Por Marcelo Di Bari.
As habilidades de Javier Milei para manipular interpretações matemáticas são bem conhecidas. Uma das coisas que mais repete é que ao assumir o mandato herdou uma inflação de 17 mil por cento ao ano, contra os 211,9% que o Indec fixou para todo o ano de 2023. Da mesma forma, disse que vetou a lei que concedeu um aumento de 8,1% aos aposentados porque custou ao tesouro 370 bilhões de dólares, mais de oito vezes o empréstimo que o FMI concedeu ao governo de Mauricio Macri.
Sem forçar tanto os números, o Presidente terá de admitir que o primeiro semestre da sua administração produziu 29 mil pessoas pobres por dia. Esse é o número que emerge do relatório divulgado nesta quarta-feira pelo Indec. Segundo o órgão estatístico, 52,9% da população argentina caiu abaixo da linha da pobreza no primeiro semestre de 2024, contra 41,7% no segundo semestre do ano passado.
A conta levou uma licença, bem mais leve que as utilizadas pelo presidente: surge da expansão para todo o país dos resultados da pesquisa que o Indec realiza em 31 aglomerações urbanas onde vivem quase dois terços da população argentina. Se este valor fosse extrapolado para o resto do território (algo metodologicamente incorreto, porque não se pode afirmar que as cestas de consumo e as necessidades básicas dos habitantes rurais sejam iguais às dos que vivem nas cidades), significaria que o número de pessoas abaixo da linha da pobreza cresceu 5,3 milhões de pessoas em apenas seis meses.
Algo semelhante emerge da indigência, que saltou de 11,9% para 18,1% da população em apenas seis meses. Ou seja, um em cada cinco argentinos não tem renda para se alimentar corretamente. Neste caso a gravidade é maior porque a taxa dobrou em apenas um ano (no primeiro semestre de 2023 era de 9,3%).
Para fazer seus relatórios, o Indec considera a renda de todos os membros de uma família e a compara com duas cestas: a cesta básica total, que inclui todos os bens e serviços que aquela família necessita, e a cesta básica, que considera apenas alimentos. O relatório executivo apresentou esta quinta-feira detalhes que “face ao semestre anterior, em média o rendimento total das famílias aumentou 87,8%. As cestas médias regionais aumentaram 115,3% (CBA) e 119,3% (CBT).
A renda no período estudado aumentou em nível inferior tanto em relação ao CBT quanto ao CBA. Assim, ambas as taxas, de pobreza e de indigência, apresentam aumento no atual semestre.” Simplificando, o documento refuta o Presidente: os salários e as pensões não venceram a inflação.
Não só o número de pessoas pobres cresceu, como também é mais difícil sair das pessoas incluídas nessa categoria. Segundo a pesquisa, o fosso da pobreza (ou seja, a distância entre o rendimento e as cestas das famílias pobres) também aumentou: o rendimento médio das famílias ficou 42,6% abaixo do custo da cesta básica total.
Outro fato comovente é o impacto sobre os mais pequenos. O trabalho revela que “dois terços (66,1%) das pessoas de 0 a 14 anos fazem parte de domicílios abaixo da linha da pobreza”. Além disso, 27% desse grupo (um em cada quatro) está na categoria de pobres indigentes.
A questão é tão grave que até suscitou preocupação nas Nações Unidas: na semana passada, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos da Criança alertou para a “diminuição contínua e drástica” nas dotações orçamentais para crianças, incluindo “o desinvestimento na saúde e na educação nos últimos meses”, défices que a atualização na AUH ordenada pelo governo libertário não serviu para aliviar.
Horas antes da divulgação do relatório, e prevendo que o número seria catastrófico, o governo tentou uma pirueta discursiva através do seu porta-voz Manuel Adorni. Ele culpou o “populismo econômico” e prometeu um futuro auspicioso, usando como exemplo o crescimento do número de empréstimos hipotecários.
Mas o porta-voz caiu na armadilha: lembrou que “a última hiperinflação que sofreram os argentinos, em 1989, sob o governo de Raúl Alfonsín, elevou a pobreza de 20% em maio para 47% em outubro, uma catástrofe econômica e social”. Trinta e cinco anos após um dos momentos mais difíceis da história recente do país, os números da primeira metade do governo de Javier Milei são ainda mais graves.