A execução provisória da pena em quatro tempos no STF

Veja como foram os últimos julgamentos do tribunal sobre a prisão após condenação em segunda instância

Por Márcio Falcão.

A confirmação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região colocou o Supremo Tribunal Federal (STF) numa situação desconfortável. Expôs uma divisão interna sobre a execução provisória da pena, provocou embates públicos de ministros e negociações de bastidores para enfrentar a questão.

A Corte decide nesta quarta-feira (4/4) se o petista será preso ou não, dando início ao cumprimento da pena de 12 anos e 1 mês pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Na última vez em que o plenário se reuniu para examinar a execução provisória da pena, o STF definiu, por uma margem apertada de votos —6 a 5—, que o condenado deve começar a cumpri-la depois de julgamento da apelação no Tribunal de Justiça ou no Tribunal Regional Federal.

Mas, com composição diferente e momento político diverso, o Supremo já adotou entendimentos divergentes sobre o princípio da presunção de inocência, o trânsito em julgado e a prisão depois de condenação em segunda instância.

Com a política às portas, o STF está mais uma vez sendo posto à prova e terá o desafio de decidir sobre uma tese tão polêmica às voltas de um caso concreto tão peculiar.

A execução da pena de 2009 a 2016


Decisão 1

Habeas Corpus (HC) 84078

Foi em fevereiro de 2009 que o plenário do Supremo permitiu a um condenado pelo Tribunal do Júri da Comarca de Passos (MG), que recorresse aos tribunais superiores, em liberdade, de uma condenação de sete anos e seis meses de reclusão, em regime inicialmente fechado.

Na época, prevaleceu a tese de que a prisão, antes da sentença condenatória transitada em julgado, contrariaria o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal (CF), segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

O processo provocou prolongados debates, tendo de um lado, além de Eros Grau, os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio, que votaram pela concessão do HC. Ficaram vencidos os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, que o negaram. Da atual composição, participaram Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cármen Lúcia.

Naquela época, o tribunal passou a registrar, como agora, entendimentos diversos entre a Primeira e a Segunda Turmas do Supremo, como explicou na época o ministro Ayres Britto. “Quando da análise da causa, no entanto, observei que a jurisprudência desta Suprema Corte de Justiça, em sua nova composição, não é uniforme sobre o tema”, disse.

“Há decisões proferidas por esta Colenda Primeira Turma no sentido de que a prisão do réu só é possível após o trânsito em julgado da condenação ou nas estritas hipóteses cautelares taxativamente previstas no art. 312 do Código de Processo Penal, assim como há julgados provenientes da Colenda Segunda Turma que entendem que os recursos especial e extraordinário nem por se privarem de efeito suspensivo, deixam de viabilizar a imediata prisão do condenado. Ou seja, as duas Turmas dissentem quanto à interpretação do art. 312 do CPP”, acrescentou.

Havia, então, como hoje dizem os ministros, um certo caráter lotérico no julgamento dos habeas corpus. Enquanto uma Turma concedia habeas corpus para garantir a liberdade de pessoas presas após a condenação em segunda instância, mas antes do trânsito em julgado, a outra concedia liminares por entender ser possível a execução antecipada da pena.

Os ministros que ficaram vencidos sustentaram que os recursos contra a condenação em segunda instância não têm efeito suspensivo, ou seja, não suspendem os efeitos da condenação. E, portanto, não impediriam a prisão antecipada.

“A se admitir a vedação da execução da pena antes do julgamento dos recursos extraordinário e especial estar-se-ia atribuindo por via de interpretação efeito suspensivo a tais recursos. Ora, o princípio da presunção da inocência não está enlaçado pela natureza típica desses recursos, o que quer dizer que o início da execução da pena com o encerramento do julgamento nas instâncias ordinárias não o atinge”, explicou o ministro Menezes Direito.

“Anote-se que esse raciocínio levaria ao resultado de subordinar sempre o julgamento penal proferido nas instâncias ordinárias ao julgamento dos recursos excepcionais, tornando-os também ordinários”, seguiu.

Outro argumento foi de que a Convenção Americana de Direitos Humanos “não assegura ao condenado, de modo irrestrito, o direito de recorrer em liberdade”, como definido pelo STF no julgamento do Habeas Corpus 73.151.

Depois deste julgamento, o Congresso Nacional aprovou uma alteração no Código de Processo Penal (lei 12.403, de 2011) para deixar expresso que a prisão só poderia ocorrer após o trânsito em julgado:

Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Decisão 2

Habeas Corpus (HC) 126292

Depois deste julgamento de 2009, o ministro Cezar Peluso, que votou contrariamente à possibilidade de execução provisória, enviou ao Palácio do Planalto uma proposta de alteração legislativa que passasse a viabilizar a prisão após condenação em segunda instância. Da forma como estava a Constituição, julgou Peluso, a execução antecipada era vedada. Era preciso, então, mudar o texto constitucional para ajustar o sistema.

A proposta de emenda constitucional tramita há sete anos no Congresso e hoje não poderia ser votada em razão da intervenção federal no Rio de Janeiro (que impede a votação de emendas constitucionais).  A PEC permitiria a execução da sentença após o julgamento da ação penal em duas instâncias.

Sem a alteração constitucional, com a alteração na composição do Supremo, a repercussão negativa de casos de impunidade e já com a Operação Lava Jato nas ruas, o tribunal manejou uma guinada na sua jurisprudência. No dia 17 de fevereiro de 2016, em julgamento apertado, o plenário da Corte entendeu que a possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofendia o princípio constitucional da presunção da inocência.

O caso era relatado pelo ministro Teori Zavascki, morto em acidente aéreo em janeiro de 2017. Foi a partir da posição do ministro que se formou maioria pela prisão em segunda instância. Em seu voto, o ministro defendeu que a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que confirmaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena.

“Realmente, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual”, justificou Zavascki. “Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias”, acrescentou.

A decisão representou uma mudança no entendimento da Corte, que desde 2009, no julgamento da HC 84078, condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, mas ressalvava a possibilidade de prisão preventiva.

O relator foi acompanhado pelos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. Mendes, que agora mudará seu entendimento, afirmou na época que, “esgotadas as instâncias ordinárias com a condenação à pena privativa de liberdade não substituída, tem-se uma declaração, com considerável força de que o réu é culpado e a sua prisão necessária”. Nesse momento, ressaltou o ministro, “é compatível com a presunção de não culpabilidade determinar o cumprimento das penas, ainda que pendentes recursos”.

Mas o ministro fez uma ressalva que, agora, poderá ser usada por ele para tentar justificar sua alteração de entendimento. “Se porventura houver a caracterização – que sempre pode ocorrer – de abuso na decisão condenatória, certamente estarão à disposição do eventual condenado todos os remédios, além do eventual recurso extraordinário, com pedido de efeito suspensivo, cautelar, também o habeas corpus. E os tribunais disporão de meios para sustar essa execução antecipada”, disse o ministro na época.

Nesta semana, em Portugal, Mendes afirmou que o tribunal havia, em 2016, decidido que a execução após a condenação em segunda instância era possível, mas não obrigatória. “Para mim é uma grande confusão que nós temos de esclarecer. Se o juiz após a segunda instância pode prender, ele tem de fundamentar, explicar por que ele está aplicando a prisão. Se de fato há uma automaticidade, nós temos de esclarecer”, disse.

O acórdão do julgamento, entretanto, não confirma esse entendimento do ministro Gilmar Mendes. A ementa do julgamento estabeleceu que a prisão após condenação em segunda instância é regra. A liberdade para alguém condenado em primeira e segunda instâncias que precisaria ser justificada pelo juiz: “Declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, com interpretação conforme à Constituição, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação assentada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível”.

Neste julgamento, a ministra Rosa Weber e os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski ficaram vencidos. Eles votaram pela manutenção da jurisprudência de 2009 que exigia o trânsito em julgado para cumprimento de pena e concluíram pela concessão do habeas corpus no caso concreto.

 Decisão 3

Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44

Diante da decisão do Supremo a favor da execução provisória, o Partido Nacional Ecológico (PEN) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizaram duas ações declaratórias de constitucionalidade, numa tentativa de reverter o entendimento do tribunal. Pediam que a Corte declarasse constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, que condicionou a prisão ao trânsito em julgado de ação penal condenatória.

Relator das duas ações, ministro Marco Aurélio, votou no sentido da constitucionalidade do artigo 283 do CPP, concedendo a cautelar pleiteada. Mas a maioria do plenário entendeu de que a norma é constitucional, mas, a despeito da redação, não veda o início do cumprimento da pena após esgotadas as instâncias ordinárias.

O voto condutor da maioria foi do ministro Edson Fachin, que sustentou que a Constituição não tem a finalidade de outorgar uma terceira ou quarta chance para a revisão de uma decisão com a qual o réu não se conforma e considera injusta. Para o ministro, o acesso individual às instâncias extraordinárias visa a propiciar ao STF e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) exercer seus papéis de uniformizadores da interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional.

Votaram pela execução provisória da pena: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Foram contra: Marco Aurélio, Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowksi e Celso de Mello.

Neste julgamento, a ministra Rosa Weber afirmou que “não posso me afastar da clareza do texto Constitucional”. Para a ministra, a Constituição Federal vincula claramente o princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência a uma condenação transitada em julgado. “Não vejo como se possa chegar a uma interpretação diversa”.

Decisão 4

Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 964.246

A última vez em que o Supremo tratou da tese da prisão em segunda instância foi em novembro de 2011, no plenário virtual. Por maioria, os ministros reafirmaram a jurisprudência no sentido de que é possível a execução provisória do acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, mesmo que estejam pendentes recursos aos tribunais superiores.

Como a decisão ocorreu em recurso com repercussão geral reconhecida, a tese definida pelo Supremo passaria a ser aplicada nos processos em curso nas demais instâncias. Nesse julgamento, com relatoria de Teori Zavascki, ficaram vencidos os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello. A ministra Rosa Weber não se manifestou.

Segundo Teori, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual.

Contudo, apesar da orientação para as demais instâncias, o próprio Supremo passou a conceder habeas corpus contra a execução antecipada da pena. Nesse meio tempo, deixou a Corte o ministro Teori Zavascki, que votou a favor da prisão após condenação em segunda instância, e foi nomeado o ministro Alexandre de Moraes, que vota no mesmo sentido. Contudo, o ministro Gilmar Mendes declarou publicamente seu novo entendimento e, com isso, pode virar novamente o entendimento da Corte.

Essa reversão se concretizaria quando o tribunal julgasse o mérito das ações declaratórias de constitucionalidade. Mas o habeas corpus preventivo em favor de Lula, condenado na Operação Lava Jato pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, e a resistência da presidente Cármen Lúcia em pautar as ADCs levam o tribunal a rediscutir sua jurisprudência novamente em caso concreto. Desta vez, porém, tendo como paciente um ex-presidente da República.

Foto: Foto Lula Marques/Liderança do PT na câmara.

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