A ditadura e as anistias indesejáveis. Por Raul Fitipaldi

Foto: João Pina

Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.

Os que andamos pelos 60 e 70 anos de caminhada conhecemos de perto o horror das ditaduras. Presenciei, primeiro em Montevidéu e depois em Buenos Aires, aquele espanto de perder de vista a imagem, o corpo único e irrepetível de muitos que desapareceram das ruas.

A paisagem mudava um dia após o outro; o que faltava nas esquinas, nas praças, nos bares, nos teatros, nos estádios de futebol, era um rosto conhecido, não poucas vezes amado ou pronto para amar um dia. Amor de amigo, de companheiro, esse amor respeitoso. Amor pontual e eterno como as estações que foram mudando as cores e as árvores. A ditadura foi esvaziando as folhas onde se escrevia um futuro solidário, apaixonado pela arte, pela literatura, pela evolução coletiva, pela paz no bairro suburbano, entre rocks e tangos assobiados por esse homem, ou por essa mulher jovem, que abrigava com seu passo e com sua voz os sonhos de um estudante abastecido de planos para compartilhar com os demais.

Certo dia, no decorrer da jornada, percebi que não veria mais Rosário que estudava comigo e tinha um olhinho azul caído como por timidez dentro da pálpebra. Depois, quase chegando a noite, Mercedes, irmã mais velha caiu com o corpo crivado de balas, muitas, demais. Católicas praticantes assassinadas pela metralha que disparava com a permissão da Igreja Católica, Apostólica e Romana.

Trigve precisou fugir com a família, Juan nunca mais apareceu. E assim foram-se sem merecer, por se atrever a lutar pela justiça, um por um. Quando cheguei a Buenos Aires, apenas um ano depois do reinício da democracia, desci do ônibus de turismo na Avenida Cabildo, a 5 minutos do estádio do River Plate, e enquanto esperava que me recebessem fui lendo os muros do bairro de classe média. “Vivos os queremos”, “onde estão?”, “julgamento e castigo aos assassinos torturadores”. E em outro certo dia o julgamento começou. Umas velhas chamadas de loucas pela mídia golpista faziam círculos na Praça de Maio e nos ensinavam a frase mais emblemática para a justiça dos nossos povos: “nem esquecimento nem perdão”.

Porque não é justo esquecer o sequestro, a tortura, o assassinato, a desaparição. Não é justo perdoar esse túmulo aberto e vazio que levamos no peito várias gerações. Por isso não se pode anistiar. Não se deve passar uma borracha nos crimes acontecidos como implora o fascista Bolsonaro. Porque se esquecermos e perdoarmos, o farão de novo e outros tantos e tantas serão cinzas esparsas nos rios, ossos sem nome num fosso, amores perdidos, vidas destroçadas, ideias esmagadas.

Não podemos esquecer nem perdoar, nem aqueles do Plano Condor, nem estes travestidos de democratas. Que sejam julgados e punidos para lavar a história e para organizar o futuro. Isso é tarefa do presente.

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