A estratégia é fazer os trabalhadores pagarem a conta da crise. Por José Álvaro Cardoso.

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Por José Álvaro Cardoso.

A crise atual é muito grave. É somatório de uma crise econômica mundial inusitada, de cinco anos de estagnação/recessão (provocada por um golpe de Estado) no Brasil e de uma pandemia que já é a mais dramática do último século. A confluência de todos esses fatores ocorre no momento em que o Brasil tem o pior governo da história (o mais entreguista, o mais subserviente ao imperialismo, o mais inimigo do povo), que o Brasil sequer imaginou ter. Não dá para dizer que não possa piorar, pois sempre pode, mas é uma das mais adversas situações das últimas muitas décadas.

Ao contrário de algumas análises, a pandemia não é a causa da crise econômica, apenas a acelerou. Antes da doença a economia estava longe de estar voando em céu de brigadeiro, muito pelo contrário. O tsunami já vinha se armando há um bom tempo, a epidemia apenas antecipou o agravamento da crise. Na realidade, os aspectos que levaram a economia à crise de 2007/2008 se mantém, aquelas contradições não foram resolvidas. Em boa parte, foram até agravadas, o que tornava uma nova crise inevitável, para mais cedo ou mais tarde.

A covid-19 é uma doença desconhecida, para a qual ainda não existe vacina. Pelas informações esta demorará meses, ou anos, para circulação comercial. Por isso não se pode projetar ainda a profundidade e a extensão da doença. Mas o impacto geral das duas crises (pandêmica e econômica) sobre a sociedade está sendo dramático, e será ainda mais. Já se começa a discutir no mundo, inclusive, a situação pós-pandemia, e as incertezas são muito grandes. Sobre como será o mundo pós-pandemia há, claro, um leque de possibilidades. Mas as análises extremamente otimistas sobre o pós-covid-19, de que o mundo será mais harmônico, de que o medo da doença vai aproximar as pessoas, e por aí vai, pecam por um imprudente otimismo.

Certamente não será uma doença que irá acabar com o conflito entre capital e trabalho no mundo, e nem com as contradições existentes entre países imperialistas e economias subdesenvolvidas. A tendência, inclusive, é tais contradições se tornarem mais agudas. Esta está longe de ser a primeira epidemia grave que o mundo e o Brasil enfrentam. A gripe espanhola de 1918, por exemplo, causada pelo vírus influenza mortal, matou entre 40 e 50 milhões (os números são desencontrados) de pessoas no mundo todo. A doença, que tinha sintomas semelhantes com os da covid-19, matou o então presidente do Brasil, Rodrigues Alves, em 1919. O fato é que a incidência da doença, que matou 30 mil brasileiros (números que devem estar muito subestimados), não aproximou as pessoas e nem aumentou a solidariedade entre elas.

Do ponto de vista médico essa crise é muito grave. Para termos ideia, um grupo de pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard (artigo publicado no dia 14.02, na revista Science), concluiu que os esforços de distanciamento social para evitar o colapso hospitalar diante da pandemia da covid-19 podem ser necessários, ao menos de modo intermitente, até 2022. Os EUA, cujo acesso à saúde é privilégios de poucos, é o epicentro da epidemia no mundo, com 742.442 contagiados e mais de 40.585 mortos (até domingo, dia 19.04). São 165.000 mortos no mundo e mais de 2.400.000 contaminados. Os números revelam o ridículo da posição de Donaldo Trump, que ironizou no início da crise os avisos acerca da gravidade da doença.

A pandemia da covid-19 acelerou e agravou o processo de crise econômica. Este está sendo muito mais profundo e acelerado do que o verificado na crise de 2008 e na Grande Depressão de 1929. O economista Noriel Roubini – cujas análises que antes eram consideradas pessimistas, são agora reputadas como realistas – registra que que naquelas duas grandes crises as bolsas de valores caíram em 50% ou mais, os mercados de crédito congelaram, as grandes falências aconteceram, as taxas de desemprego subiram acima de 10% e o PIB encolheu a uma taxa anualizada de 10% ou mais. Mas todos esses fenômenos aconteceram em três anos, ou mais. Na atual crise, registra Roubini, tudo isso se materializou em três semanas. No último mês, os elementos que compõem a chamada demanda agregada (consumo, gasto de capital, exportações) se encontram em queda livre, como nunca tinha sido observado antes.

É como se tivéssemos a reincidência de uma grave doença, só que com efeitos mais rápidos sobre o organismo. Obviamente parte dessa velocidade de propagação da crise está relacionada com a globalização da economia, pelo menos em relação à de 1929. Mas em 2007 a economia era praticamente tão globalizada quanto hoje. A velocidade com que a informação circula nos mercados hoje, é parecida com a existente em 2007/2008. O dado revela a gravidade da crise.

Quem detém o poder, como sempre aconteceu em todas as grandes crises no Brasil, está aproveitando a crise atual para liquidar de vez com os direitos dos trabalhadores. Assistimos a aprovação do PL 9236/17, que prevê pagamento de um auxílio emergencial aos mais pobres no valor de R$ 600 mensais (durante três meses para as pessoas de baixa renda afetadas pela crise sanitária). Além do valor negociado ser muito baixo (uma cesta de alimentos, com 13 produtos essenciais para uma pessoa no mês de março, custou em média R$ 517,13 em Florianópolis), o benefício até hoje não chegou nas mãos de uma boa parte das pessoas que necessitam. Em todas as regiões do Brasil, milhares de trabalhadores denunciam que não conseguem sacar o recurso.

Detalhe importante: pelas condições de tecnologia existentes hoje, e pela existência do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, montado pelos governos anteriores ao golpe de 2016, o benefício poderia começar a ser pago no mesmo dia de aprovação do PL no Congresso Nacional. Do ponto de vista prático, dada a importância do benefício, justificaria colocar até as forças armadas e forças auxiliares, para viabilizar imediatamente a chegada do recurso no bolso de quem já está passando fome. Não fazer isso é, claramente, uma opção do governo, que está preocupado em gastar o menos possível com os pobres e atender aos ricos.

Na madrugada do dia 15.04 a Câmara de Deputados aprovou a medida provisória (MP 9052019, que institui o contrato verde amarelo), editada exclusivamente para retirar vários direitos dos trabalhadores, em plena pandemia do coronavírus. Os novos contratados por meio da carteira de trabalho “verde e amarela”, perdem o direito a um terço de férias e ao décimo terceiro salário. Por essa MP o garçom perde o direto a gorjeta, que passa a ser salário remunerado (sujeito a descontos), os bancários passam a trabalhar oito horas diárias (hoje são 6 horas).

Essa MP é um aprofundamento da Reforma Trabalhista do Temer, e liquida com alguns direitos dos trabalhadores, que estavam sobrevivendo ao golpe de 2016. Enquanto a população se concentra no enfrentamento da pandemia, e boa parte dela luta para colocar comida na mesa, governo e Congresso Nacional aproveitam para arrebentar com o que havia sobrado de direitos e aprofundar o programa de guerra contra a população. Querem fazer os trabalhadores pagarem a conta da crise, sozinhos.

 

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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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