Por Paulo Passarinho.
No momento em que multidões tomam conta das avenidas das cidades brasileiras e conquistam suas primeiras vitórias, com reduções no preço das passagens, muitas questões emergem desse surpreendente momento.
Vou me ater ao que considero a questão de fundo mais relevante, seja para compreender um pouco das variadas razões do descontentamento manifestado com tanta força ou, mais importante, para iniciar um debate sobre o que pode significar o “mudar o Brasil”, a consigna talvez mais abrangente para o formidável movimento.
Mudar o Brasil é de fato necessário.
Apesar da propalada campanha midiática sobre as supostas mudanças estruturais brasileiras, ocorridas a partir do plano real, a realidade parece teimosamente mostrar o contrário. Neodesenvolvimentismo, nova classe média, ascensão social de milhões de brasileiros, fim da miséria, fim da dívida externa, fim da inflação ou o sucesso das privatizações, imposturas sustentadas pelas classes dominantes, por seus meios de comunicação e por um leque de partidos corrompidos pelo grande capital, parecem não se coadunarem com o grito das ruas.
Desde a eleição de Collor, no início dos anos 90, a agenda política de interesse dos bancos e das multinacionais tem ditado os rumos do país. A partir do fim do processo de renegociação da dívida externa, do início das privatizações e do plano monetário que procurava sustentar a paridade de valor da moeda nacional com o dólar, demos início a uma séria mudança no modelo econômico do país, extremamente perigoso para o nosso futuro.
Contudo, a forte redução dos índices de inflação, o aumento do mercado de consumo e fases de crescimento interno – acompanhando as ondas expansionistas da economia internacional – têm dado fôlego econômico e político para a consolidação de um modelo de subdesenvolvimento e dependência externa do país.
O fôlego político desse modelo pode ser comprovado pelas duas sucessivas eleições de FHC, ambas já no primeiro turno das eleições disputadas em 1994 e 1998; e pelas duas eleições disputadas e ganhas pelo PT, em 2006 e 2010. A exceção foi a eleição em 2002.
Apesar do produzido Lula “paz e amor”, sua campanha se sustentava – e se legitimou como alternativa ao PSDB – na forte crítica que o PT e seus aliados faziam ao modelo dos bancos e multinacionais que, naquele momento, dava mais uma vez sinais de seu esgotamento.
Como sabemos, apesar da vitória eleitoral, a identidade crítica do original PT ficou para trás. Entrou em cena paulatinamente o dominante lulismo, no comando de um novo centrão conservador. O lulismo deu fôlego ao modelo dos bancos e multinacionais, ampliando o seu leque de apoio com a crescente cessão de espaços ao agronegócio e também aos fundos de pensão, que, desde a fase mais intensa das privatizações, com FHC, já haviam sido cooptados. O lulismo, ao mesmo tempo, atraiu e neutralizou as direções de entidades e movimentos sociais anteriormente combativas.
No plano econômico, além de manter o tripé da política macroeconômica que se traduz em juros altos, arrocho fiscal e câmbio valorizado, o governo Lula aprofundou e fortaleceu a política social focalizada, conforme recomendação do Banco Mundial, e manteve e ampliou a política de recuperação do valor real do salário-mínimo, iniciada com FHC.
Com a forte expansão e valorização do comércio internacional das commodities, entre os anos de 2003 e 2007, as contas externas apresentaram saldos em conta-corrente, reduzindo em muito o risco do país no mercado internacional de crédito. Grandes empresas e bancos, captando recursos financeiros no exterior a um custo reduzido, e encontrando no Brasil aplicações financeiras e oportunidades de negócios variadas, ampliaram o mercado de crédito, de forma inédita no país.
A ampliação do consumo das classes pobre e média, através do mercado de crédito a altas taxas de juros, garantia uma dupla vantagem: alta rentabilidade para o capital e a expansão do consumo das famílias, via endividamento. Politicamente, permitiu a apologia de uma concepção de cidadania baseada no mercado de consumo mercantil, intensamente capitalizado pelos grandes meios de comunicação e pelo governo.
Ao mesmo tempo, o calvário das políticas públicas voltadas à população se acentuava. A política de câmbio flutuante, e sobrevalorizado, impõe a política monetária de juros reais elevados e crescentes despesas financeiras. Com isso, quase metade do orçamento anual da União é consumido com o pagamento de encargos financeiros, impondo o constrangimento fiscal que apena, especialmente, as despesas sociais sob responsabilidade do Estado.
A crise internacional, que explode a partir de 2007 e 2008, começa por inverter os sinais das contas externas brasileiras, a partir da redução dos saldos de comércio, pela pressão das crescentes despesas com importações, e da elevação sistemática das despesas com remessa de lucros, juros e outros serviços.
O consumo das famílias, por sua vez, em decorrência do forte endividamento, ainda conseguiu se sustentar positivamente durante algum tempo, mas já demonstra sinais da sua limitação. Por outro lado, as sucessivas medidas de incentivo ao consumo, isenções fiscais e facilidades de créditos subsidiados para as grandes empresas não foram capazes de reativar o ritmo de atividade econômica, em especial as taxas de investimento.
O resultado desse processo começa a se esboçar. Voltamos a ter baixas taxas de crescimento, em um ambiente econômico em que dependemos cada vez mais do sucesso das exportações de commodities. Mais grave: a desnacionalização da economia; a regressão industrial traduzida pelo processo de substituição de peças, componentes e insumos nacionais por produção importada; o fortalecimento dos oligopólios; o domínio do setor financeiro e a concentração de renda e riqueza por um seleto grupo de corporações empresariais são marcas e obstáculos gravíssimos que temos à frente. Além disso, o crescente endividamento financeiro da União, das empresas e das famílias faz com que haja um claro limite para esse tipo de política.
Todas essas contradições parecem que começam a ter as suas consequências. A deterioração dos serviços públicos básicos para a população – onde a situação da saúde é dramática – e o brutal encarecimento de serviços essenciais, do custo da energia elétrica e da telefonia ao dos transportes públicos, são exemplos de problemas que somente se agravam.
Além de tudo isso, a verdadeira farra com recursos públicos utilizados para a realização dos jogos da Copa do Mundo, em meio a sucessivas denúncias de corrupção de toda ordem, criaram o caldo de cultura que agora se mostra transbordando nos gigantescos protestos populares, puxados por uma juventude que quer mudanças.
Tendo como estopim o reajuste nos preços das tarifas dos transportes públicos, de péssima qualidade, e de cidades onde a mobilidade urbana é cada vez mais um eufemismo, as reivindicações que se avolumam nas ruas agora se tornam complexas. Apontam claramente para a necessidade de mudanças que há décadas são objeto da reação contrária de nossas elites dominantes.
A pauta que ora se projeta das ruas amplia as suas reivindicações, denuncia a transformação de nossas grandes cidades e dos governos de plantão em balcões de negócios e coloca a nu contradições evidentes, mas que até agora se encontravam represadas.
Os manifestantes, agora, questionam partidos, lideranças e pedem desculpas à população, pois sustentam que “estamos mudando o Brasil”.
Este será o grande desafio. A indignação popular ganhou expressão nas ruas e tenderá, a partir de agora, a adquirir maior radicalidade na exigência de mudanças estruturais verdadeiras.
Ganha espaço a possibilidade de um modelo que subordine a lógica econômica às necessidades da maioria da população. Isso exigirá maior precisão, especialmente da oposição de esquerda ao governo, na definição programática das mudanças que de forma difusa são exigidas nas ruas.
A alteração substantiva da política macroeconômica, a reforma do arcabouço jurídico-institucional – com destaque para a reforma política e a legislação regulatória dos meios de comunicação de massa -, além de antigas e acalentadas reformas econômicas estruturais, podem e devem voltar à ordem do dia.
Um novo tempo aponta no horizonte político e a era das imposturas, que marca o país desde os anos 90, pode estar com os seus dias contados. As ruas e a juventude serão decisivas para a alvorada de uma nova era.
Fonte: Correio da Cidadania, 21-6-2013