A Espanha condenada à repetição das eleições

O sistema político passou de bipartidário a multipartidário, fragmentou o voto, acabando com as maiorias absolutas e exigindo pactos e coligações, a que os partidos ainda não se adaptaram. As novas legislativas correm o risco de serem tão inúteis como as de Abril passado.

Por Jorge Almeida Fernandes.

O rei Felipe VI de Espanha resignou-se ao inevitável: a repetição das eleições legislativas em 10 de Novembro. O socialista Pedro Sánchez não conseguiu reunir uma maioria parlamentar. As legislativas de 28 de Abril foram inúteis, dando lugar a quatro meses de bloqueio. As previsões indicam que o tabuleiro político não mudará substancialmente. Diz a tradição que a principal função das eleições é produzir governos. A Espanha desafia esta regra. O ciclo da instabilidade política arrasta-se, aliás, desde as eleições de Dezembro de 2015.

Ouvidos os líderes partidários no palácio da Zarzuela, o rei comunicou à presidente do Congresso, Meritxell Batet, que não existe um candidato com os apoios necessários para ser investido pelos deputados como chefe do governo. Nestes termos, a legislatura expira a 23 de Setembro. “O rei dissolverá ambas as câmaras e convocará novas eleições”, diz o comunicado emitido nesta terça-feira à noite pela Zarzuela.

As primeiras reacções dos políticos logo marcaram a abertura da campanha eleitoral. Sánchez apelou ao voto e fez acusações: “Se a direita e o Unidos Podemos bloquearam a formação de uma nova legislatura, espero que dêem a maioria ao PSOE para que não haja mais bloqueios.” Acusou também os media de favorecerem o Unidas Podemos (UP), de Pablo Iglesias, e o Cidadãos, de Albert Rivera. O UP foi o alvo principal: “Sou o representante da força mais votada. Quero um governo único, e não dois em um, como queria o Unidas Podemos.”

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Iglesias antecipou-se na resposta: “Pedro Sánchez tinha um mandato para formar governo. Não quis. A arrogância e o desprezo pelas regras básicas de uma democracia parlamentar sobrepuseram-se à sensatez.” Depois, a estocada: “Nas últimas horas, vimos uma coisa: o PSOE prefere o Cidadãos.”

Após a audiência com o rei, fez uma derradeira manobra visando também as eleições. Responsabilizado por não ter dado uma alternativa ao PSOE, Rivera lançou um desafio aos socialistas. Prometia a abstenção na investidura desde que Sánchez fizesse uma “viragem constitucionalista”, rompendo os acordos com “independentistas e populistas”. Nesse caso, “a Espanha terá legislatura e governo”.

Tal como as reacções, as propostas de última hora para uma saída da crise foram iniciativas tácticas, a pensar nos argumentos para a campanha eleitoral – o jogo das culpas e desculpas. Perante uma opinião pública crescentemente pessimista e irritada com a repetição das eleições, todos procuram responsabilizar os rivais pelo fiasco. Sánchez pediu ao Partido Popular e ao Cidadãos uma “abstenção técnica” para viabilizar um governo socialista. Iglesias propôs uma coligação “experimental” com o PSOE “por um ano”. Pablo Casado, líder do PP, anunciara antes da audiência com Felipe VI que votaria contra em todas as circunstâncias.

O impasse era quase certo desde Julho. Após as eleições de Abril, Sánchez designou o Unidas Podemos (UP), de Iglesias, como “sócio preferencial”. Este exigiu uma coligação governamental em que dispusesse de ministérios-chave. A ideia do PSOE era outra: um acordo político sem partilha do governo. Ofereceu ao Podemos uma participação subalterna no governo, o que Iglesias rejeitou. As negociações falharam e a investidura parlamentar fracassou no dia 25 de Julho.

Perspectivas

Os socialistas partem para as eleições de 10 de Novembro com a convicção de que podem reforçar a sua representação parlamentar. Mas as sondagens são uma fotografia do dia de hoje e muito pode mudar até Novembro. Basta lembrar que 40% dos eleitores responsabilizam o PSOE pela crise de governabilidade.

Fazendo uma média das sondagens disponíveis, o analista Kiko Llaneras admite, na sua coluna de análise no El País, que o PSOE possa alcançar cerca de 32% dos votos, seguido pelo PP, com 19,5%. Seguir-se-iam o Unidas Podemos com 13,5%, o Cidadãos com 13%, e o Vox com 8,4%. Numa versão favorável, o PSOE poderia subir o número de deputados de 123 para 139.

Mas o PSOE continuaria a precisar do Unidas Podemos para superar a maioria absoluta. Anota Llaneras: “A novidade é que os dois partidos poderiam alcançar a maioria de 176 mandatos sem necessidade de terceiras forças. Mas não tenho a certeza de que isso facilite a negociação, pois também a complicaria, porque a chave estaria nas mãos do UP.” Regressaria com mais força o cenário da coligação de esquerda, que o PSOE nunca desejou.

Ao mesmo tempo, os socialistas seriam incentivados a negociar com o Cidadãos – o cenário mais desejado pelos eleitores – inclusive para reforçar o seu poder negocial. As circunstâncias políticas podem impor uma aliança ao centro. Todos os cálculos são especulativos, pois dependem da votação do partido de Rivera, em declínio nas sondagens, e sobretudo da sua problemática viragem política: o fim do “não a Sánchez”. A política real começará na noite dos resultados eleitorais.

Do outro lado está o bloco de direita. Pode obter ganhos importantes. Muito depende dos esquemas de aliança que façam entre si o PP, Cidadãos e Vox. Mas os cálculos mais optimistas não permitem prever a conquista de uma maioria absoluta. E, uma vez mais, o Cidadãos será confrontado com a vocação de partido-charneira, que Rivera abandonou em 2018.

De resto, o PSOE deve consolidar a hegemonia na esquerda, perante o Unidas Podemos. Na direita, o PP reafirmará uma paralela hegemonia, depois do fracasso do desafio que Rivera lhe lançou ao tentar liderar a área conservadora.

Em suma, o quadro político de Novembro não seria fundamentalmente diferente do desta legislatura: construir uma aliança governamental encontrará os mesmos problemas. Qual é o problema do actual sistema político espanhol?

Entre o veto e o pacto

“Ao fim e ao cabo, no mapa multipartidário que se vem forjando desde 2015, o factor-chave da governabilidade não está em ganhar eleições nem em obter mais mandatos”, explica a politóloga Marta Romero. “Está em saber negociar aproveitando as forças próprias e as debilidades dos adversários, em função de um contexto político em mutação.”

A função primordial das eleições é produzir governos. “A democracia não é o governo do [partido] mais votado, é o governo de que reúne a maioria dos deputados”, escreveu o politólogo Fernando Vallespín. É aqui que o sistema espanhol está bloqueado. Passou de bipartidário a multipartidário e fragmentou o voto, acabando com as maiorias absolutas e exigindo pactos e coligações. Ao nível regional e municipal, há uma enraizada cultura de coligações. A nível nacional, tal cultura é contrariada pelas estratégias de polarização a que os partidos recorrem para vencer as eleições.

A repetição das eleições era universalmente condenada mas impôs-se como um facto consumado desde 25 de Julho. O mais irritante, escreveu há dias Vallespín, é outra coisa: “Esta insistência em convocar uma e outra vez novas eleições é uma forma de dizer que não sabemos votar, ver se vamos dar de uma vez por todas a maioria de que Sánchez ou a direita precisam para governar. Os culpados não seriam, assim, os políticos, incapazes de se porem de acordo, mas os cidadãos.”

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Avisa Marta Romero que a actual situação de bloqueio pode funcionar como uma espécie de stress test político. “Pode pôr à prova o limiar da tolerância social perante a (in)capacidade de a classe política chegar a acordos. E pode desembocar na reemergência do descrédito institucional e da insatisfação dos cidadãos quanto ao funcionamento da democracia.”

 

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