Em Boca do Acre, extremo sul do estado do Amazonas, modos de vida conflitantes disputam o espaço e o futuro da floresta amazônica. Nos últimos 20 anos, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisa e Estatística (Inpe), 2,77 mil km² do município foram devastados, queimados e transformados em pasto. Uma área maior do que a soma dos territórios de Salvador (BA), Belo Horizonte (MG) e São Paulo (SP).
Hoje a cidade amazonense, sede de um dos maiores frigoríficos do estado, tem 200 mil cabeças de gado e uma população de 33 mil pessoas. Em 2018, o Ibama estimou que 50% dos bois abatidos no local vinham de áreas embargadas pelo órgão. São sinais do avanço dos pastos sobre a floresta nativa.
Neste ano, ao pedir o afastamento do ministro Ricardo Salles por improbidade administrativa, o Ministério Público Federal (MPF) cita o caso de Boca do Acre como um exemplo da ineficácia dos mecanismos de combate do desmatamento. Segundo o MPF, a derrubada da floresta no município triplicou em maio deste ano, na comparação como mesmo período do ano passado, “embora tenha havido ações de comando e controle com participação das Forças Armadas, IBAMA, ICMBio e Polícia Federal”.
Enquanto o ciclo do desmatamento e do grande agronegócio se fortalece, as populações ribeirinhas perdem paulatinamente as condições materiais de vida. São famílias pobres que habitam as beiras dos rios Purus e Arapixi e dependem diretamente da preservação da floresta para garantir sustento, com a coleta de castanha-do-Brasil, cacau nativo, andiroba, buriti, entre outros produtos da Amazônia.
Uma única cooperativa atua no município e busca formas de valorizar os produtos da floresta, contribuindo na renda dos ribeirinhos e na manutenção da floresta em pé. A Cooperativa Agroextrativista Mapiá e Médio Purus (Cooperar) funciona desde 2003 e hoje envolve 360 famílias ribeirinhas e indígenas na comercialização e no beneficiamento do cacau nativo, da castanha-do-Brasil e de outros produtos do extrativismo, como a copaíba, o buriti, o tucumã, etc.
Na Amazônia, outras centenas de pequenas cooperativas e associações buscam potencializar e distribuir a riqueza dos produtos da floresta de forma sustentável. Para isso, é preciso enfrentar a lógica de cadeias produtivas que movimentam grandes quantias de dinheiro – o extrativismo movimentou R$ 702,9 milhões na região, em 2018, segundo o IBGE –, mas que são marcadas pela informalidade e pela desigualdade.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o presidente da Cooperar, José Antônio da Conceição Camilo, considera que o cooperativismo e o extrativismo são as melhores ferramentas disponíveis para proteção da floresta amazônica. Camilo relata os desafios em conscientizar as famílias ribeirinhas e enfrentar o assédio dos grandes fazendeiros da região, mesmo diante da falta de estrutura básica e de políticas públicas nas comunidades.
Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato: Cooperativas e associações têm despontado como alternativas de desenvolvimento sustentável para a região amazônica. Qual o potencial desse modelo?
José Antônio da Conceição Camilo: (O cooperativismo) é a única maneira que tem para a gente preservar a floresta. Por exemplo, essa área que nós estamos atuando, ela está protegida. A cooperativa Cooperar é a única cooperativa que tem aqui no município que nós moramos. Através desse trabalho do cacau nativo e da castanha é que está se conservando essa mata em pé.
Esse é o objetivo da cooperativa: conservar a natureza viva e levar trabalho aos produtores que tanto têm lutado e que só têm sido passados para trás por atravessadores.
[Os produtores] estão se conscientizando e pararam de vender seu pedacinho de terra e agora estão plantando cacau, fazendo SAF [sistemas agroflorestais], trabalhando com outra atividade em vez de derrubar ou vender terra para atravessadores. Porque tem os atravessadores que fazem, os fazendeiros mesmo não vêm.
Os fazendeiros são quem têm. São os senhores governadores, senadores, os grandes. Aí tem os laranjas deles que vêm, compram a área, enchem tudo de capim. Se ele comprar 100 hectares, ele manda roçar e semeia o capim de avião, mais 100 ou 200 hectares que têm em volta vira tudo capim. Como é que o agricultor vai viver? Não tem condições.
BdF: Para quem nunca esteve na região amazônica, é difícil imaginar as dificuldades logísticas impostas pelas longas distâncias, transporte aquático e a falta de estrutura básica de energia, comunicação e água potável. Como a cooperativa enfrenta esses desafios?
JC: A logística é muito cara. Se não tiver um patrocinador ligado na história, não anda. Esse ano coletamos 11 toneladas de cacau nativo. Quando é época de coleta, temos que pagar, para cada um dos nossos três barcos, o salário de duas pessoas, todas as despesas com mercadorias, óleo diesel, a gasolina.
Nunca veio um prefeito aqui saber o que que nós estamos fazendo. A gente encara porque temos coragem, temos fé na natureza.
Temos as oficinas para instruir o produtor sobre o trabalho da cooperativa. Trabalhamos fevereiro, março, abril e maio. Em junho, trazemos o produto dos núcleos para a cidade já em ponto de exportação. Mas até chegar a esse ponto, a gente tem que manter as barcaças lá nos setores. Temos cinco núcleos. Cada um desses tem que ter duas pessoas, para receber o produto, fazer a quebra do cacau, a secagem e entregar ensacado. A cooperativa tem que dar essa assistência todinha.
Aqui na região ninguém quer ver esse trabalho. Nós temos a cooperativa desde 2003 e nunca veio um prefeito aqui saber o que que nós estamos fazendo. Encaramos porque temos coragem, fé na natureza, de que ela nos protege e dá força para nós mantermos ela em pé. É muito grande a quantidade de pessoas que vivem porque a floresta está em pé. Se destruir ela destrói muitas famílias.
A gente está nessa luta. É meio devagar, difícil, perigoso, porque aqui a gente trabalha diretamente nos rios, lagos, igarapés, evitando insetos, as feras bravas. Tudo a gente encara. E temos que correr atrás de dar assistência pro produtor, temos que fazer oficinas, recebê-los aqui, mostrar pra eles a atividade da cooperativa. A logística fica muito cara mas é recompensador, é bom. Quando a gente vê o produtor com a casa nova, com a canoa nova, com o motor de popa na canoa, saindo do remo, ter sua boa malhadeira, seu bom terçado, seu par de botas, isso para cooperativa é honra.
BdF: Para além dos desafios logísticos, há também uma disputa de modos de vida em curso na Amazônia. Como o avanço do agronegócio tem impactado na vida das famílias extrativistas?
JC: O fazendeiro chega por trás, bota um laranja que conquista o produtor e compra a área de onde ele extrai o cacau, a castanha, o tucumã, o cumaru-de-cheiro, todas madeiras de lei. É daquilo que ele tem que viver, com a família, filho, neto, bisneto.
O atravessador joga uma mixaria na mão dele, ele vende a área. O fazendeiro abre uma fazenda,vem com motosserra, acaba com tudo. O produtor vai para cidade, aluga uma casa porque não dá pra comprar, quando dá três meses, os filhos estão virando bandidos e as filhas prostitutas, e ele está bêbado na calçada sem nada no bolso. Isso se vê muito na região.
BdF: Esse cenário se intensificou com o governo Bolsonaro?
JC: Pra pior. [Com Bolsonaro], avançou pra pior. Conforme o que ele conversa lá, o pessoal da laia dele vai agindo aqui. Dando trabalho pro ICMBio, pro Ibama.
Ele não valoriza o trabalho que nós estamos fazendo. O governo não valoriza isso. O que ele quer é que as cooperativas saiam da frente para eles poderem começar a fazer fazenda, destruir a floresta. Eles entram acabando com tudo, as castanheiras eles transformam em madeira e saem quebrando tudo, acabando com tudo. Depois que o Bolsonaro entrou piorou 100%.
Ele quer é que as cooperativas saiam da frente.
BdF: As políticas anti-ambientais do governo também fizeram o país perder importantes financiamentos para projetos sustentáveis, como foi o caso do congelamento do Fundo Amazônia…
JC: A gente tinha um projeto [com o Fundo Amazônia], que, com esse desmoronamento do presidente, também perdemos. Mas a gente não vai desistir por isso, porque ele já passando pelo que está passando e espero que ele sofra – eu não quero que ele morra com coronavírus não – eu quero que ele fique bom e sinta o que ele está fazendo de mal pra população ribeirinha.
JC: Os próprios amazonenses não veem a riqueza que eles têm. Aqui na região, tem produtor que, se zelasse o que ele tem de cacau, copaíba, andiroba e castanha, ele vivia tranquilo como qualquer um outro cidadão classe média vive.
Mas, como o governo não dá esse incentivo, os prefeitos não ajudam, os vereadores são todos comprados, aí os pobres ficam sempre na solidão. Só pra você ver a prensa que nós estamos passando aqui pra conseguir fazer essa cooperativa.
Essas pessoas que dependem da floresta vão fazer o que?
BdF: Nesse cenário de destruição da floresta, como fica a vida dos que, como senhor, se dedicam a proteger a floresta em pé?
JC: Eu, sem a floresta, não vivo, sou bicho do mato. Sou do tempo da ‘santa fartura e do finado respeito’. Fui criado dentro da floresta com produtos naturais. A minha mãe, eu com 20 dias de nascido, quebrava castanha-do-Brasil, tirava aquela pelezinha de cima, ralava, e botava na macaxeira ralada, espremia, fazia um mingau e me dava.
Hoje eu tenho 60 anos de idade e não tenho inveja de muita gente que foi criada na cidade grande com tanta regalia. Então, em primeiro lugar, eu peço que os governos tenham compaixão da humanidade e mantenham a floresta em pé, que a floresta é que é o pique do mundo. Sem a floresta, jamais ninguém vai viver.
O que ele vai fazer, acabando com a floresta, e deixando esses pais de família, essas crianças… Essas pessoas que dependem da floresta vão fazer o que? Onde eles vão botar essas pessoas? O que vão dar a essas pessoas? Eu não tenho raiva deles. Eu tenho dó, de quando eles saírem desse mundo, no outro mundo que eles chegarem, do que eles vão receber em troca pelo que eles estão fazendo de mal para nossa floresta amazônica.
Até eu já estou com medo, já estou falando demais.
BdF: Defender a floresta também se tornou perigoso?
JC: Não faz um mês que mataram um advogado que estava defendendo aqui uma área florestal. Inclusive aqui nós estamos na terra do Chico Mendes, não está muito longe não. O que eu peço é isso, que o pessoal observe, preste atenção e ajude a defender, não destrua a quem está defendendo, que até eu já estou com medo, já estou falando demais.
BdF: A Cooperar é hoje o único contraponto organizado que há na cidade para mostrar que é possível gerar renda e ao modelo do “boi”. O trabalho de conscientização tem surtido efeito?
JC: A cooperativa foi registrada em 2003, mas antes a gente já vinha lutando com a comunidade, na associação, com uma pré-cooperativa. Buscamos conhecimento de fora, trouxemos professores, pessoas qualificadas. Nessa mesma época foi criado um projeto para fazer óleo de cacau, óleo de castanha, óleo de andiroba, coletar óleo de copaíba, também óleo de tucumã e outros produtos vegetais. Então a gente foi projetar, comprar através de projetos para o Fundo Amazônia. Conseguimos as máquinas.
[Além do cacau], a gente viu que tinha como trabalhar a castanha de uma outra forma. Em vez de vender uma castanha suja lá para fora, a gente associar o produtor, certificar o produtor, levar para ele oficinas, prover ferramentas para eles trazerem para nós a castanha e aqui nós transformarmos em óleos e co produtos: o óleo, a farinha e a pasta, que a gente chama de tahine. É nisso que a cooperativa está agora. Como o cacau são quatro meses só, a coleta, a secagem e a entrega, a gente está trabalhando nesse outro período com a castanha, fazendo o óleo.