Por Douglas Kovaleski, para Desacato. info.
No texto dessa semana, a alienação é abordada em aproximação com uma temática muito frequente no campo da saúde, a humanização. O tema da humanização nos serviços de saúde é abordado frequentemente no campo da saúde coletiva. Isso se dá a partir da década de 1990 de forma mais intensa. Entretanto a abordagem teórica utilizada para o estudo da humanização é cambaleante e, comumente beira a compaixão ou uma valoração moral que invariavelmente inicia por condenar o médico que em sua rápida consulta prescreve algum medicamento sem sequer olhar para o doente.
Numa rápida revisão da literatura sobre o tema, pode-se observar em estudo realizado por Suely Deslandes em 2006, identifica que o marco inicial mais significativo dos estudos críticos relacionados à desumanização da relação médico-paciente se dá com a sociologia médica americana na década de 1970.
A crítica à “impessoalização” e “desumanização” da relação médico-paciente, advindos das décadas de 1970 e 1980, superam a esfera interpessoal e irrompem em um movimento teórico mais amplo, internamente ao campo da saúde coletiva brasileira, que passa a tematizar questões como a humanização/desumanização das práticas e serviços de saúde, tendo como referenciais, por exemplo, a integralidade da atenção e o cuidado em saúde. Abordando esse processo de forma mais complexa e ampliada, essa tendência tem se caracterizado por analisar uma série de aspectos inter-relacionados que conformam os processos ou fenômenos “desumanizadores” no interior das práticas e serviços de saúde.
A alienação é um processo, uma relação contraditória estabelecida entre capacidades humanas gerais e suas repercussões sobre as personalidades dos diferentes indivíduos concretos. Isso sucede porque o agir humano, o que se denomina objetivação, inclui a exteriorização. De fato, esses dois movimentos se apresentam como um complexo, uma unidade dialética, dado seu caráter unitário, indissociável e em relação permanente. Diferente de outros seres vivos, para o homem, por meio da mediação do trabalho como atividade vital, o devir torna-se produto da ação guiada pela consciência. No entanto, embora a imagem do objeto se fixe na consciência, o indivíduo também possuirá alguma autonomia.
Dentre as formas de objetivação-exteriorização do homem no mundo, uma se destaca: o trabalho. O trabalho compreendido como o elemento fundador do gênero humano, o elemento por meio do qual os homens imprimem ao mundo as marcas de seu devir. O trabalho é a forma por meio da qual o homem natural se separa da natureza e, ao se diferenciar no seio desta, estabelece com ela um intercâmbio que humaniza e torna social o mundo outrora natural. O homem humaniza a natureza e a si, como parte da natureza. Esse processo possibilita a crescente socialização do mundo, ou seja, o recuo do natural, a complexificação da sociabilidade: a humanização.
Há que ser considerado que cada sujeito particular, como expressão do ser social, constitui-se a partir das relações que estabelece com a totalidade social ao seu redor e, a depender das relações sociais sob as quais se objetiva-exterioriza, suas capacidades se desenvolverão mais amplas ou mais restritas em relação ao grau de desenvolvimento do gênero humano. Por isso, não há uma padronização nessas relações.
A exteriorização ocorre de variadas formas, por exemplo, a reificação e estranhamento com relação ao trabalho, é uma forma onde o indivíduo não mais se percebe nas suas ações. A alienação se faz, portanto, quando os homens, ao se objetivarem, estabelecem com seus produtos uma relação de reificação e estranhamento, saindo de seu controle e voltando-se contra seus produtores, impondo-lhes todo um modo de vida sem sequer considerar os sujeitos. Chegando ao que Luckács denominou uma sociedade antagônica, ou seja, uma sociedade cujos elementos se voltam contra seus produtores.
Em síntese, desenvolvido a partir dessas relações sociais hegemônicas em nosso tempo histórico – as relações capitalistas –, esse processo de conformação da alienação tende a se expressar de modo mais subjetivo (no plano dos sujeitos) em três aspectos: a) o homem vê as objetivações humanas como estranhas, alheias, autônomas, não se reconhecendo nelas; b) o homem vê sua atividade (o trabalho) como algo não somente externo, mas estranho a ele (estranhamento); ao contrário de proporcionar satisfação, produz sofrimento; c) o trabalho que deveria ser o elo do indivíduo com o gênero humano, torna-se um simples meio de garantir a sua própria sobrevivência particular; ao invés de se reconhecer nos outros homens, o homem os estranha.
Adensando esse debate, Agnes Heller desenvolveu uma teoria do cotidiano na qual demonstra como as formas de consciência atuam em torno de valores como, espontaneidade, pragmatismo e ultrageneralização, o que viabiliza as possibilidades de desenvolvimento de relações alienadas. O espontaneísmo e acriticismo presentes no cotidiano, cuja forma de pensamento predominante é o senso comum, conforma também um solo fértil para a reprodução das ideologias. Possibilitando que a ideologia exerça a função de “cimento social” estabilizador dos processos alienantes ao ousar explicar os conflitos existentes na práxis social com base em um discurso universalizante, homogeneizante, ocultador, mesmo, das determinações mais profundas dessas contradições.
Para ser mais concreto: a crueldade, por exemplo, é humana. Os outros animais não conhecem a crueldade. A crueldade e cada forma de inumanidade, que estão presentes de modo socialmente objetivo ou mesmo como sentimentos subjetivos, nascem exclusivamente de condições sociais concretas. O que não torna essas ações melhores ou menos criticáveis no plano social. Esses fenômenos, que necessariamente estão na gênese do gênero humano em si, são obstáculos que devem ser superados no desenvolvimento do ser para si (para além de si). A crueldade, portanto, não é natural, ao contrário, é consequência de posições teleológicas, e precisa ser radicalmente superada.
O “desumanizar-se” deverá ser melhor analisado, ou pode-se incorrer em um “humanismo” abstrato e universal, inerente à condição humana, e que estaria sendo atacado por indivíduos rudes ou situações brutalizantes. A solução para esse problema passaria então por rodas de abraços e extrema cordialidade entre as pessoas. Essa provocação corresponde ao entendimento prático da imensa maioria dos profissionais de saúde que contam com manuais e extensa literatura científica sobre o tema da humanização em saúde. Porém não se pode deixar de abordar elementos conformadores do caráter complexo e contraditório desses diferentes aspectos da totalidade social.
A relação profissional de saúde com pacientes deve abordar as raízes mais profundas dos processos compreendidos contemporaneamente como desumanizantes e envolver a análise da totalidade política econômica e social em questão, bem como as possibilidades de superação dessa situação. Ao profissional de saúde cabe proporcionar vidas mais plenas de sentido para os indivíduos e coletividades, sendo que esse deve ser, o objetivo último dos movimentos em prol da humanização das práticas de saúde. O profissional de saúde, em qualquer esfera de atuação em que esteja inserido, precisa preocupar-se com a consciência política dos usuários sobre o mundo e atuar evidenciando contradições, ajudando as pessoas – pois a solidariedade é o pilar central para a superação dessa sociedade e da atuação do profissional de saúde – estudando e atuando na formação política da classe trabalhadora.
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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.