Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
Escrito pelo aniversário de um ano da morte de George Floyd, quando o Governador do Estado norte-americano, dizia que A ÚNICA solução era essa: cultura e educação.
“Privilégio não é a presença de vantagens e benefícios. É a ausência de obstáculos e barreiras. Isso é muito mais difícil de perceber. Se você tiver dificuldade em reconhecer seus privilégios, concentre-se no que você não precisa passar e deixe que isso te alimente de empatia”. Marie Beecham.
Não é verdade que a solução dos nossos principais problemas como o racismo e o machismo passa, necessariamente, pela educação. A educação requer paciência pedagógica. Pro racismo, acabou-se a paciência.
Não devemos atrever-nos a pedir paciência a quem está morrendo, de fome, ou de bala (da polícia); ou qualquer mulher assassinada pelo próprio ex-companheiro. O discurso da educação é um discurso fácil de encarregar a professoras – elas sempre foram maioria em relação a Eles, e nunca as incorporamos numa linguagem inclusiva e verdadeiramente transformadora.
Passamos muito tempo atribuindo a elas, às educadoras, aquilo que não praticamos nós mesmos. Isso tem nome: chama-se hipocrisia – palavra amarga, que machuca. Incoerente.
É bonito esse discurso, porque educação é uma palavra linda. Mas as pessoas que passaram toda a vida encarregando a solução dos nossos problemas sociais à educação sabem que a escola hoje é regida pela ótica do capitalismo: não para formar cidadãos, e sim para formar mão-de-obra para o mercado de trabalho. É sábio esperar da escola o tanto e o somente que a escola pode nos dar, sem ilusões.
Afinal, não se trata de um mero “desencargo de consciência”.
É claro que há exceções, e que sempre as apoiaremos. Mas exceção é exceção. E, em geral, a maioria dos estudantes, quando perguntados na escola se querem ir à escola (ou no que mais gostam da escola), já te responderá com um rotundo não. E com imensa desilusão.
Não é hora de sair por aí buscando culpados, entre nós mesmos. Não há tempo a perder quando já sabemos onde está o problema. Criamos vários artifícios para não falar do que nos incomoda. Como se não falar fosse cômodo. Não falar é engolir. Não desaparece. Transforma-se, como um monstro; como toda essa merda, dentro da gente. Cresce e explode.
Cômodo pra quem, cara-pálida?! O não falar beneficia sempre ao menos incomodado. Porque pra cada muito incomodado (um assassinado é o ápice do incomodado) há um menos incomodado. Não é jogo de soma zero. Pra cada um que perde, há quem ganha. E o pior de tudo é que são sempre os mesmos. Mas há ganhos sutis, entre nós mesmos, também.
Portanto, a solução para o machismo e para o racismo não passa necessariamente pelo desencargo de consciência de exigir da escola pública (e nem te falo da privada, a aberração já “normalizada”), o que ela, a escola, não seria capaz. Que por mais que a gente queira, já sabemos que – sozinha, principalmente – ela, a escola, não será capaz de resolver.
Também não é a cultura que nos salvará.
A cultura, no marco em que estamos (sem mais hipocrisias, por favor), dentro da sociedade capitalista e individualista, também alivia consciências. Porque se compra. Por quem se pode permitir: comprar cultura. Não só os milionários. Porque todos compramos cultura, cada dia.
E é legítimo vender cultura quando se necessita dela para comer. O que não é legítimo é tranquilizar tua própria consciência, enganando-te a ti mesmo, comprando “a cultura” que te convém. Mas, afinal, qual o conceito de cultura, para você?
Cultura tanto pode ser festa quanto arte. E pode ser muito mais.
A festa é efêmera, embora sempre a defenderemos – pelo seu caráter emancipador. A festa é libertária por natureza: libera nossos sentimentos e emoções. Mas o mesmo que liberta, entorpece, aliena e pode ser conservador, afinal. E aqui estaremos falando todo o tempo da pior mentira: a que é capaz de contar-se para si mesmo. Faltam espelhos na tua casa?
A arte é diferente, embora quando combinada com a festa pode ser maravilhosa. A arte (como a tecnologia) está repleta de importantíssimas possibilidades. Não é boa ou má em si, pois há que contextualizar-se. E isso depende de cada um. Redes sociais, por exemplo, não são boas ou más em sim. O que você faz ou deixa de fazer com elas, pode ser, sim: pro bem ou pro mal.
Milhões de anos atrás, os filósofos estoicos já diziam: não é tão importante o que acontece (que sim, o é!), mas será sempre mais importante o sentimento que nos produz cada coisa que acontece. Porque nos abre a possibilidade de agir, interpretando, ou melhor: sentindo-nos.
O discurso de apreciar um artista e apostar na cultura como redentora também é lindo e é sedutor. Mas não é suficiente. E, sem dúvida, anestesia. É recomendável. Mas não é tudo.
Poderia ser realmente libertador, se estivéssemos em outro estágio de consciência mundial. Mas a situação “lá fora” é de desespero mesmo. A estatística fala por si e eu poderia buscar mil dados para justificar a necessidade de urgência mundial. Mas não preciso, pois não é disso que estou falando. Cura melhor o remédio que mais arde, já dizia a minha avó.
O terceiro discurso falido é o que prega a concórdia, outra palavra linda. Defender a paz, no meio do campo de batalha, pode até ser lindo e necessário (e o é, sim) – mas, infelizmente, também mata. Principalmente quando há um desarmado e outro que está prestes a te matar. E que, efetivamente, te mata – aliás… De onde você prega a sua, a tal da paz? Vais pedir paciência a quantos Georges Floyds, enquanto eles gritam que já não podem respirar?
Onze minutos é o tempo estatístico de violência sexual contra as mulheres no Brasil. Vinte e três anos é a estimativa de vida de milhões de jovens pretos brasileiros. Qual é o país recordista de mortes homofóbicas? Qual a esperança de vida de uma Transexual brasileira?
Você vai ter coragem de pedir a elas pra esperar mais o quê, cara-pálida?
O seu privilégio já não se trata daquilo que te beneficia, naquela desgraçada escala de valores: homem, branco, binário… O seu privilégio é mais imperceptível naquilo que cria dificuldades para os outros que não o tem. É tão complexo e ao mesmo tempo fácil de ser entendido quando você não olha para o outro (o que já deveria ter feito, mas não fez – e agora é tarde), mas basta olhar-se no espelho para percebê-lo. Não se trata meramente de individualizar soluções de tão imensos problemas. Porém, saltar para o caminho da transformação coletiva, sem investir no que temos mais perto, tu mesmo, o mais perto entre os mais pertos, e o companheiro, aqui ao lado, pode não apenas ser perda de tempo, e sim um desperdício de oportunidade. E se o errinho estratégico tivesse sido esse durante todo esse tempo?
Atenção, pois este não é um debate novo. Eu só estou propondo “revisitá-lo”, à luz do dia.
Sim, havia outro caminho. E o debatemos, inúmeras vezes, entre nós mesmos – dentro “da esquerda”. É claro que Marx já disso não teria mais culpa. E ainda há que agradecer-lhe.
Mas urge aquele caminho outro, novo, agora mesmo.
O nunca antes provado. O duro caminho do reconhecimento. O dos passos básicos: reconhecer, assumir, mudar… Nem é primeiro mudar a si para só depois mudar o mundo; e sim, uma compreensão mais ampla de que “se transformando” o mundo – inexoravelmente, e ao qual estamos todos relacionados – vai mudando, tudo junto. De forma indissociável.
Não deixarei de insistir em lutar contra fascista. Mas não é incompatível de lutar comigo mesmo. E com meus companheiros, dentro da minha própria bolha. E se não for somente o caminho de querer ampliar a tal da nossa bolha? E se for também para torná-la, aqui dentro mesmo, melhor e mais atrativa, possibilitando-a seduzir quem, lá de fora, mereceria entrar.
Porque não sou ingênuo. Há gente no mundo que não merece minha menor perda de tempo.
Não se trata de deixar de enfocar a concentração de riquezas do 1% mais rico (algo que, sim, seguiremos fazendo); e daí virá a nossa força, em um novo estágio. Sim, virá! Não se trata do repartimento das nossas misérias. Isso não! Mas é o reconhecimento de que, mesmo na miséria, há quem perde mais que o outro. Reconhecer o que (eis o caminho diferente para chegar ao mesmo) nos fará recuperar o tempo perdido. Recuperar daquele que mais acumulou, sim senhor. Mas TAMBÉM recuperarmos de e entre nós mesmos. Recuperar quando realmente percebermos o que é, de fato, riqueza.
Lamento, mas já não temos tempo a perder. “Só o Mundo não percebeu”, diria Publius.
Conto (contamos) contigo. Vamos?
Flávio Carvalho. Barcelona, 25 de maio; 5 de junho de 2005. Primavera na Catalunha.
@1flaviocarvalho. @quixotemacunaima. Sociólogo e escritor.
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