A dor do luto: tristeza que pode virar saudade. Por Guilherme Sant’Anna

Chuang Tzu na pintura “O sonho da borboleta”, de Lu Zhi.

Por Guilherme Sant’Anna, para Desacato. info.

Não me lembro de um período em que tantas pessoas próximas morreram quanto nesses anos de 2020 e 2021. Essa é a experiência de diversas pessoas que conheço e é possível que seja a sua também. A morte de alguém querido já costuma ser uma experiência difícil, mas quando isso acontece com várias pessoas, a dificuldade é multiplicada. Em meu trabalho como psicólogo, percebo como as pessoas esperam fórmulas, técnicas que façam desaparecer a dor do luto. Isso me faz pensar em como o luto se torna mais difícil quando temos determinados tipos de relação com a morte.

Em nossa cultura, não costumamos lidar muito bem com a morte. Mesmo que ela chame a atenção e os noticiários falem diariamente de assassinatos e acidentes, a morte costuma ser tratada como se fosse algo distante, que acontece com os outros e não comigo e com os meus. Então, quando acontece de alguém próximo morrer, nos surpreendemos e sofremos. Como se a morte fosse um erro, algo possível de ser completamente evitado. Todavia, ela é sempre uma possibilidade que estava aí, mas que desconsiderávamos, vivíamos com a possibilidade da morte esquecida. Esquecida, longe da nossa atenção, mas sempre presente em nosso dia a dia. Quantos seres morrem para nos alimentar, para que possamos viver? Quantas mortes acontecem e não damos atenção? Parece que insistimos em achar que a morte não faz parte da vida e, quando ela bate à nossa porta, sofremos desiludidos. A sabedoria de Chuang Tzu, mestre taoísta do séc IV a.C, nos ajuda a lembrar que, assim como as estações do ano, as plantas, os animais e tudo na natureza, a existência humana passa por transformações. A morte é uma delas. A seguir, uma das histórias deixadas pelo mestre chinês:

“Morreu a esposa de Chuang Tzu. Quando Hui Tzu veio oferecer as suas condolências, encontrou-o agachado, batendo numa panela e cantando.

– Sua esposa viveu tanto tempo com você — disse Hui Tzu -, você teve filhos com ela, os criaram e os dois envelheceram juntos. Não lamentar a sua morte já é muito! Mas esse batucar e essa cantoria, será que não é demais?

-Não, — retrucou Chuang Tzu — de forma alguma. Logo que ela morreu, como poderia deixar de me sentir triste? Mas examinei profundamente a questão e vi que, se buscarmos o início dela, ela não tinha vida antes de nascer. E não só era sem vida, mas também sem forma física. E não só sem forma, mas não tinha sequer energia vital. Em meio aquilo que é opaco e obscuro houve uma transformação, e ela obteve energia vital; então a energia vital se alterou, e ela ganhou forma; e a forma mudou, e ela teve vida. Agora que ocorreu nova mudança e ela está morta, é como a sucessão de primavera, verão, outono e inverno. Minha esposa falecida repousa tranquilamente entre o céu e a terra. Se eu me esgoelasse lamentando pela morte dela, isso mostraria minha ignorância sobre o que é o destino. Então parei de lamuriar.”*

Nossas relações com nossos queridos que faleceram não se encerram com a morte do corpo, elas se transformam. O processo de luto, ainda que não costume ser tão rápido como o da história, tem a ver com a reflexão proposta por Chuang Tzu: a transformação da tristeza pela morte de alguém em saudade. Costumo dizer que não há fórmulas que garantam essa transformação, mas caminhos. O choro, o acolhimento entre parentes e amigos, ou um atendimento com um psicoterapeuta podem ajudar. Que a tristeza vire saudade é muito importante, pois, mesmo que não tenhamos mais a presença física, temos sonhos, amores e lembranças que permanecem. São como memórias de verões a lembrar que os invernos, por mais árduos que sejam, também passam.

*O trecho do texto de Chuang Tzu foi extraído do livro Zhuangzi, da editora Hunan People’s Publishing House, e traduzido do inglês por mim.

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Guilherme

Guilherme Sant’Anna é psicólogo (CRP 05/57577), formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Ele realiza atendimentos de psicoterapia online e, se você quiser entrar em contato, pode fazê-lo pelos seguintes meios:

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