A esquerda e os desafios comunicacionais, de hoje e de sempre

Foto: Fernanda Carvalho/Fotos Públicas

Por Jair de Souza, para Desacato.info.

Há alguns anos a gente vem discutindo o papel que a mídia corporativa hegemônica passou a exercer como principal partido político na defesa dos interesses do capital financeiro e do grande capital em geral.

Este processo, que passou a ter conotações mais nítidas a partir da década de 1970, com o predomínio dos ideais do neoliberalismo por todo o planeta capitalizado, atingiu seu apogeu nos primeiros anos do século XXI.

Mas, como ocorre com todo e qualquer mecanismo de dominação social, com o passar do tempo e com o desenrolar dos embates, as forças sociais que sofrem os efeitos negativos da dominação midiática foram conhecendo melhor os modos de atuação deste aparato e, consequentemente, aprendendo a encontrar formas de neutralizá-lo.

No Brasil, as quatro vitórias presidenciais consecutivas do PT em associação com outras forças não subordinadas por completo às diretrizes do complexo midiático serviram como claro indicador de que a mídia corporativa não estava em condições de continuar sendo o carro chefe da defesa dos interesses do grande capital.

Eu mesmo, num artigo em que analisava o andamento da campanha presidencial de 2010, já antevia que não haveria mais como insistir no mesmo esquema. Na parte deste artigo em que comentava sobre os efeitos de uma muito provável vitória de Dilma Rousseff contra o candidato da mídia, José Serra, mencionei o seguinte:

“Não será fácil para a mídia corporativa recuperar-se de tal derrota. Não digo que seja impossível, mas será muito difícil. E se as forças populares souberem tirar proveito adequado desta derrota acachapante da mídia corporativa, é possível que as forças do capital hegemônico a descartem de vez como sua representante política. Tratarão de encontrar outros instrumentos e, possivelmente, os encontrarão. Mas isto vai levar um tempinho.”[i]

Sim, eu previa que a mídia corporativa tradicional iria perder o seu protagonismo de até então. Mas, eu não sabia o que estava por vir em substituição e também não acreditava que o processo de mudança de foco se desse em pouco espaço de tempo. Por isso, tinha dito “Isto vai levar um tempinho”.

Na verdade, o tempinho foi muito mais breve do que eu e muitos de nós (nós, meros mortais, ressalto) podíamos imaginar. E, assim, muito rapidamente, o Whatsapp roubou a cena.

No período das eleições de 2010, o Whatsapp ainda não era um aplicativo de uso tão extensivo como passou a ser nos anos seguintes. Com a aquisição do mesmo pelo grupo proprietário do Facebook, seu uso se tornou generalizado. Hoje, nos centros urbanos do país, o número de seus usuários é gigantesco, mesmo entre gente de condições socioeconômicas humildes.

Já li vários bons artigos a respeito do uso que a direita (em especial, a extrema-direita) vem fazendo do Whatsapp em várias partes do mundo. Entre eles, aqueles que abordam as movimentações políticas que salpicaram pelo Oriente Médio, pela Europa Oriental, na Europa Ocidental (Brexit, em destaque) e, até mesmo, nos Estados Unidos (Donald Trump presente!).

E, agora, por fim, o Brasil é a bola da vez. O processo que levou à eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil deve, provavelmente, servir como modelo da capacidade que o Whatsapp tem para possibilitar a manipulação dos sentimentos e instintos de imensas massas humanas ao ponto de levá-las a eleger para o cargo mais importante da nação uma pessoa cujo programa de governo a maior parte de seus eleitores não tem sequer ideia do que seja.

Li críticas sob a passividade da esquerda ao permitir que a direita saísse na frente no uso desta tecnologia, enquanto essa esquerda se mantinha na prática do jornalismo tradicional, acreditando que através de artigos e análises em seus blogs poderia obter resultados semelhantes aos que havia conquistado ao se contrapor à prática da mídia corporativa pouco tempo antes.

Bem, é muito boa a constatação do fenômeno e o alerta que isto significa. Mas, jamais a esquerda poderia ter saído à frente com o uso do Whatsapp para servir com igual eficácia aos propósitos que movem as forças de esquerda. E, por falar nisto, a quem representam a direita e a esquerda numa determinada sociedade de classes?

Quando, em política, empregamos o termo “direita” estamos fazendo referência às forças que representam e defendem os interesses dos principais grupos econômicos de uma sociedade. São, na verdade, a tropa de choque política dos economicamente poderosos. Atuam em seu nome, defendem seus interesses e, logicamente, dependem e recebem dos poderosos o apoio vital para sua existência.

Ao falar em “esquerda”, estamos nos referindo às forças que se identificam com os interesses dos grupos sociais que vivem submetidos ao domínio dos poderosos. A esquerda não conta com o apoio ideológico, organizacional e, muito menos, econômico dos setores que dominam socioeconomicamente o país.

Sendo assim, como esperar que seja a esquerda que saia na frente com a introdução de novas tecnologias? Especialmente quando tais tecnologias dependem fundamentalmente de vultosos recursos econômicos que somente os ricos e poderosos podem dispor.  A direita sai sempre na frente com novas tecnologias, seja da produção ou de comunicação de massas, porque a direita representa o capital, e o capital é sempre quem lança as inovações tecnológicas no sistema capitalista. Nunca os trabalhadores, ou as forças que os representam, estiveram, estão, ou vão estar em condições equiparáveis para lançar novas tecnologias de ponta, ou mesmo para tirar proveito equivalente das já existentes.

Vejamos um pouquinho mais em detalhe o caso do uso do Whatsapp na campanha de Bolsonaro. Sim, é evidente que muito poderia e deveria ter sido feito para minimizar os efeitos devastadores que levaram à vitória do fascismo. Talvez devêssemos ter usado o tempinho que dispúnhamos na televisão muito mais para desconstruir as falácias que eram propagadas em favor de Bolsonaro do que insistir em apresentar o programa de governo, visto que o programa de Lula era conhecido por experiência prática pela maioria de nosso povo. Sim, talvez!

Mas, jamais estaríamos em condições de fazer uso do próprio Whatsapp para impor nosso programa na mente dos eleitores. E por que não?

Mecanismos do tipo do Whatsapp e Twitter requerem brevidade nas mensagens. E mensagens breves, curtas, são eficientes quando se quer trazer à tona e reforçar preconceitos já sedimentados na mente das pessoas por anos, décadas ou séculos de martelação.

Quando uma mensagem por Whatsapp faz referência a “Vamos impedir que os corruptos do PT continuem mamando na teta do Estado”, isto vem de encontro a toda a intensa campanha de muitos anos de demonização do PT que, com anterioridade, fora traçada, planejada e executada pela mídia corporativa capitaneada pela rede Globo (incluindo, no entanto, quase todos os outros grandes veículos de comunicação corporativa: Rede Record, Band, SBT, Veja, FSP, Jovem Pan, etc). Agora, como desconstruir este preconceito com as mesmas poucas palavras? Simplesmente, impossível!

Por outro lado, até onde eu saiba, só quem tem acesso aos resultados das varrições algorítmicas efetuadas na internet através de seus principais mecanismos (Google, Facebook, Instagram, etc) são os representantes da direita (ou os próprios representados).

É através das varrições efetuadas por esses tais algoritmos que eles se dão conta do que os usuários da internet estão procurando saber, o que gostariam de saber e o que não deveriam saber. Assim, cada qual vai receber mensagens e estímulos diretamente associados a algum interesse de sua parte previamente detectado. E claro, se sabemos o que uma pessoa tem como interesse, podemos elaborar nossa exposição de forma tal que nossa proposta pareça estar de acordo com o interesse da mesma. Se uma pessoa foi detectada como contrária ao aborto, vamos jogar sobre ela uma tonelada de mensagens que colocam nosso adversário como abortista. É simples assim.

Mas, isto não é tudo. Como fazer para que as mensagens que nos interessam sejam divulgadas a dezenas, ou centenas, de milhões de pessoas? Nenhum partido de esquerda teria recursos para levar a cabo tal tarefa. De esquerda, não, mas de direita, sim! Para isso estão os banqueiros, os grandes proprietários do agronegócio, os donos de imensas redes de lojas de varejo, os donos de grandes transportadoras com 600 ou mais caminhões, além, é claro, das contribuições vindas de amiguinhos do exterior que nutrem interesse por coisas de nosso país que eles gostariam que passassem a ser deles.

Em outras palavras, não creio que conseguiremos usar a nosso favor meios como o Whatsapp com a mesma eficácia que a direita usa. Também nunca fomos capazes de usar a imprensa escrita de modo equivalente, mas pudemos neutralizá-la em vários momentos decisivos. O mesmo pode ser dito sobre a questão da televisão.

Eu entendo que chegou o momento de neutralizar os efeitos malignos que o uso do Whatsapp pela direita está causando aos interesses das maiorias populares. Ao conseguirmos alcançar este objetivo, eles virão com novas tecnologias e a rotina vai se repetir. Sobre isto, não guardo muitas dúvidas. No entanto, eu acredito que podemos melhorar nosso nível de conhecimento e percepção das tendências comunicacionais para, assim, lançar os combates de desconstrução no mais breve prazo possível.

[i] Souza, Jair: O que está em jogo nas próximas eleições. Publicado em Desacato.info, em 18/09/2010 (http://desacato.info/o-que-esta-em-jogo-nas-proximas-eleicoes/)

Jair de Souza é economista formado pela UFRJ e mestre em linguística pela UFRJ.

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