Por Sylvia Debossan Moretzsohn.*
O jornalismo é uma profissão identificada à defesa das mais nobres causas: as da verdade, justiça e liberdade. Liberdade, essa palavra – como diz o célebre poema – que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.
Por isso jornalistas costumam ser vistos positivamente, como se incorporassem esses ideais e atuassem de acordo com eles.
Não é bem assim. Jornalistas são iguais a toda a gente. Há os que prezam esses valores, há mesmo os que se sacrificam por eles. Há os que tentam se equilibrar no fio da navalha. Há os que sucumbem e se submetem. E há os que fazem pior, jogando deliberadamente às favas os escrúpulos de consciência.
Esses, dependendo do cargo que ocupam, podem produzir reportagens distorcidas, esconder-se nos editoriais – é “o jornal” que fala, como se fossem escritos por uma mão invisível –, ou assumir abertamente a corrosão do seu caráter, em notas assinadas ou artigos de opinião.
No dia 2/9, O Globo noticiou em destaque em seu site uma nota do blog de Lauro Jardim que informava o endereço onde Dilma Rousseff vai morar no Rio. Não mencionava apenas o bairro ou a rua: dava número e foto do prédio. Serviço completo para os trogloditas que não pouparam ofensas à ex-presidente nas manifestações pelo impeachment. Note-se: é o endereço da mãe de Dilma, uma senhora idosa, na faixa dos 90 anos. “Faltam-me palavrões”, indignou-se a professora Giovanna Dealtry, da UERJ, em seu Facebook. A revolta nas redes sociais levou muita gente a pedir e compartilhar o endereço do jornalista, também com foto e tudo, como forma de retaliação.
Assim, um profissional que deveria respeitar as melhores práticas vai contribuindo para cultivar aquilo que o famoso deputado detonador do “Mensalão” chamou de “instintos mais primitivos”.
O ódio à esquerda
Foram esses mesmos instintos que levaram tantas pessoas a exultar, nas redes e nos espaços de comentários dos sites jornalísticos, com a foto da jovem de rosto ensanguentado, que perdeu a visão do olho esquerdo na manifestação do dia 31/8, em São Paulo. Em 2/9, o colunista Reinaldo Azevedo escreveu, na Veja: “Se Débora estivesse cega dos dois olhos, seria ainda mais útil às esquerdas”. Era um primor de cinismo: ele falava alegadamente em defesa da estudante e de seus colegas e professores, para que se libertassem “das minorias que escravizam”. E responsabilizava o discurso de despedida de Dilma pelo ocorrido.
O mesmo discurso foi utilizado pelo secretário de redação da Folha de S.Paulo, Vinícius Mota, em artigo com chamada de primeira página na edição de 5/9, dia seguinte à grande manifestação contra Temer na Av. Paulista. Foi um ato pacífico, mas a ação da polícia – gratuita, segundo inúmeros relatos que circularam nas redes sociais – produziu ao final as cenas exploradas pelo noticiário: a correria pelas ruas, o espetáculo das bombas de gás que penetraram numa estação do metrô e provocaram pânico e ferimentos em várias pessoas, inclusive crianças. Num texto genérico, sem relação com a manifestação e pleno de surrados clichês anticomunistas, o jornalista fez carga contra a suposta índole violenta da esquerda. Atacou a “elite vermelha” e seu “comitê central” tentacular e manipulador das “tropas de assalto” nas ruas – simbolizadas, entretanto, na figura isolada de um rapaz que atirava uma cadeira contra a fachada envidraçada de um banco – e concluiu: “Dilma Rousseff pronuncia a fatwa e vai morar em Ipanema”.
O estímulo à violência policial já fora dado em 2/9, no editorial em que aFolha protestava contra a ação de black blocs nas manifestações dos dias anteriores: “O que pretendem tais pescadores de águas turvas? Quem financia e treina essas patrulhas fascistoides? Está mais do que na hora de as autoridades agirem de modo sistemático a fim de desbaratá-las e submeter os responsáveis ao rigor da lei”.
Parecia uma repetição do editorial de três anos atrás, que exortava o governo a “Retomar a Paulista” (13/6/2013), nas famosas manifestações daquele ano: “No que toca ao vandalismo, só há um meio de combatê-lo: a força da lei. Cumpre investigar, identificar e processar os responsáveis. Como em toda forma de criminalidade, aqui também a impunidade é o maior incentivo à reincidência”.
O “combate à impunidade” funciona sempre como uma espécie de senha para a repressão exacerbada. Como se recorda, naquela mesma noite a polícia baixou o sarrafo indiscriminadamente, atingindo inclusive jornalistas, alguns feridos gravemente por balas de borracha no rosto. Um deles, o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, ficou cego de um olho. Na Justiça, teve negado seu pedido de indenização: foi responsabilizado por não ter tido o cuidado de se proteger.
Defender a dignidade
Desta vez, a Folha foi um pouco além: o editorial “Fascistas à solta” comparou os protestos anti-Temer aos tempos da República de Weimar, que, débil na repressão aos “fanáticos da violência”, abriu espaço ao nazismo.
“Dona Folha, tá difícil te defender”, contestou o escritor Gregório Duvivier, acusando o jornal de promover o clima de medo que contribui para os golpes de Estado. Concluiu assim:
“Um jornal é do tamanho dos inimigos dele. Quando a senhora pede maior repressão a adolescentes desarmados, se alinha com o mais forte e faz vista grossa pra truculência. Jornalismo, pra mim, era o contrário”.
Estava mesmo difícil de defender o jornal: o artigo saiu no mesmo dia em que o secretário de redação produziu seu elogio da polícia contra as “tropas” vermelhas. (Vinícius Mota, por sinal, conseguiu enxergar no projeto da “Escola sem Partido” valores “de extração iluminista”).
Nas redes sociais, a intervenção de Duvivier provocou reações contraditórias: muitos compartilharam seu texto com entusiasmo, enquanto outros deploravam a colaboração com uma empresa que poderia, assim, acenar com um discurso pluralista, ainda que falso.
Nos tempos da ditadura, compreendia-se o trabalho na grande imprensa como forma de resistência: aproveitar as famosas “brechas”, driblar a vigilância e a censura para levar ao público o que o governo pretendia deixar na sombra. Se, quase trinta anos depois da nova Constituição, ainda falamos em brechas, é sinal de que as coisas não mudaram tanto assim.
Testar os limites de um jornal pode continuar a ser válido, pois sempre haverá alguém que leia e pare para pensar, por mais que esse jornal venha perdendo leitores progressistas conquistados desde a época de seu apoio à campanha das Diretas: a guinada à direita, indicada pelo editorial da “ditabranda”, traz de volta à memória os tempos em que a Folha cedia suas caminhonetes para a Operação Bandeirantes, na década de 1970. Mas, diante das possibilidades abertas com a internet, talvez valesse mais a pena concentrar esforços em alternativas a uma imprensa que cada vez mais reduz os espaços de liberdade.
O que espanta, em todo caso, é a falta de reação coletiva dos jornalistas a esse estado de coisas.
A propósito da cobertura do ato na Paulista, o comentário de Xico Sá, que em 2014 deixou a Folha por não poder manifestar seu apoio à candidatura de Dilma em sua coluna, é muito significativo. Em seu Facebook, ele escreveu:
“Não ‘houve confusão e a polícia reagiu’, caros colegas jornalistas, a gente não pode narrar a vida assim nem que seja por um milhão de reais. Nossa profissão é digna, chama-se jornalismo e não pode ser resumida em uma mentira de três linhas pra enganar todo um país. Vamos contar a história como ela é e dizer com todas as letras o que está acontecendo”.
A profissão, sem dúvida, exige dignidade. Quantos colegas jornalistas, hoje, estão à altura dela?
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* Professora de jornalismo da UFF e pesquisadora do objETHOS.
Fonte: Objethos.