A esquerda do Tribunal: os perigos do ativismo judicial

A esquerda partidária e sindical tende a identificar no Tribunal Constitucional uma espécie de novo ativismo, ao qual se atribui a derradeira alternativa à política de austeridade

Por Passa Palavra.

I

Tribunal-Constitucional-300x200Em novembro de 2011, o Sindicato dos Enfermeiros avançou com uma ação impugnatória no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa para travar a nova lei das 40 horas para a função pública. Cerca de um mês depois, face à diminuição do número de vagas no concurso Investigador – Fundação para a Ciência e Tecnologia e à ausência de transparência nas operações de seleção e recrutamento, um grupo de investigadores propõe como medida imediata a impugnação judicial do concurso. Mais recentemente, o Partido Socialista (PS) e o Partido Comunista Português (PCP) anunciaram o requerimento da fiscalização sucessiva do orçamento de Estado para 2014 junto do Tribunal Constitucional. À primeira vista, nenhuma destas iniciativas apresenta qualquer problema. Inclusivamente, o objetivo deste artigo não passa pela condenação particular de cada uma delas ou sequer do recurso aos tribunais enquanto meio. Tal não exclui, porém, uma análise do papel que a Justiça tem exercido na estratégia da esquerda institucional em Portugal.

II

A ligação umbilical da esquerda ao texto constitucional possui uma clara base histórica. De facto, a aprovação da Constituição da República Portuguesa a 2 de abril de 1976 contou apenas com a oposição à direita, então exercida pelos 16 deputados do Centro Democrático e Social (CDS). À esquerda, o voto foi unânime, um sinal da marcha pelas instituições iniciada pela esquerda, em particular pelo PCP.

Embora possamos encontrar alguns elementos indicadores do contexto pós-revolucionário (ou contrarrevolucionário) da altura – a transição para o socialismo mediante “a apropriação coletiva dos principais meios de produção, solos e recursos naturais, e o exercício do poder democrático das classes trabalhadoras” (Artigo 80.º) –, o texto aprovado tem sido sujeito a diversas revisões. Noutras palavras, a Constituição de 1976 já não é bem de 1976.

O nosso raciocínio poderia ir mais longe e questionar até que ponto é que todos os grandes textos legais e declarações não partem de uma noção universal de humanidade cuja aplicação refletirá os critérios do legislador. Entre a abstração da primeira e a especificidade da segunda, podemos identificar, historicamente, mulheres, negros, imigrantes, refugiados ou todo um conjunto de seres, pertencentes a classes inferiores e perigosas, que não cabiam na noção imperante de cidadania. Tampouco será necessário debruçarmo-nos em torno do cariz contraditório de um projeto que, evocando a via para o socialismo, o cumpre mediante a afirmação do direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte (Artigo 62º), legitimando assim a condição inerentemente subalterna dos que, mesmo satisfazendo os critérios de cidadania, se vêem obrigados a vender a sua força de trabalho. Por agora, o percurso sucinto pelas diversas revisões a que a Constituição da República foi sujeita basta-nos para o caso.

Em 1982, sob o governo da Aliança Democrática (coligação que juntava sociais-democratas, centristas e monárquicos), é aprovada uma alteração ao texto constitucional que, a par da abolição do Conselho da Revolução e consequente criação do Tribunal Constitucional (TC), procedeu ao esbatimento dos seus preceitos mais revolucionários e à atenuação da intervenção pública na economia. Sete anos mais tarde, já após a adesão à Comunidade Económica Europeia em 1986, a Constituição da República seria sujeita a uma nova cosmética, desta vez mais incisiva. As principais alterações ocorrem ao nível da reforma agrária, cuja referência desaparece, e da política de nacionalizações, cuja extinção do princípio da irreversibilidade vem anunciar o início da política de privatizações. Assegurava-se assim, segundo o PCP, a remoção desse “obstáculo”, “um importante fator de contenção e um poderoso esteio da resistência e da luta” contra a reorganização monopolista.

Ao longo da década de noventa, o processo de integração de Portugal na União Europeia, em particular os Tratados de Maastricht e de Amesterdão, originariam, respetivamente, revisões constitucionais em 1992 e 1997. Entre as alterações constitucionais introduzidas, podemos destacar a subordinação do direito nacional ao direito comunitário; a diminuição dos poderes do Banco de Portugal na definição e execução das políticas monetária e financeira; e, por fim, uma cada vez maior alteração de estilo e de léxico, sinais da adaptação do texto ao ideário em voga [1]. Como resumiu Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, no âmbito da comemoração dos 30 anos da Constituição da República Portuguesa:

“Em nome do seu aperfeiçoamento ou das «revisões possíveis», numa linha de cedência do PS, ela foi amputada da proteção constitucional a grandes transformações sociais e económicas que permitiram a reconstituição dos grandes grupos económicos monopolistas e do seu domínio e, ao mesmo tempo que fragilizou a possibilidade de desenvolver e afirmar uma democracia económica, passou a condicionar e a fazer regredir as outras componentes da democracia, nomeadamente a política e a social. Cada passo dado justificava sempre o passo seguinte”

O que torna inevitável perguntar: qual o sentido de depositar uma grande parte das esperanças em algo que se classifica como «amputado»?

III

A pergunta anterior vai para lá da mera manobra retórica. A interpretação da Constituição da República por parte do Tribunal Constitucional tem funcionado, conforme foi defendido pelo atual governo ou pela Comissão Europeia, como uma espécie de força de bloqueio de novas medidas de austeridade. Exemplos recentes deste aparente ativismo são o chumbo do corte das pensões do setor público, com base no argumento da violação do princípio de proteção de confiança, ou a declaração de inconstitucionalidade da extinção do posto de trabalho por parte da entidade empregadora, interpretada pelo TC como uma forma de despedimento sem justa causa.

Estas decisões, por si só, não possuem uma relevância acrescida. O problema, a nosso ver, reside na representação das mesmas junto da esquerda partidária e sindical, a qual tende a identificar no TC uma espécie de novo activismo, ao qual se atribui a derradeira alternativa à política de austeridade. Tal elevação apresenta sérios perigos. Em primeiro lugar, e na senda do que analisámos, o texto que serve de inspiração ao TC poderá sempre ser revisto (para isso, basta o, cada vez mais provável, entendimento entre o extremo-centro socialista e social-democrata). A promulgação do alargamento do horário da função pública para as 40 horas é um exemplo disto, não tendo o TC aceite o argumento de violação da proibição do retrocesso social evocado pelo PCP, Verdes e Bloco de Esquerda. Em segundo lugar, existe um perigo enorme na elevação do TC a uma espécie de órgão incorruptível, como se a sua ação fosse inteiramente baseada numa avaliação jurídica e não num cálculo político. Ou, a par deste argumento, o que vê no organismo a última emanação de soberania nacional que, ao contrário do actual governo – vendido à Europa – consegue traduzir o sentimento de uma «nação em cólera»: que esta venha a identificar a solução para a actual crise económica e mundial num pequeno grupo de técnicos jurídicos, nomeados de forma não democrática, encontra-se longe de constituir parte da solução. É, pelo contrário, parte de uma tendência desesperada de confiar a nossa salvação a liturgias de parca qualidade, frutos de reflexão de parca qualidade, a ser protagonizadas por figuras (individuais e/ou coletivas) de parca qualidade: da associação de sargentos das Forças Armadas aos «incorruptíveis» Paulo Morais e Marinho Pinto, passando pelo TC.

IV

A elevação política do TC coloca-nos uma questão acrescida, anteriormente mencionada: a do direito. Imersa num conjunto de relações sociais capitalistas, o direito não pode ser interpretada como algo à margem. A ideia de contrato social que o funda parte, precisamente, da ideia de que todo o indivíduo é inimigo do seu próximo, necessitando de uma instituição acima de ambos e dessa relação de troca em que em nome da segurança se abdica da liberdade. O resultado dessa troca, a cidadania, é a inscrição do indivíduo, isolado, num regime que, na aceção de Costas Douzinas, se assemelha a uma espécie de céu “em que as divisões sociais são temporariamente esquecidas à medida que os cidadãos participam numa forma limitada de democracia” [2]. Deste ponto de vista, a desigualdade de facto – representada na forma de atribuição de direitos naturais à propriedade e ao trabalho – é mitigada pelo direito, por um lado, por via da proclamação de uma igualdade, limitada a esferas bastante específicas (o direito de voto, por exemplo); por outro, pela gestão do antagonismo provocado por essa desigualdade de facto. O que a lei faz é “transformar o conflito social e político num conjunto de problemas técnicos regulados por normas e entregá-los a especialistas jurídicos” [3]. O TC não é mais que parte deste conjunto de especialistas.

Não está aqui em causa o recurso pontual a advogados ou mesmo a processos judiciais, mas sim a uma estratégia que, como pontos de partida e de chegada, parece ser enformada por uma série de organismos que pairam sobre as nossas cabeças. O reconhecimento das dificuldades provocadas pela tentativa de recomposição social capitalista – comummente designada de austeridade – não pode ser alvo de respostas desenhadas em cima do joelho, com base naquilo que temos à mão de semear. É por a situação ser desesperante que merece algo mais que receitas desesperadas. Reconhecendo a pouca probabilidade de uma inversão, a curto prazo, da correlação de forças, insistimos:

“o anticapitalismo só começa onde o autoritarismo estatal, em vez de se reforçar, depara com contra-instituições baseadas em princípios de organização opostos; e só começa quando nas empresas, em vez de ocorrer uma simples passagem da propriedade privada para propriedade do Estado, ocorre uma remodelação profunda das relações sociais estabelecidas no processo de trabalho. Não se trata de ciência livresca. São lições decorrentes da repetida experiência dos trabalhadores, que somaram graves derrotas para as aprendermos”.

Notas

[1] A Constituição da República Portuguesa viria ainda a ser revista em 2001, a fim de permitir a ratificação da Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional, alterando as regras de extradição; em 2004, com o aprofundamento dos poderes legislativos das regiões autónomas e a limitação dos mandatos de cargos políticos; e em 2005, com vista a permitir-se a realização de referendo sobre a aprovação de tratado constitucional europeu.

[2] Costas Douzinas, «Communism and Rights», In The Idea of Communism, Costas Douzinas e Slavoj Zizek, Londres, Verso, 2010, 83.

Fonte: Passa Palavra.

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