A ditadura se foi, a palavra ficou

Por Virgínia Barros.*

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Não há como lutar no movimento estudantil, em 2014, sem lembrar aquele incêndio da madrugada de 1º de abril de 1964 na sede da União Nacional dos Estudantes, na Praia do Flamengo, e principalmente aqueles que sobreviveram e não se abalaram. A ditadura não queria queimar somente a sede da UNE, e, sim, o espírito transformador dos estudantes brasileiros há exatamente 50 anos, o Brasil era empurrado para um dos momentos mais sombrios de sua história.

Com a violência de uma ação militar obscura, construída e apoiada por setores conservadores e poderosos da sociedade civil, a democracia foi ao chão, deixando a vitória parcial da incerteza, da irracionalidade, da exceção. O ano de 1964 tornou-se o marco de um golpe, um ataque, a punhalada que criou uma ferida profunda, com cicatrizes ainda visíveis. Há 50 anos o sol se escondia e a clareza perdia a batalha para a longa noite da nossa ditadura militar, o evento mais fatal da história brasileira durante o século 20.

Sem dúvida, a juventude foi a principal atingida por esse evento histórico, que escolheu os jovens e seus sonhos como a sua maior ameaça, como o inimigo a ser combatido, aniquilado. A grande evidência dessa escolha está na primeira ação organizada desse grupo, logo assim que roubou o poder, naquela fatídica noite entre o dia 31 de março e 1º de abril: o incêndio e fuzilamento da sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), na Praia do Flamengo, 132, no Rio de Janeiro.

Esse regime, que se estendeu por décadas, terminou há quase 30 anos, com a redemocratização em 1985. Ainda assim, “ditadura” é uma das palavras mais recorrentes no debate político dos movimentos sociais e da juventude brasileira. A aura daquele tempo de trevas ainda é referência para explicar as mais variadas situações, para efeitos comparativos diversos, para justificar uma série de lutas da sociedade organizada, para explicitar, didaticamente, o que não queremos repetir. Há 50 anos começava a ditadura militar e, há 29, ela cessava. A ditadura se foi, mas a palavra ficou. Por quê?

Nos últimos anos, cresceu no Brasil o movimento pela apuração lúcida e justa dos crimes e violações de direitos dessa época, principalmente com a criação das comissões da verdade. Esse foi o resultado da pressão popular e de entidades, como a UNE, ao longo de muitos anos, pela abertura dos arquivos do regime e pelo esclarecimento de tudo o que aconteceu sob a égide de um Estado opaco e violento. Apesar da chamada Lei de Anistia, promulgada ainda durante o período militar, e das iniciativas de reparação simbólica do Estado às vidas e aos direitos retirados, falta ainda vencer a escuridão daqueles anos, trazer a verdade à tona, investigar, retirar as máscaras e as trancas, apesar da estridência inútil daqueles que apoiaram e participaram da barbárie.

A necessidade de prosseguir investigando e esclarecendo o que houve na ditadura civil-militar é uma das justificativas para que continuemos, sim, falando bastante dela. Além de representar um marco de reafirmação da democracia e da justiça, o movimento de abertura dos arquivos do regime e das comissões da verdade traz em si uma espécie de vacina, um dispositivo de segurança para que aquilo não mais aconteça. Sob essa perspectiva, a presença da imagem da ditadura entre nós, 50 anos depois de sua chegada, é como um remédio amargo, porém necessário.

Não há como negar que tal período foi de grande resistência, bravura e sublimação dos jovens e estudantes brasileiros no seu processo de intervenção e construção do Brasil. Ainda que a UNE e a juventude estejam sempre entre os personagens principais da história brasileira, fato observado desde a década de 1930 e a 2ª Guerra Mundial – quando representaram o contraponto aos ideais e a influência nazi-fascista no país –, nem sempre houve uma geração tão marcante e exemplar como aquela que lutou entre 1964 e 1985. Apesar dos ataques, incêndios, torturas, censuras, mortes e outras violências, os estudantes souberam resistir e não desistir dos seus sonhos, mantendo acesa – ainda que sob duras penas – a chama de sua rebeldia e otimismo por dias melhores. Foi esse o espírito que enfraqueceu e derrubou o regime.

Ainda falamos da ditadura hoje, em 2014, porque em nossas lutas há grande inspiração por aqueles e aquelas que estavam lá, a partir de 1964. Cinquenta anos depois, nossa realidade objetiva é outra, mais democrática, com a garantia da livre organização, da expressão e com cada vez mais novos espaços de participação e mobilização. Tenha-se como exemplo a volumosa e importante militância jovem que tem crescido na internet e nas redes sociais, somando-se aos movimentos das ruas. Apesar de não enfrentarmos uma ditadura estabelecida – como aquela –, tentamos pegar emprestado daqueles e daquelas jovens sua retidão, sua convicção inabalável e sua maturidade para se organizarem e fazerem a diferença.

Não há como lutar no movimento estudantil, em 2014, sem lembrar aquele incêndio na Praia do Flamengo, e principalmente aqueles que sobreviveram e não se abalaram. A ditadura não queria queimar somente a sede da UNE, e, sim, o espírito transformador dos estudantes brasileiros. Ali naquele espaço ensaiava-se o projeto de um novo país – que ainda queremos meio século depois – com igualdade social, integração, fim dos preconceitos, liberdade e amor para transformação da sociedade.

O ataque era direcionado não somente às lideranças políticas da UNE, mas ao conjunto de ideais formado ali por iniciativas como o Centro Popular de Cultura (CPC), que reunia artistas, intelectuais e outros jovens personagens progressistas do Rio de Janeiro e do Brasil, como Ferreira Gullar, Cacá Diegues, Oduvaldo Vianna Filho, Carlos Lyra, Silvio Tendler, Eduardo Coutinho e tantos outros. Destruir a sede da UNE era como destruir a personalidade, a criatividade, o espírito daqueles jovens – mas o fogo e as balas não foram suficientes.

Nos anos seguintes, a UNE foi posta na ilegalidade pela ditadura, ampliando de forma institucional uma violência física já em curso. A perseguição estendia-se a todos os grupos organizados de jovens, a repressão aumentava. Ainda assim, no ano de 1966, o movimento estudantil estava mobilizado e preparado, a ponto de realizar um ousado Congresso da UNE na cidade de Belo Horizonte, de forma clandestina. O encontro aconteceu nos porões de uma igreja, com a eleição de José Luis Guedes para a presidência da entidade.

A partir dali, a luta cresceu e os estudantes esboçaram sua primeira grande resposta ao regime. Movimentos se organizavam por todo o país, manifestações eram frequentes e a juventude estava nas ruas, principalmente contra o acordo MEC-USAID, que tinha como objetivo implementar uma reforma conservadora no ensino brasileiro, atendendo aos interesses dos EUA. Ainda hoje traços dessa reforma permanecem na cultura pedagógica brasileira. Foi exatamente nesse cenário, no ano de 1968, em um protesto estudantil na cidade do Rio de Janeiro, que o jovem Édson Luís perdeu sua vida e tornou-se símbolo para a vida de muitos outros. Édson foi baleado por um soldado durante as manifestações contra o aumento no preço da refeição de um restaurante estudantil. Seu corpo foi levado pelas ruas do Rio por colegas que entoavam: “Mataram um estudante, podia ser seu filho”.

A enorme comoção em torno da morte de Édson Luís levou multidões a protestarem. A maior e mais conhecida resposta ao assassinato do jovem foi a Passeata dos Cem Mil, que reuniu esse surpreendente número de pessoas na capital fluminense, incluindo artistas, escritores, jornalistas e formadores de opinião diversos. Com inteligência e ousadia, os estudantes continuaram se organizando durante esse período.

Dessa forma, foi realizado, de maneira ainda mais clandestina, outro Congresso da UNE, na cidade de Ibiúna (SP), no mesmo ano de 1968. Com extrema articulação e capacidade, o movimento estudantil buscava formas de manter-se vivo, já sabendo que era um dos poucos grupos da sociedade capaz de resistir à ditadura. Apesar de todo o esforço, o congresso terminou com a invasão do Exército e todos os estudantes presos.

Na sequência desses episódios, a ditadura apertaria mais ainda suas mãos de ferro, com a promulgação do Ato Institucional nº 5, no ano de 1968, decretando abertamente o fim das liberdades individuais e dando início ao período de maior terror do regime – e talvez de todo o século 20 no Brasil. Foi o momento de maior açoite e truculência em direção à juventude brasileira, com sequências de torturas, assassinatos e outros crimes do Estado, por baixo dos tétricos e inescrupulosos panos de propaganda que pintavam um país em progresso. O sangue de jovens como Bergson Gurjão, Helenira Resende, Alexandre Vanucchi Leme, Fernando Santa Cruz e tantos outros manchou a outra face desse tecido.

Entre esses, Honestino Guimarães, eleito vice-presidente da UNE durante o Congresso de Ibiúna, assumindo depois a presidência interina da entidade a partir da prisão de Jean Marc van der Weid. Em setembro de 1971 foi reconduzido à presidência da UNE no 31º Congresso, realizado clandestinamente na baixada fluminense. No dia 10 de outubro de 1973, Honestino foi sequestrado no Rio de Janeiro por agentes do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), tornando-se um dos desaparecidos políticos do país. Sua sensibilidade política é até hoje maior inspiração para o movimento estudantil.

Ainda assim, a certeza e a esperança dos bons os mantiveram no caminho. Mesmo perseguidos pela máquina bestial e covarde em seu encalço, a juventude resistiu durante aquela década de 1970, a ponto de conseguir a reconstrução da UNE em 1979, no histórico congresso da entidade em Salvador. Em clima tenso e incerto, cercados pelas forças de repressão, enfrentando dificuldades de toda sorte, milhares de estudantes reconduziram uma parte importante da história para os trilhos. Eles ainda veriam, com grande tristeza, a ditadura já enfraquecida derrubar o prédio da sede da UNE na Praia do Flamengo, no início dos anos 1980.

Porém, motivados pela própria história, inspirados em si mesmos e naqueles que foram derrubados no percurso, aquela geração do final da ditadura foi capaz de marcar presença fundamental no processo das Diretas Já, no ano de 1984. O espírito dessa juventude manteve-se forte o suficiente para, quase dez anos depois, outra geração tomar as ruas e ocupar a linha de frente nos rumos da nação, durante a campanha do Fora Collor, em 1992. A partir de então, uma série de lutas continuou a brotar e a se multiplicar, como em uma reação em cadeia: a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, o combate às privatizações, a reforma universitária.

Com 29 anos de reabertura política e 25 anos de governos nacionais democraticamente eleitos, o legado daqueles que enfrentaram a ditadura militar continua sendo um norte. Não é mais necessário dispor da própria vida ou enfrentar violentamente nenhum regime, mas é preciso – como foi para aquela geração – ter certeza e vontade inabaláveis para transformar o país, deixando também a nossa contribuição para os próximos. Além disso, é também válido relembrar a ditadura e os jovens que a derrubaram para buscar sabedoria no combate às suas tristes heranças.

Se é verdade que as torturas e prisões políticas diminuíram verticalmente, é também certo que torturadores, em quase todas as prisões ou delegacias do país, cometem tal crime contra a população pobre, vulnerável e, na maior parte das vezes, jovem e negra.

Se há como dizer que a liberdade de imprensa e de expressão foi revitalizada com o fim do regime, não há como escapar do fato de que, assim como na ditadura, pouquíssimos grupos econômicos e famílias detêm o monopólio das comunicações, ainda que boa parte dos veículos atue a partir de uma concessão pública, mas ainda não-democratizada.

Se é garantido o direito de livre manifestação, não há como conceber e aceitar abusos de uma polícia desnecessariamente militarizada, que na maioria das vezes aposta na truculência contra manifestantes, prendendo inclusive diretores da UNE, como há pouco aconteceu de forma deliberada, injustificada e inaceitável. Vale lembrar que os procedimentos brutais contra as manifestações são ainda muito menores do que aqueles praticados pela polícia militar em vilas, favelas e outras comunidades pobres.

Se a educação libertou-se da tutela controladora de um regime ditatorial, que impunha sua ideologia a qualquer custo – o que incluiu a presença de tanques de guerra em universidades –, é também verdade que a universidade brasileira continua distante de uma organização democrática, com direitos equilibrados e participação igualitária de toda a comunidade acadêmica. A ditadura acabou, mas algumas instituições do país, como a Universidade de São Paulo (USP), mantêm as mesmas regras criadas pelo regime para a eleição de seus reitores e diretores.

Cinquenta anos depois do golpe, a lembrança da ditadura militar dói, mas é necessária para seguirmos resistindo. O país que esperamos ainda está bem além do que temos hoje, apesar de alguns avanços e da nossa vontade transformadora. É inaceitável que nem mesmo as garantias fundamentais e constitucionais da sociedade, principalmente as da educação pública e gratuita de qualidade, sejam possíveis. A luta de hoje segue em inúmeras frentes e encontra muito mais possibilidades e alternativas para atingir os seus objetivos.

No ano em que o golpe completa meio século, nos lembraremos dele, mas também nos lembraremos de muito mais coisas. O ano de 2014 será aquele em que a UNE lutará pela aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), sua pauta mais urgente no Congresso Nacional; pela reforma política no Brasil, com transparência do sistema e o fim do financiamento de empresas a campanhas; pela melhoria nos transportes e o passe livre nas grandes cidades do país; pela criação de novas e mais abrangentes políticas públicas para a juventude, em especial a mais pobre; por mais vagas nas universidades públicas; pela urgente regulamentação do ensino privado e o fim da mercantilização do ensino.

Estamos em 2014, 50 anos depois. É preciso contar esta história para as novas gerações, mas seguir construindo algo em seu lugar. Reforçar a luta contra a repressão e em favor das reformas democráticas irá acelerar a transição ainda inconclusa rumo a uma sociedade verdadeiramente democrática. Varrer os resquícios de autoritarismo que restam em nosso país é tarefa da juventude que segue incansável nas ruas lutando pelo país de nossos sonhos. Estamos, agora, mais próximos deste novo Brasil.

* No sítio Vermelho – Virgínia Barros é estudante de Letras da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE)

Fonte: Blog do Miro

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