Por Marina Oliveira e Guilherme Cavalli.
Em maio de 2019, Papa Francisco convidou jovens de todas as partes do planeta para participarem do Encontro da Economia de Francisco [e Clara]. Na convocatória, reforçou a importância da construção de um projeto popular de Igreja e de sociedade. Francisco propõe discutir uma nova proposta de modelo econômico que coloque a vida no centro – e não se resume à vida humana. Afirmou na carta que propôs o evento a urgência de “uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda”. No encerramento do encontro, que ocorreu online, o pontífice apontou a urgente necessidade de mudança.
Ao convidar jovens de diferentes lugares, áreas de conhecimento e setores para conduzir as discussões, a igreja sinodal indica que a “Economia” não deve ser tratada como assunto distante da realidade das pessoas por que em sua origem trata da “norma da casa”. Logo, diz respeito unicamente a como as pessoas sobrevivem, produzem, distribuem riquezas – ou não distribuem. Francisco enfatiza que a agenda econômica deve ser assunto pensado, debatido, questionado e construído por todas e todos, sem qualquer tipo de exclusão. O que propõe é a “economia real”, que tem o bem comum no centro de um modelo de desenvolvimento que beneficia “gente comum”. “[…] na vida econômica e social se devem respeitar e promover a dignidade e a vocação integral da pessoa humana e o bem de toda a sociedade (GS 63).
“Não somos coagidos a continuar admitindo e tolerando silenciosamente com nossas práticas “que uns se sentem mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores direitos” [12] ou privilégios para o gozo garantido de certos recursos e serviços fundamentais [13]”, asseverou Francisco no discurso final do encontro Economia de Francisco e Clara.
São constantes as contribuições do Francisco de Roma ao mundo, extrapolando os fiéis como os únicos interlocutores. Quando o assunto é o sistema econômico e financeiro, o “Papa do fim do mundo” lança o chamado de ir além da pandemia causada pela covid-19, preocupando-se também em curar outros grandes vírus, como a injustiça social, a desigualdade de oportunidade e a marginalização dos mais pobres. O bispo de Roma proferiu numerosas críticas sobre uma economia onde reina “a ambição desenfreada pelo dinheiro”, descrita por ele como “o fertilizante do diabo”. Uma das críticas diz respeito ao “fio invisível” que guia todas as múltiplas exclusões e injustiças, norteados por um “sistema que impõe a lógica do lucro a todo custo, sem pensar na exclusão social ou na destruição da natureza”. O mito de que a liberdade do mercado promoverá a segurança e estabilidade é desvelado hoje pela pandemia, que obrigou a humanidade a pensar em coletivo, mais do que em benefícios de alguns. Se a sociedade se rege primariamente pelos critérios da liberdade do mercado e da eficiência, não há lugar para os pobres e a fraternidade será uma expressão romântica (cf. FT 33 e 109).
“O presente momento clama para uma mudança profunda” – Papa Francisco
Os ensinamentos do sucessor de Pedro, que hoje chama as juventudes ao protagonismo e à radicalidade para mudança, apontam para a necessidade urgente de repensar as práticas econômicas capitalistas, raiz das injustiças e das violações dos direitos humanos e da natureza. “Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética, exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos. […] O dinheiro deve servir, e não governar!” (EG 58). O presente momento clama para uma mudança profunda que refute os atuais modelos de produção baseado predominantemente na exploração do meio ambiente para a concentração de renda, em culto ao privado: “a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada e sublinho a função social de qualquer forma de propriedade privada” (FT 120).
O sistema econômico em vigência [o capitalismo] é sustentado por atores muitas vezes com interesses estrangeiros e legitimadores de práticas coloniais seculares, que, por sua vez, fragilizam democracias frente aos poderes econômicos transnacionais que aplicam o “divide e reinarás” (cf FT 12). E porque dividem, são diabólicos. Ao se clamar por uma economia de Francisco e Clara, é impreterível organizar as economias para a redistribuição dos recursos naturais, da riqueza e da renda, com critérios de equidade, assim como a democratização do acesso a recursos econômicos, como, por exemplo, o crédito. A democratização do acesso ao crédito, por exemplo, é elemento basilar para a implementação e fortalecimento de alternativas econômicas, ou seja, de economias solidárias, que incluem cooperativas e economias comunitárias, autogeridas e públicas (Coraggio, 201).
É fato constatado que o capital financeiro não se preocupa em impulsionar atividades produtivas. Pelo contrário, por sua lógica interna se encarrega de promover lucros por meio da especulação, simplesmente para garantir sua busca interminável de acumulação do capital (HARVEY, 2014). Os territórios e as populações mais impactadas pelas manobras de desvalorização e de especulação são aquelas já em situação de maior vulnerabilidade social. A proposta franciscoclareana não titubeia: as finanças devem apoiar o aparato produtivo, e não mais ser instrumento de acumulação e concentração de riquezas. No discurso de encerramento, o Francisco de Roma apontou a insuficiência de “modelos econômicos que se concentram no lucro como padrão de medição e na busca de políticas públicas relacionadas que ignoram os custos humanos, sociais e ambientais do lucro [11]”.
Uma economia de toda a criação
Críticas ao modelo econômico de desenvolvimento predatório e ecocida estão presentes em inúmeras homilias e nas exortações escritas por Francisco, de forma detalhada na encíclica Fratelli Tutti. Diante da crise sócio-ambiental instaurada por essas práticas econômicas, Francisco convida a Igreja e a humanidade a se opor a modelos econômicos que prejudicam gravemente a vida. “[…] É necessário buscar modelos econômicos alternativos, mais sustentáveis, amigáveis com a natureza, com um sólido “sustento espiritual”, aponta o Documento Final do Sínodo da Amazônia. A exortação “Querida Amazônia”, escrita por Francisco como fruto da jornada sinodal, aponta novamente a urgência de uma revolucionária conversão ecológica. Recuperar a complementaridade entre ecologia e economia é desafio assumido por Francisco desde a Laudato Si, que comemorou recentemente cinco anos de sua publicação, e de modo ainda mais explícito na Fratelli Tutti.
Para a conversão ecológica, o imperativo capitalista, verdadeiro dogma de crescimento ilimitado e absoluto – com todas as suas violências classistas, machistas, racistas e imperiais – deve ser posto em xeque. Chama a atenção como esse modelo econômico que gera a morte busca se aproximar de Igrejas, Universidades, e inclusive domesticar a profecia dos Franciscos e das Claras para limpar a imagem de corporações e maquiar as violências que causam a comunidades, aos povos e à Pachamama. “Estamos falando de uma conversão e transformação de nossas prioridades e do lugar do outro em nossas políticas e na ordem social”, disse Francisco, “ou de convidar os jovens a “viver sem medo os conflitos e as encruzilhadas da história para ungi-los com o aroma das bem-aventuranças”.
“Querida Amazônia” denuncia a depreciação de “projetos econômicos de extração, energia, extração de madeira e outras indústrias que destroem e poluem” (cf. QA 49), que ignoram o impacto ambiental causado por suas atividades. São braços do sistema econômico vinculado a uma lógica ocidental fragmentada, que se orienta pela dominação da natureza e se sustenta pela modernidade racionalista. O modelo capitalista vigente habilmente se reinventa em suas crises desde uma ideia de que o meio ambiente, o social das relações históricas de povos e comunidades podem ser explorados e mercantilizados numa visão reducionista da natureza como fonte da economia extrativista. Por isso, não é suficiente apenas desacelerar a roda viva do capitalismo, que mói gente e natureza. É urgente que se freie e pare a roda. Faz-se necessária outra economia para outra civilização.
“Novos motores” da economia devem girar em torno da solidariedade, da reciprocidade, da complementaridade, das harmonias e da relacionalidade.
Os rendimentos dos bancos e do sistema financeiro, não podem ser a finalidade das economias. “A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura (LS 189). É urgente que se refute, desde a solidariedade humana, os princípios do capitalismo. E isso não se faz a partir do próprio capitalismo, mas o colocando em xeque. O que se percebe, mesmo em eventos que se propõem alternativas, são maquiagens, como “economia verde”, “empreendedorismo social”, “ecocapitalismo” e “responsabilidade socioambiental”, que no fundo são habilidades camaleônicas do capital em se utilizar das crises para reinventar-se. Trata-se de conceitos, na maioria das vezes, cunhados e/ou defendidos por capitalistas a fim de garantir a redução de seus impactos mortíferos, objetivando, em última instância, a manutenção do status quo.
Há de nascer, da Economia de Francisco e Clara, uma economia da solidariedade, proposta pelos movimentos sociais e populares, que tem em sua radical prioridade a vida de todos, em contraposição à apropriação dos bens comuns por parte de alguns. Para isso, é necessário combater as causas estruturais da pobreza, da desigualdade, da falta de trabalho, de terra e de moradia, enfrentando os destruidores efeitos do império do dinheiro (cf FT 116). No discurso final do Economia de Francisco e Clara, o papa adverte: “Só os sistemas de crédito são um caminho para a pobreza e a dependência. Esta legítima exigência exige a criação e o apoio de um modelo de solidariedade internacional que reconheça e respeite a interdependência entre as nações e favoreça mecanismos de controle capazes de evitar todo tipo de sujeição, bem como de assegurar a promoção, especialmente dos países submersos e emergentes; cada povo é chamado a se tornar o arquiteto de seu próprio destino e do mundo inteiro [21]”.
Uma economia pós-extrativista
Nas últimas décadas, especialmente desde as reformas neoliberais aplicadas em vários países do sul global sob governos autoritários orientados pelo imperialismo norte-americano, a América Latina tornou-se o centro da expansão da mineração transnacional. Esta expansão, considerada por governos e setores econômicos como o motor do desenvolvimento dos países, contrasta fortemente com os impactos sociais, ambientais, culturais e econômicos impostos às comunidades e aos povos que habitam os territórios onde operam estes empreendimentos. O modelo extrativista é uma modalidade de produção econômica que significa maior dependência do mercado mundial, maior destruição das bases vitais ecológicas, externalização dos gastos sociais e ecológicos e um crescente desprezo aos direitos das minorias sociais e políticas (Gudynas, 2012; Lander, 2012, Svampa, 2012).
“O mercado sozinho não resolve tudo como nos querem fazer crer no dogma de fé neoliberal” – Papa Francisco
O desenvolvimento não deve se orientar para a acumulação crescente de poucos. Por outro lado, deve assegurar os direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das nações, dos povos e da natureza: “enquanto o nosso sistema econômico produza uma só vítima e exista uma só pessoa descartada, não haverá uma festa de fraternidade universal” (cf FT 110). Em outras palavras, os lucros de alguns e a liberdade do mercado não podem estar acima dos direitos dos povos, nem da dignidade dos pobres, tão pouco acima do respeito ao meio ambiente (cf FT 122).
Os impactos da economia extrativista se refletem em centenas de conflitos socioambientais, especialmente nos continentes (latino)americano e africano. O papa latino-americano conhece as “veias abertas” do seu continente de origem, saqueado desde sua invasão. As histórias de ontem e hoje relatam violações dos direitos humanos, assassinatos e criminalização de defensores da terra, destruição de ecossistemas, deslocamento de pessoas, obstáculos de acesso à água, destruição das economias locais, corrupção, deterioração das democracias, etc.
Francisco de Roma nomeia como “injustiça e crime” as operações econômicas que prejudicam o meio ambiente, que não respeitam o direito dos povos nativos e seus territórios, assim como sua autodeterminação (cf. 14 QA). “Quando algumas empresas sedentas de lucros fáceis se apropriam da terra, mesmo privatizando sua própria água potável, ou quando as autoridades deixam suas mãos livres para madeireiros, projetos de mineração ou petróleo e outras atividades que devastam as florestas e poluem o meio ambiente, elas transformam indevidamente as relações econômicas e se tornam um instrumento que mata” (QA 14).
As perspectivas para os continentes (latino) americano e africano são de aprofundamento e ampliação deste modelo de extração para áreas antes protegidas, como reservas e parques naturais, assim como territórios indígenas. Esta é mais uma estratégia utilizada pelos setores econômicos, conhecida como “acumulação por espoliação”. Isto é, para compensar declínios econômicos, os capitalistas se apropriam de territórios onde a força de trabalho e os recursos naturais tenham um custo inferior (HARVEY, 2014). Isso acontece por meio de saques de recursos naturais de países periféricos, por meio da espoliação de saberes, da privatização, da expulsão das populações de seus territórios, da escravização de povos, entre outros (HARVEY, 2004).
Todas essas violações de direitos são acompanhadas por uma deterioração das políticas de proteção ambientais, que preferem relativizar as advertências emitidas pela natureza e que direcionam para um desequilíbrio socioambiental causado pelo atual modelo econômico. Que responsabilidade a humanidade atual tem para com as gerações futuras? “Já não se pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma solidariedade intergeneracional” (LS 159).
Na encíclica Laudato Si’, Francisco lembra o beato Paulo VI, que já em 1971 apresentou o problema ecológico como uma crise causada pela atividade descontrolada do ser humano através de “uma exploração irrefletida da natureza pelo próprio homem”, que carrega consigo o perigo de autodestruição. Todavia, em 40 anos desde o pontificado de Paulo VI, o atual sistema econômico se tornou ainda mais feroz e desigual. Inclusive, se inaugurou o antropoceno e o necroceno, onde o ser humano e o sistema predominante são o grande projeto de morte de pessoas humanas e de milhares de organismos vivos. Se chegará a um limite e a um ponto absoluto de saturação, que em termos de consumo, ocorreria em 2030. A natureza vítima dos impactos socioambientais causados pelo capitalismo exige uma “abordagem integral” e interligada para propor novas alternativas econômicas que combatam as desigualdades sociais que vêm sendo retroalimentadas ao longo das últimas décadas.
Uma análise da economia predominante na América Latina mostra o crescimento de territórios isolados economicamente, uma vez que a indústria extrativista não permite uma diversidade econômica sustentada por uma diversificação produtiva. Países tornaram-se territórios primários-exportadores com uma desterritorialização da economia. O capitalismo captura o Estado com a “desterritorialização do próprio Estado”, que passa a conceder direitos territoriais e sociais de comunidades e populações a multinacionais.
Desde os territórios, com iniciativas locais que brotam nas comunidades, há que se modificar a visão equivocada de que as necessidades de consumo são infinitas, rompendo com a cultura do descarte. Para isso, é necessário descolonizar o imaginário que sustenta nas entranhas mais profundas do desejo humano pelo consumo desenfreado. Logo, descolonizados os comportamentos de consumo e de produção, diminui-se a carga de domínio sobre a Mãe Terra. Refunda-se a sociedade pela reinvenção do próprio ser humano. Nega-se o eixo fundamental do paradigma atual, que é o domínio da vida, da natureza e do outro. Germina assim, desde as comunidades, bairros e pequenas cidades, um projeto de fraternidade universal, com propostas de novas democracias participativas, amparadas pela defesa da justiça social, sem a qual não existe paz.
Um sistema econômico sustentável exige uma reforma ecotributária
Não há como propor outro modelo econômico sem refutar a lógica antropocêntrica que atribui valor à natureza na medida que a mesma se ordena ao ser humano, numa violência da tecnociência. Um sistema econômico sustentável exige uma reforma ecotributária, estabelecendo limites para o consumo de recursos naturais e para as emissões de gases estufa de efeito estufa. A partir disso, tratam-se caminhos para a redução do consumismo e das desigualdades, buscando o fortalecimento das capacidades e do capital social das pessoas, na medida em que auxilia os países do Sul na transformação e diversificação de suas matrizes econômicas (Jakson, 2009; Muraca, 2013a).
Um outro mundo já não é apenas possível, se não necessário. As alternativas econômicas ao capitalismo monopolista e neoliberal – hegemonizado pelas finanças – não será obra do grande capital. São os povos, as mulheres, as comunidades, os trabalhadores através das suas organizações sociais, que construirão – no presente e no futuro – as condições de superação desse modelo e de avanço para uma economia anti-neoliberal e pós-capitalista.
Para isso, será preciso enfrentar o debate macroeconômico e compreender que não dá mais para subestimar o papel do Estado como uma estrutura fundamental para a promoção do equilíbrio entre igualdade na diversidade. Isso fica evidente ao perceber que a desigualdade social se agrava na medida em que os Estados são enfraquecidos, até serem plenamente capturados pelo poder absoluto do dinheiro, degradando o sentido da democracia, do bem-estar social e do bem comum.
Papa Francisco aponta para um outro mundo que começa a surgir com movimentos juvenis que impulsionam um projeto multifacetado e que pretende mobilizar apoio para uma mudança de rumos, tanto no nível macro das instituições econômicas e políticas, quanto no nível micro dos valores e das aspirações individuais (Kallis, 2011). É o mundo da economia, da política, da saúde e da educação de Francisco e Clara.
Uma economia do amor
Importa, no fim, ressaltar que a inauguração de uma nova economia supõe a mudança de paradigma civilizatório dentro do qual ela se realiza. O Papa na Fratelli Tutti reconhece que “atualmente não há um projeto comum para a humanidade” (n.18). Por isso uma advertência severa perpassa esta nova encíclica social: “estamos na mesma barca… ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos” (n.32).
Face a este risco real, o Papa Francisco apresenta uma alternativa salvadora: “um novo sonho de fraternidade e de amizade social” (FT n.6). Devemos compreender bem esta alternativa. Viemos e estamos ainda sob um paradigma que está na base da modernidade e do capitalismo. É o reino do dominus: o ser humano como senhor e dono da natureza e da Terra. Estas só possuem sentido na medida em que se ordenam a ele. É um explícito antropocentrismo, criticado na Laudato Si’. Esse paradigma mudou a face da Terra, trouxe muitas vantagens como o antibiótico e todos os meios de comunicação, mas também criou um princípio de autodestruição com armas químicas, biológicas e nucleares que podem destruir a vida por várias formas diferentes. Face a este paradigma ameaçador do dominus, senhor e dono, o Papa contrapõe o frater, o irmão e a irmã. Ele não se sente fora e acima da natureza, mas dentro dela como irmão e irmã, no sentido de São Francisco de Assis, que chamava a todos os seres com o doce nome de irmãos e irmãs, visão retomada explicitamente pela Fratelli Tutti.
Nessa viragem do “senhor e dono” da natureza e da Terra para “o irmão e irmã” de todos (Fratelli Tutti) está a salvação de a esperança de um futuro bom para a nossa vida na Casa Comum. A nova economia de Francisco e Clara se inscreve dentro deste quadro, sem o qual ela perde seu fundamento e corre o risco de ser capturada pelo gênio do capitalismo que tudo assume, ressignifica e segue seu curso de exploração e de desumanização.
O Papa se dá conta do inusitado desta proposta paradigmática ao reconhecer: “parece uma utopia ingênua, mas não podemos renunciar a este sublime objetivo” (n.190). Por que faz semelhante confissão? Por que não temos onde buscar novos valores e princípios que inaugurem um novo paradigma de civilização e, consequentemente, uma nova economia. A fonte onde o Papa vai beber as razões de sua proposta se encontram no próprio ser humano. Os valores ausentes no sistema imperante ou que eram vividos de forma individualista e subjetivista, ele os universaliza e generaliza. Neles está a base do novo que deve surgir.
Assim, é o amor que deixa de ser uma experiência somente entre dois seres que mutuamente se atraem, para emergir como amor social. É a amizade que ganha uma expressão social, “pois não exclui ninguém” (n.94) é a fraternidade entre todos os humanos, sem fronteiras, incluindo, no espírito de São Francisco de Assis, os demais seres da natureza; é a cooperação aberta a todos os países e a todas as culturas; é o cuidado, começando por cada um (n.117) e expandindo-se para tudo que existe e vive; é a justiça social, base da paz, é a compaixão para os caídos nos caminhos. Todo esse mundo de excelências está presente no ser humano. Sobre esta base irá se construir a nova civilização.
Esse desafio é proposto pelo Papa Francisco aos jovens do mundo inteiro: o de serem os “poetas” do novo, os protagonistas da nova civilização com sua correspondente economia. Ou comecemos agora ou não teremos o tempo suficiente e poderemos percorrer um caminho sem retorno. Agora tudo se joga. Daí a premência do Papa Francisco ao alertar que vivemos uma emergência planetária e que o sistema-vida e o sistema-Terra estão sob risco. Mas alimenta a esperança naquele “Deus que é o apaixonado amante da vida” (Sabedoria 11,26: LS 77, 89). Ele não permitirá que nossa vida desapareça assim miseravelmente.
Uma das palavras finais da Laudato Si’ reafirma sua esperança: “Para além do sol: caminhemos cantando: que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança” (LS n.244).
Autores
Marina Oliveira é mestranda em Relações Internacionais pela PUC-Minas e possui graduação na mesma área. Moradora de Brumadinho, atua como Coordenadora de Projetos para as comunidades atingidas pelo rompimento da barragem da Vale S. A., pela Arquidiocese de Belo Horizonte. É membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara.
Guilherme Cavalli é jornalista do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), estudou jornalismo, filosofia e mestrado em Cinema Documentário. Coordena a campanha de Desinvestimento em Mineração da rede latino americana Iglesias y Minería (IyM).
Referências
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si. São Paulo: Editora Paulinas, 2015.
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Fratelli Tutti. Coleção: Voz do Papa. São Paulo: Editora Paulinas, 2020
FRANCISCO, Papa. Exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia. São Paulo: Editora Paulinas, 2020
ACOSTA, Alberto; ULRICH, Brand. (2018) Pós-Extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. Editora Elefante
HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
GUDYNAS, Eduardo (2012) “Worte sind nicht neutral. Ein lateinamerikanischer Blinck auf die Diskussion um “Wachstumsrucknahme”, em Sudlink, n. 159, mar.,pp 14-5
CORAGGIO, José Luis (2011). Economía social y solidaria. El trabajo antes que el capital. Quito: Abya Yala
LANDER, Edgardo (2012). “The State in the Current Processes of Change in Latin America: Complementary and Conflicting Transformation Projects in Heterogeneous Societies”, em Jornal fur Entiwicklungspolitik, v.28, n3, pp. 74-94
SVAMPA, Maristella (2012). “Resource Extractivism and Alternatives: Latin America Perspectives on Development”, em Journal fur Entwicklungspolitik, 28, pp. 43-73
JACKSON, Tim (2009). Prosperity Whithout Growth. Economics for a Finite Planet. Londres: Earthscan
MURACA, Barbara (2014). Gut leben. Eine Gesellschaft jenseits des Wachstums. Berlim: Wagenbacch
KALLIS, Giorgios (2011). “In Defense of Degrowth”, em Ecologiccal Economics, v.70, n.5, pp. 873-8