A grande disjuntiva oligárquica e a decrepitude do Sistema de Representação

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O atual cenário da conjuntura política brasileira pode ser resumido como uma “grande disjuntiva oligárquica”, diz o cientista político Cláudio Couto à IHU On-Line. Segundo ele, de um lado é possível notar o fortalecimento das instituições de controle, a exemplo do Ministério Público, do Judiciário e da Polícia Federal e, de outro, “a decrepitude do Sistema de Representação — as Casas Legislativas, os partidos políticos e a classe política profissional como um todo”. E ele explica: “Enquanto os primeiros ganham força para agir sobre os segundos e legitimidade para fazê-lo, estes últimos passam exatamente pelo processo inverso. Enquanto o insulamento é uma força para os primeiros e um instrumento para sua ação, sendo uma fonte da qual retiram sua legitimidade, ele se mostra ambíguo para os segundos, pois ao mesmo tempo que lhes assegura autoproteção (uma autoproteção oligárquica), por essa mesma razão lhes solapa a legitimidade — e a ilegitimidade é o elemento crucial a caracterizar uma oligarquia”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-LineCouto comenta a atuação do Judiciário na cena política, os impactos da condenação do presidente Lulapara a esquerda e as novas alianças que se rearticulam durante a crise. “As alianças são as que vemos ao acompanhar a política nacional. Uma coalizão em torno do governo Temer e das reformas, outra se opondo a ela. Mas são alianças frágeis e fraturadas, que tendem a se desfazer assim que comece para valer a corrida eleitoral”.

Na avaliação dele, na eleição presidencial de 2018, “o mais provável é que tenhamos uma grande fragmentação, ao estilo das eleições de 1989, mas com um agravante: aquele era o momento de construção do atual sistema partidário, enquanto este é o momento de decrepitude desse sistema”, adverte.


Cláudio Couto | Foto: Agência PúblicaCláudio Gonçalves Couto é graduado em Ciências Sociais, mestre em Ciência Política e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou pós-doutorado na Universidade de Columbia, nos EUA. Atualmente é professor adjunto do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas – FGV-EAESP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a sua leitura da atual conjuntura política brasileira e da situação política em que o país se encontra?

Cláudio Couto – A conjuntura se compõe de uma ampla gama de aspectos, de modo que é difícil isolar apenas alguns. Contudo, eu tentaria sintetizar o cenário mais amplo numa grande disjuntiva oligárquica: de um lado, o fortalecimento das instituições de controle — os órgãos do Sistema de Justiça (Ministério Público e Judiciário), a Polícia Federal e, em menor medida, os Tribunais de Contas e as Controladorias; de outro lado, a decrepitude do Sistema de Representação — as Casas Legislativas, os partidos políticos e a classe política profissional como um todo. Enquanto os primeiros ganham força para agir sobre os segundos e legitimidade para fazê-lo, estes últimos passam exatamente pelo processo inverso. Enquanto o insulamento é uma força para os primeiros e um instrumento para sua ação, sendo uma fonte da qual retiram sua legitimidade, ele se mostra ambíguo para os segundos, pois ao mesmo tempo que lhes assegura autoproteção (uma autoproteção oligárquica), por essa mesma razão lhes solapa a legitimidade — e a ilegitimidade é o elemento crucial a caracterizar uma oligarquia.

Para piorar o quadro, as instituições do Sistema de Justiça, apesar da legitimidade popular que vêm amealhando ao atacar os atores do Sistema de Representação, também atuam de forma oligárquica, pois não estão sujeitos a controles efetivos e asseguram a si mesmos imensos privilégios (como os supersalários de juízes e promotores) e impunidade por abusos cometidos no exercício de suas funções.

IHU On-Line – Que relações estabelece entre a atuação do Supremo Tribunal Federal no caso do mensalão e a atuação do STF nas investigações que envolveram e ainda envolvem a Lava Jato hoje?

Cláudio Couto – São dois momentos distintos. O primeiro foi um ponto de inflexão, uma ruptura, pois inaugurou uma era de prevalência das instituições do Sistema de Justiça sobre as do Sistema de Representação. Em boa medida isto é desejável num Estado democrático de direito, já que ninguém pode se colocar acima da lei e a nossa classe política profissional se esmerou, secularmente, em proteger-se de sanções efetivas para suas transgressões. O problema é que não existem controles efetivos, nem responsabilização por aquilo que fazem os atores do Sistema de Justiça, o que lhes permite operar como uma espécie de poder absoluto. Afinal, a quem pode alguém se queixar dos abusos do Judiciário? Ora, apenas ao próprio Judiciário. E em se tratando de um Sistema de Justiça que tem a seu dispor uma polícia dotada de autonomia, produz-se um risco grave. Mesmo que haja indícios, ou mesmo evidências do cometimento de crimes por políticos e empresários a eles ligados, é preciso respeitar o devido processo legal e não condenar com base em convicções, ainda que plausíveis, em vez de provas. A histórica impunidade tornou-se o pretexto para a atuação judiciária na exceção, o que é um perigo para as liberdades e para a democracia. O STF tem responsabilidade por isto, já que deveria atuar como um limitador dos abusos do restante do Judiciário.

IHU On-Line – Como avalia a decisão do TSE de absolver a chapa Dilma-Temer? Quais são as consequências dessa decisão?

Cláudio Couto – Pareceu-me uma decisão de caráter partidário. E eu não digo de caráter político, mas partidário mesmo. Fosse outro (ou outra) o presidente do dia, acredito que alguns daqueles magistrados teriam decidido de forma diferente. Isso foi explicitado pelo voto do relator, que expôs de maneira cristalina a contradição de Gilmar Mendes em dois momentos do processo, um quando a presidente era Dilma, outro quando já era Temer. Nessa contradição, os que lhe acompanharam no voto, seguiram-no na lógica.

IHU On-Line – Qual é o impacto da condenação de Lula para o cenário político e para a esquerda de modo geral?

Cláudio Couto – Creio que o impacto tem efeitos ambíguos. Por um lado, é mais um golpe fortíssimo na esquerda — mas principalmente no PT, seu partido hegemônico —, que se segue ao Mensalão, ao impeachment de Dilma e à devastação eleitoral dos pleitos municipais de 2016. Por outro lado, se a condenação for confirmada em segunda instância, ao mesmo tempo que joga o PT por terra — inclusive porque o partido aposta todas as suas fichas nessa candidatura, queimando as pontes para qualquer outra alternativa —, por isso mesmo abre espaço para o surgimento de alternativas no campo da esquerda, seja em sua ala mais radical (como é o caso do PSOL), seja mais à centro-esquerda (como seria a Rede). Contudo, isso pode levar tempo, já que as organizações alternativas ao PT não apenas são fracas e pequenas, mas contam com uma estrutura institucional que não favorece seu crescimento. Eu me refiro especialmente às regras de acesso ao tempo de TV e rádio durante as campanhas criadas pela minirreforma eleitoral.

IHU On-Line – Quais diria que são hoje as principais crises envolvendo o governo Temer? Quais as chances de ele se manter na presidência até 2018?

Há uma fadiga mobilizatória, tanto à direita como à esquerda, que produz este cenário de marasmo

Cláudio Couto – A principal crise envolvendo o governo Temer tem a ver com a sua pouca legitimidade, em parte oriunda de sua origem no impeachment, em parte decorrente do fato de que Temer e o PMDBestão envolvidos em problemas muito mais graves do que aqueles que afetavam o PT e criaram um pretexto confortável para que multidões fossem às ruas, pedindo o impeachment de Dilma. Há uma fadiga mobilizatória, tanto à direita como à esquerda, que produz este cenário de marasmo que vemos hoje. Os batedores de panela não voltam às suas varandas porque seu problema com o PT era mais ideológico que moral, e a base social do petismo está ao mesmo tempo cansada e desmoralizada, já que sofreu derrotas demais (o que cansa) e sabe que seus líderes também cometeram deslizes sérios, que não podem ser escondidos como se fossem todos invenção da “mídia golpista” e da Lava Jato.

IHU On-Line – Quais são as novas alianças partidárias e políticas que emergem no atual momento, especialmente por conta da crise do governo Temer? Ainda nesse sentido, como os partidos têm se articulado em relação ao governo?

Cláudio Couto – As alianças são as que vemos ao acompanhar a política nacional. Uma coalizão em torno do governo Temer e das reformas, outra se opondo a ela. Mas são alianças frágeis e fraturadas, que tendem a se desfazer assim que comece para valer a corrida eleitoral. A meu ver pouca coisa emergirá efetivamente como alianças para o momento seguinte. O mais provável é que tenhamos uma grande fragmentação, ao estilo das eleições de 1989, mas com um agravante: aquele era o momento de construção do atual sistema partidário, enquanto este é o momento de decrepitude desse sistema. Surge espaço para a entrada de novos atores, mas eu tenho dúvidas de que esses atores tenham força suficiente para ocupá-lo. Podemos ainda ter um descolamento entre a disputa presidencial e a congressual, com a eleição de um presidente sem base e sem capacidade de conexão com a maioria parlamentar. Isso, se ocorrer de fato ano que vem, produzirá um cenário sinistro para o próximo governo e para o país.

IHU On-Line – O que seria uma saída para resolver a crise política que o país vive hoje?

As eleições de 2018 são incertas: pode surgir algo efetivamente renovador mas há o risco do messianismo e do bonapartismo

Cláudio Couto – É difícil desenhar uma saída. Porém, o que me parece é que, diante do colapso do sistema partidário oriundo da redemocratização, que não tem qualquer legitimidade, seria o momento de abrir espaço para alguma renovação mais radical do quadro político, com a possibilidade da criação de novas organizações, sem lastro com as antigas. O problema é como equacionar isto de forma a regular as campanhas, com tempo de TV e rádio distribuídos de forma razoável. E isto é crucial, pois apesar do paulatino ganho de importância da internet, ainda é na TV e no rádio que se fazem campanhas e se ganham eleições. Claro que tudo isto traz um risco, que é o do messianismo e do bonapartismo, com um líder populista que atropele as instituições. Mas esse risco já existe com as regras atuais, sobretudo se for produzido aquele descolamento sinistro entre presidente e Congresso, que apontei anteriormente.

IHU On-Line – Um dos temas em discussão hoje é uma reforma no sistema eleitoral. O distritão lhe parece uma boa opção para resolver as questões envolvidas na chamada crise de representação?

Cláudio Couto – O distritão, a meu ver, é o pior sistema eleitoral imaginável. Pioraria tudo o que já temos de ruim, sem produzir nada de bom. Seria o sistema preferido dos candidatos capazes de arrecadar muito dinheiro, personalizaria a campanha ao extremo, acabaria com debates centrados em torno de ideias e aniquilaria as minorias. Ou seja, todos os problemas da crise de representação se exacerbariam.

IHU On-Line – Muitos analistas apontam para a incerteza em relação à eleição de 2018. O que podemos esperar em relação ao futuro da próxima eleição?

Cláudio Couto – Como eu já disse, as eleições de 2018 devem ser as mais fragmentadas de nossa história recente, com o agravante de que o sistema de representação oriundo da redemocratização entrou em colapso. Serão eleições incertas: pode surgir algo efetivamente renovador e capaz de produzir aprimoramentos na democracia, mas há o risco do messianismo e do bonapartismo. Não devemos menosprezar o perigo que uma liderança autoritária, fascista mesmo, como Bolsonaro, representa. E temos também as versões atenuadas desse perigo. Doria, com seu discurso antipolítico e seu pseudoliberalismo (que, na verdade, oculta um elitismo autoritário), é um bom exemplo disto.

 

Autor de Mafalda: Quino

Fonte: IHU-Unisinos.

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