades daqueles tristes tempos.
Foi dessa euforia que se espantou minha amiga Camila, na noite da sexta-feira passada – 11 de maio -, ao sairmos de uma reunião do pessoal que faz o Portal Desacato.
No decorrer de tantas decepções similares ao 13 de maio da abolição que nunca houve; da manutenção do poder ditatorial pelas elites econômicas e a mídia, mesmo após os militares retornarem às casernas; da ameaça de Bornhausen em reinstaurar a Quarta-Feira de Cinzas por mais 3 décadas; acabei me esquecendo da Grande Noite e nem me dei conta que estávamos em uma sexta feira.
Pensei em explicar à amiga que a euforia dos realizadores do Portal é coisa própria de todos os que, a despeito das inúmeras dificuldades, conseguem realizar, edição a edição, um veículo de expressão da verdade do que sentem, do que compreendem e do que acontece.
Não há como conter essa euforia quando se realiza algo honesto em meio ao emaranhado de mentiras de uma mídia financiada pelas altas quantias despendidas pelos patrocinadores de interesses exclusivos, ligados a grupos de espoliação, apoiadores de governos de opressão, cerceadores da real liberdade de expressão, sejam políticas, econômicas ou sociais.
Poderia ter comentado de minha igual euforia a cada lançamento de novo número de alguma publicação sob minha editoria, acreditando que aquele seria mais lido do que a edição do vazio ou do factoide da semana, nos veículos das grandes mentiras. Naqueles tempos nem poderia considerar a realidade de que, então (e mesmo pós-ditadura), o público brasileiro ainda preferia mesmo era a inverdade, a manipulação de conceitos, o engodo e o silêncio imposto pelos que exploram a crença em uma eterna segunda feira.
Como dizíamos em nossas tardias despedidas de domingos de samba: “Amanhã é dia de branco!”, pois na segunda-feira como em todos os demais dias, teríamos de iniciar atividades para enriquecer os donos do consumo do inútil e desnecessário. Do degradado e degradante de consciências e ambientes. E se em meus tempos de jornalista previamente reconhecesse tão acachapante realidade, desistiria e não entusiasmaria meus companheiros com aquela mesma necessária euforia de todos ali do Desacato, entusiasmados pelas evoluções do Portal em seu novo formato, as novas ferramentas de consulta, novos colaboradores, mais cobertura continental e crescente número de visitas e indicações.
Mas para essas lembranças teria de explicar à Camila, que não é brasileira, o que foram nossas décadas de Quarta Feira de Cinzas. E, por mais amigos sejamos, não tive coragem de confessar que a principal razão da euforia dos do Desacato era a confirmação do sucesso da publicação a despeito da estupidez sem justificativas de quem impediu aquela confraternização por um ato de liberdade, no espaço social do SINTUSFC.
Camila é inteligente e sei que não iria julgar nosso país e nosso povo por um único desajustado às funções e razões da instituição que representa. Mas, e a vergonha? Como explicar a alguém de outro país que em pleno século 21 no Brasil ainda existe gente com esse tipo de mentalidade? E dentro de uma universidade! A mais importante deste estado!
Quem teria coragem?
Pena ter esquecido a Grande Noite, pois se a lembrasse seria uma forma de justificar à Camila a tamanha euforia que a impressionou na equipe do Desacato. Talvez ela não entendesse do que se trata, mas muito mais fácil contar-lhe a história do século passado do que admitir que no Brasil deste século ainda perdure tal comportamento.
Como avaliou o Raul Fitipaldi, editor do Desacato, esses acasos são tão insignificantes que não há porque remoê-los e se para explicá-los é tão difícil, melhor esquecê-los. Tanto que eu mesmo, por já ter esquecido esse gênero de ocorrências, acabei esquecendo-me também das Grandes Noites, até porque no Brasil de hoje, com tantos motivos para se comemorar, qualquer noite pode ser uma sexta feira.
Ainda há o que se lamentar, evidente! Esse mesmo impedimento à festa do Desacato no SINTUSC confirma os nós que ainda atam algumas de Quarta Feira de Cinzas que perambulam pelo país, mas ou se desatam por percepção de nossa nova realidade ou mais dia menos dia se estrangulam no próprio nó, solitários em meio a nossa tanta euforia.
Assim considerando deixei Camila no seu táxi e fui pegar o último ônibus para Santo Antônio. O das 23:15. Aquele encontro com o pessoal do Desacato, em substituição à comemoração suspensa no SINTUSC, se deu no salão de festas de um prédio em frente ao Bar Koxixos, ao lado do empreendimento VVOA. E havia um ponto de ônibus logo à frente.
Só me dou conta de que o ponto é para os coletivos que ali adentram na bifurcação para a Agronômica, quando vejo o de Santo Antônio seguindo direto pela Beira Mar em direção ao Terminal Trindade. Quis me aborrecer com minha falta de observação, mas já então lembrado de que aquela era uma Grande Noite, deixe-me tranquilamente aguardando o próximo das 00:15, este sim por aquele trajeto como em todos os sábados e domingos.
A repentina lembrança da Grande Noite, não me veio pela certeza do sábado, não foi provocada pela euforia dos companheiros do Desacato nem pelo desfrute da companhia da bela Camila. Também foi muito antes de encontrar em minhas correspondências o que a mídia convencional não noticia, informando que o Presidente Lula recebeu na Holanda o Four Freedoms Awards que em português se traduz para “Prêmio Internacional das Quatro Liberdades”.
De mais esse prêmio só me inteirei depois de acordar com sol já alto. Outro reconhecimento à realização de uma antiga euforia, mas na madrugada de 11 para 12 de maio, em que o calendário de 2012 indica como a de mudança do ciclo da Lula Cheia para o Quarto Minguante, não foi nem mesmo a Lua quem me fez recordar das Grandes Noites de sexta- feira.
É que quando me aproximava do ponto de ônibus, reparei ali um rapaz sentado, imaginando-o naqueles tubulares e desconfortáveis bancos amarelos. Só quando mais próximo o percebo numa cadeira de rodas. Cumprimentamo-nos e me pus ali ao lado, no banco. De repente, num bocejo, o rapaz se espreguiça reclamando saudade de sua cama. Correspondi à simpatia da confidência preocupando-me com sua necessidade de ajuda para subir no coletivo e, temendo não lhe servir o mesmo que perdi logo depois, perguntei em qual embarcaria.
Explicou que não esperava ônibus algum, mas sim a esposa que viria encontrá-lo. Enquanto conta morar ali perto e ter saído às 6 da manhã para trabalhar e ao final do dia seguido para a faculdade, imagino que a mulher o apanharia de automóvel.
Dalí a pouco chega a esposa. Ao contrário do que previ, caminhando. Beijam-se, no que antes se dizia “selinho”. Ele me lança um olhar de confirmativo orgulho e a moça me dirige o boa noite, entregando uma rosa e alguns pacotes que o rapaz ajeita no colo. Depois de cheirar o perfume da flor, me dirige outra olhada orgulhosa.
Ele destrava as rodas da cadeira, despedem-se, e ela o vai empurrando em direção à faixa de travessia da Beira Mar. Atravessam as quatro ou cinco pistas e sob meu olhar longínquo, lá na ciclovia à margem da praia, observo-os em direção à Ponta do Coral.
Onde poderiam residir daquele lado? Deduzi que o perceptível esforço da mulher para empurrar o peso do rapaz teria de se redobrar até a mais próxima – porém distante – faixa de travessia que os permitisse voltar para aquele mesmo lado, pois no ajardinamento da bifurcação que só notei depois de perder o ônibus, também não se previu a necessidade de acesso aos deficientes físicos.
Mas nem essa imprevidência urbanística teve o poder de me aborrecer, porque já então eu me recordara de estarmos em meio a uma Grande Noite. E a lembrança me veio junto com meu próprio abafado grito solitário e eufórico pelo que testemunhei acontecer numa das “ilhas” que dividem as pistas da Beira Mar.
Enquanto aguardavam novo fechamento do sinaleiro ao fluxo veloz dos automóveis para o centro da cidade, a moça curvou-se sobre as costas da cadeira de rodas que empurrava e se fez num beijo verdadeiro e profundo no rapaz sentado à sua frente.
Sem dúvida, era uma Grande Noite!
Tomara que às dele seja possível o efeito da euforia que naquele beijo, alheio e distante, me fizeram tremer as pernas.