A estrada de terra

Por Raul Fitipaldi.

O sol ainda empurrava estrelas quando o carro era uma sombra no ponto de ônibus. Pontualmente iniciamos a romaria companheira. A Ilha acordava em diapasão de sábado. Uns poucos resíduos aos lados da rua indicavam que o carnaval fora parido no Centro. De mochila no ombro, Marcos Aurélio desdobra idéias na esquina do Rosa no Itacorubi. Do deserto amanhecer da Mauro Ramos, adentra-se Priscila na caixa rodante que nos levará até a meta fraterna. O Terminal Velho, feio como lhe é proverbial, vê chegar Larissa na garupa apaixonada de Thiago, e o Máximo muda o ar hostil do local com cheiro de cachimbo na roupa. Antes, minutos antes, como um pássaro soturno num banco escuro, Marcela carrega essa mochila que, por tamanho e forma, denuncia a probabilidade de ser-nos seqüestrada pela noite blumenauense. Na primeira parada continental aparece o outro pássaro loiro. Ana se coloca na nave a caminho da Rede. Ausente ainda a presença atrevida da prisioneira de Tijucas. Uma voltinha embaixo da ponte e, Lidiane, caminha por dentro do seu telefone, sorriso perdido e urgente, até completar a tripulação. Lorreine e Rodrigo usaram-se de outra estrada, porque muitas delas levam até nosso destino pioneiro.  A caixinha com rodas atravessava uma estrada de terra…

Madura está a manhã, mesa servida com café quente, queijo, pão fresco: abriu-se generosa a porta da Rádio Fortaleza. Anderson – sorriso de guri curioso -, Leandro e Gabriel colocaram a faixa de boas-vindas na boca.  O motorista vai dormir com seu roteador que fala mais do que o Raul (não, impossível). E um velho ônibus, aproxima-se lotado de olhares inquietos. O Contestado, aniversariando 100 anos, desce orgulhoso, forte, caboclo e seguro sob os olhares brancos da Capital e Blumenau. Será que a Rainha do Nilo vem dentro? O convite tá feito, a mesa mimosa, a cabine fresquinha, e Larissa, Marcos, Marcela e Lidiane tiram o pijama dos seus aparelhos de comunicar e capturar imagens, como amorosos pais antes de apresentar os filhos no café da manhã. – Alô Leandro, começa aqui a transmissão ao vivo, via Rádio Cooperativa, do 1º. Seminário de Rádio Comunitária e Via Net. Uma ousadia assinada por Larissa Cabral e Anderson Engels. Assinada pela Cooperativa pela Soberania Comunicacional e Popular. Assinada pela Rede Popular Catarinense de Comunicação.

Abre-se o jogo. Anderson convoca e o celular me reclama. Tali amarra a Ilha da Espanhola. A terra constrangida de Caamaño, e a libertária de L’ouverture nos abraçam. – Começou já a tranmissão? Nossas ilhas, todas elas, navegam no mar infinito da conversa, Desterro, Dominicana atada ao Haiti, a ilha de controles onde a Fortaleza faz movimento. Wilmar escuta internando-se no serrado catarinense e mexe a cabeça, – tá tudo bem! Ingressam Urda, Atahualpa e Luis ao salão, está chegando Lô aos cuidados primorosos de Rodrigo. Lorreine que pegou mais um ano de vida para aprender e ensinar.

Vai se iluminando o papo quando a anjo formidável do Teles se dispõe a contar-nos a história. Toma a palavra de Leandro e fala de enchentes e repressores, fala de sonhos e danças, de comunidade e trabalhadores, fala e quando fala ensina. Teles nos olha, anjo em corpo e som desde uma parede que já banhou a enchente. América se precipita lá atrás, onde a fronteira entre a cabine e o salão está guardada pelos que observam um Rodrigo que interpela. América é mulher, é mãe, é locutora, é produtora da Nossa América, do Rio Bravo até Las Malvinas.

– Parabéns para vocês nesta data querida (ao Contestado, ao invento da rádio, à Lorreine), parabéns por construir, divulgar e sonhar outra história: a história dos invadidos. Lá fui eu brigar um pouco com um bicho do mato que tem mais humanidade que a FAO,  a UNESCO e todos os discursos: Marcela Cornelli, a galega de Salto Veloso, a capturadora da dor dos majoritários. Bom apetite e boas lutas!

A tarde começou tecer a nostalgia da noite seguinte. Cabecinha dourada, olhos úmidos, papel na mão, uma safadeza para a burocracia, Larissa ressoa suave, firme e nostálgica: – Eram uns negros bonitos, altos, pobres, muito pobres e, com um celular e um laptop, o jornalista pedia entrada lá em Tegucigalpa e eles faziam sua música. Queimaram sua rádio comunitária, a invadiram, os perseguiram, e seguiram cantando, dizendo, contando. (…)

– Estas dicas são para aperfeiçoar um pouco o que a fazemos, não é para perder a frescura. É para usar quando se precisa! Cada um, na sua cadeira olhava essa menina, pegava sua doçura e carimbava o papel com uma gota de esperança. Lá estavam as fórmulas para espraiar o sentimento e o grito. Marcos Aurélio deixou muito claro: Pode-se, está nas nossas mãos! E todos nós, os pobres materiais, sentimos que começávamos a nos apropriar das armas dos delinqüentes para salvar a verdade. ” NÓS TAMBÉM PODEMOS E VAMOS FAZER. JILSON NÃO VAI PRESO FABI, NÃO VAI CARALHO! ”

E confraternizamos, e ampliamos o Convite, e botamos a data do Grande Encontro, e traçamos as linhas para caminhar por elas: marchar todos juntos. A Rede por fim iniciou seu andar materializado. A Rede que vem desde Campos Novos, passando por Videira, Tangará, Fraiburgo e Blumenau, até as Ilhas, até a Ilha, até os Desacatados e sua Fortaleza de idéias e princípios. Porque Educar é a partir de Paulo Freire e nunca, jamais nunca, da mídia dos Oligopólios, da invasão e da guerra.

Vi Teles conversando com Elaine Tavares, Urda no calçadão da Felipe Schmidt correndo Atahualpa, vi Vanessa sorrindo frente a uma basílica em Aachen, vi os construtores do NÓS, os vi, os escutei. Vi você, entre as águas turquesa, sonhando há tantos anos com isto. E você fechou o dia: – Já chegaram Larissa?

–  Ainda não. Iniciamos o caminho definitivo, sem volta, fomos pela estrada de terra, acompanhando o rio, não estávamos perdidos, apenas escolhemos outro caminho…

 

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