A Europa acreditará na mudança?

Por Pepe Escobar.

A eleição no domingo do socialista François Hollande à presidência da França ocorre num momento histórico extraordinário. É possível que corresponda ao momento. No primeiro discurso já como presidente eleito, Hollande disse que “a austeridade não é fatalidade”. Não se trata só de França – trata-se do futuro da Europa. E quando a França fala – melhor ainda, quando age –, a Europa ouve.

Que festa, domingo à noite na Bastilha – de provocar-me arrepios pela espinha. Em corte transversal que atravessou toda a sociedade francesa, todos falando diretamente à Europa e indiretamente ao resto do mundo: é possível sonhar com mudança, acima de tudo, é possível sonhar com justiça social. Há alternativa.

E tudo isso com um francês calado à guisa de lanterna em trilha difícil. Um sujeito “normal”. Nada má a escolha dos socialistas franceses para substituir, como candidato, o homem do qual cogitavam. Até que o super ex-favorito, então diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn, deixou-se prender numa armadilha extremamente sórdida no Sofitel, em New York.

Agora, a ressaca. A esquerda só controla sete dos 27 países da União Européia. O ex-rei Sarkô, rei do chacoalhar de correntes de ouro e diamantes de pescoço (bling-bling), eterno neonapoleônico Libertador da Líbia e ex-presidente Nicolas Sarkozy, foi reduzido à nota de rodapé histórico de segunda – ele e a bela popstar italiana sua esposa, Carla Bruni, que já planeja os passos subseqüentes da carreira. O rei Sarkô é o 11º líder europeu a cair, enquanto se aprofunda a recessão na Europa.

O híbrido “Merkozy” – cruza do rei Sarkô com a chanceler alemã Angela Merkel, a dupla dinâmica que governou a Europa – está morto.

Reverências ao Merkollande

Frau Merkel e o primeiro-ministro britânico David Cameron eram e continuam a ser pró-“austeridade”. A Dama Angela de Ferro queria muito, muito, que o rei Sarkô continuasse onde estava. Mas Hollande mandou enviados especiais a Berlim, semana passada. Pragmático, ele sabe que Merkel conheceu, de primeira mão, o ponto a que chegava o rei Sarkô, em matéria de arrogância e imprevisibilidade.

Hollande é pragmático do tipo que não chama atenção, pé no chão, que gosta de consensos e que, era uma vez, foi economista que dava aulas à elite, na Sciences Po, em Paris. Não é radical. O pragmatismo gerará, necessariamente, um “Merkollande”. O osso realmente duro de roer será o ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schaueuble, o Wotan (1) da Austeridade na eurozona.

Merkel e Schaueuble só desistirão de seu pacto fiscal se caçados por uma gangue de visigodos – obsessão que o rei Sarkô subscreveu. Mario Draghi – ex-agente do Goldman Sachs e presidente do Banco Central Europeu (BCE) – também querem um pacto de crescimento. Ele – e a elite neoliberal – vêem a coisa como mercados cada vez mais livres, quer dizer, livres para admitir-demitir sem mais, talvez combinando com mais investimentos públicos em infra-estrutura.

Hollande é totalmente contra mercados megalivres, megadescontrolados. Quanto a investimentos públicos, as únicas nações que poderiam pensar nisso dependem de ter receber boas avaliações das agências de risco e de encontrar baixos juros financeiros. Na prática, nenhum país da União Européia está hoje qualificado.

Então, será com a Alemanha. O capital terá de ser alemão. Deve-se esperar que Hollande convença Merkel de que, mais cedo ou mais tarde, os alemães perceberão que a recessão sem fim é politicamente tóxica. A conseqüência mais danosa já está aí, à vista de todos: a extrema-direita musculada com esteróides, inchando por toda a Europa.

Durante a campanha, Hollande identificou bem claramente o “inimigo”: o “mundo da finança”. Não surpreende que  Wall Street e a City de Londres já vejam Hollande – e tendam a vê-lo cada vez mais – como mais perigoso que Vladimir Lênin. Assim sendo, o campo de batalha está delineado: Hollande versus o neoliberalismo e “os mercados”, Hollande como Don Quixote versus a troika de ferro do BCE, FMI e Comissão Europeia (CE).

Não há nem épico que conte sequer o começo dessa luta. Mais uma vez: sigam o dinheiro (euros que desaparecem, por exemplo).

A dívida pública na França equivale a 90% do PIB. Desde 1974, a França não vê orçamentos equilibrados. A proporção entre dívida pública e PIB é de cerca de 57% – a mais alta dentre os 17 países da eurozona. O desemprego chega a cerca de 10%. Uma geração inteira de filhos de migrantes – quase todos do norte da África – já passou virtualmente toda a vida confinada em guetos, desempregada e maltratada.

Hollande quer alterar a idade de aposentadoria na França, fazendo-a voltar dos atuais 62 aos antigos 60.

Quer contratar pelo menos 60 mil novos professores. Quer reduzir os preços da energia elétrica, para os de baixa renda. O único meio de financiar tudo isso é cobrar o imposto (prometido) de 75% dos ganhos de quem ganhe mais de 1 milhão de euros (US$1,3 milhão) ao ano, e o imposto sobre transações financeiras. A alta burguesia francesa está rasgando seus Diors, em desespero.

Aí está a plataforma de Hollande, num parágrafo: empregos e crescimento econômico. Se falhar, a extrema-direita vence, e culpará Paris e o Islã.

Sigam o dinheiro

Com Hollande, as grandes linhas da política externa do rei Sarkô talvez se mantenham – mas muitos detalhes serão substancialmente alterados.

Hollande jamais esteve na China. Em Pequim, tendem a vê-lo como “presidente normal” – o que nunca se aplicou àquele coelho-da-Duracell-que-fumou-crack, o rei Sarkô. Portanto, de um ponto de vista chinês, as relações devem ser “normais”, tipo “estáveis”.

Crucialmente importante é que Hollande quer parceria estratégica mais aprofundada com os países BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. E, como muito apetece às potências emergentes, é favorável ao fim do dólar norte-americano como moeda mundial de reserva (a qual seria substituída por uma cesta de moedas). Afinal, pode estar surgindo um aliado estratégico para os BRICS, postado bem no coração da União Européia, interessado em modernizar o sistema financeiro global.

O primeiro teste internacional de Hollande será a reunião da OTAN em Chicago, ainda em maio. Será fascinante assistir, se ele conseguir jogar um macaco contra as ambições de porcelana da OTAN-Globocop.

Muitos países europeus, fartos das aventuras nos buracos negros no Afeganistão e na Líbia, podem, sim, apoiar Hollande – que disse que retirará todos os soldados franceses do Afeganistão até o final de 2012.

Mas a verdadeira guerra será travada dentro da Europa. No fim, voltamos ao “sigam o dinheiro”.

 Hollande quer que a população idosa aposente-se mais cedo. Quer os fazendeiros franceses confortavelmente subsidiados – para nem citar as vacas francesas, cujo padrão de vida é muito melhor que o de 2 bilhões de pessoas no planeta. Quer que o generoso aparelho de bem-estar francês continue a funcionar.

 Como pagar por tudo isso, quando todo o dinheiro foi sugado para dentro dos bolsos gordos dos 0,1%?

Não bastará que o sujeito “normal” planeje mudar só a Europa: ele terá de movimentar-se para mudar o mundo.

Nota:

1) Rei dos Deuses, no “Anel dos Nibelungos”, de Wagner.

Pepe Escobar é jornalista e correspondente internacional.

Retirado de Diário Liberdade. Original publicado no Asia Times.

Fonte: www.correiocidadania.com.br

Foto: Reuters

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