A deformação das cores e dos dias. Por Marco Vasques.

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

A atriz Clarice Steil Siewert, que também atua como psicóloga, tem grave antipatia pelas palavras “cliente” e “paciente”. Na Antiguidade Romana, cliente era aquele que estava sempre sob a tutela de um cidadão rico e poderoso, ou seja, era alguém coordenado por ações formuladas por outra pessoa. Na modernidade, a palavra ganha novos contornos com a escalada do capitalismo. Ainda que a palavra continue associada a consultórios jurídicos e a consultórios de outras naturezas, de um modo geral, todos somos tratados como clientes a todo momento. Existe uma espécie de coisificação de nossos espíritos nesse adjetivo, afinal, como diz o ditado, o cliente sempre tem razão, mesmo que esteja destituído dela. Esse adágio é revelador porque em seu interior o que está dito é que o capital, o dinheiro, o poder de compra e de consumo conferem ao indivíduo o estatuto de estar sempre certo, por isso, sempre será bajulado, adorado.

Já o adjetivo paciente, associado pelos filósofos gregos da Antiguidade a uma virtude, hoje sugere passividade, uma espécie de conformidade que precisa ser atacada, instigada ou motivada. Os consultórios médicos e hospitais também incorporaram uma espécie de frieza mórbida ao agasalhar todos sob termo único. O incômodo de Clarice se localiza, segundo ela, exatamente nessa padronização dos termos, nessa roda insana que pasteuriza e trata de forma igual mulheres e homens que possuem interiores, experiências, sonhos, desesperos, medos, vazios, fissuras e fraturas distintas. Ela diz que quando está diante de uma pessoa, tem desejo de entender onde se localiza a poesia existente naquele ser, ou seja, o que importa num vivente é encontrar o seu estado poético.

Hoje, no Brasil, impera o embrutecimento, a perseguição à arte e aos artistas, a negação constante de pesquisas científicas, o desmantelamento da educação e da saúde públicas, o recrudescimento da misoginia, a expansão nua e crua do racismo, a homofobia desenfreada, o elogio da violência física e verbal, a perseguição à comunidade indígena, o desmatamento constante do cerrado, a destruição permanente da Floresta Amazônica, além de um processo de privatização das instituições mais longevas e duradouras do país, enfim, vivemos um momento em que razão e sensibilidade se desconectaram tanto do cotidiano, mas tanto, que podemos nos perguntar em que momento e por qual motivo grande parte da população se emaranhou nesse torpor brutal.

Nos enrijecemos tanto, que chegamos ao ponto em que parte da população adora um líder, que, durante as eleições, colocou uma criança em seu colo e fez com que ela fizesse o gesto de uma arma. A imagem da arma foi uma constante nas corridas eleitorais: quem não lembra da família empunhado metralhadora dizendo que aquilo era o que seus opositores mereciam? Quem não lembra das camisas pretas, com o rosto funesto desse estrume que nos governa, dependurados em varais por toda a cidade. É preciso lembrar que os Camisas-Negras surgiram com Mussolini, passaram pelos blackshirts da União Britânica e pelo partido nazista na Alemanha, vindo parar no Brasil em plena segunda década do século XXI.

Mas o abandono da poesia, de um sentido poético da vida não está apenas carcomendo pessoas individualmente, pois conseguimos deturpar por completo o sentido da religiosidade ao cairmos nas mãos de verdadeiras quadrilhas neopentecostais. As escrituras sagradas, que são constituídas de grande potência poética, hoje servem para justificar os mais atrozes absurdos, como a constante perseguição à comunidade LGBTQI+. Em Brasília temos bancada da Bíblia, bancada do gado, bancada da bala avançando na destruição de direitos e de proteções alcançadas a duras lutas.

No imaginário cotidiano, ainda temos banalização do uso da bandeira do Brasil, estampada nas janelas de apartamentos de uma elite brega e sem nenhum compromisso com o coletivo. A primeira versão da atual bandeira, feita por Jean-Batiste Debret, trazia as cores verde, amarela, azul e branca por referências ao trono português; contudo, com a instauração da República, se construiu a atual bandeira, feita por dois irmãos positivistas, e passamos a aprender na escola que o branco significa paz, que o azul céus e rios, que o verde nossas matas e que o amarelo nossas riquezas. Nossas riquezas estão sendo vendidas por ninharias, nossas matas, rios e céu, intoxicados com fogo, agrotóxicos e produtos de mineração e, claro, nossas riquezas, saqueadas e repousadas nas mãos de banqueiros e empresários. Hoje, a bandeira do Brasil é lúgubre como os olhos mortos de meu avó.

Não bastasse tudo isso, estamos no ápice de uma pandemia que ceifa milhares de vidas. No exato momento em que escrevo este texto, perdemos uma pessoa por minuto por COVID-19. A maioria dessas mortes poderia ser evitada e muitos países nos mostram o caminho. A Austrália é um dos que optou por proteger vidas. Tem uma população de 25 milhões de habitantes e menos de mil mortes em um ano de pandemia. Enquanto aqui, hoje, chegamos à exorbitância de 1.500 morte por dia. E o que vemos? Um presidente sem máscara fazendo aglomeração. E, de quebra, ameaçando retalhar governadores que decidirem pela vida. Estamos diante da face mais áspera e lúgubre de um líder incapaz de qualquer ponderação fincada no equilíbrio, na sensibilidade e na razão. Ele é a verdadeira encarnação da banalidade do mal e da perversão. E para nossa tristeza, é cultuado por um número significativo da população.

No livro Fascismo: definição e história, Luce Fabbri (1908-2000) diz o seguinte: “Mas não sabemos neste momento de qual lugar pode nos ameaçar o perigo fascista que transformaria essas manifestações isoladas em avalanches de ‘terror e pânico à liberdade’, precipitando-nos ao abismo de mais uma guerra. As únicas defesas reais contra esse múltiplo e complexo perigo estão em cada um, na racionalidade ativa de cada ser humano em relação aos outros, que é ao mesmo tempo um afirmar-se como indivíduo e um entregar-se ao coletivo.”

Luce escreveu isso em 1963, num contexto de enraizamento das ditaduras militares na América Latina. Luce e Clarice, não por acaso duas mulheres, parecem apontar para um sentido: é preciso buscar um reencontro poético com nossa “racionalidade ativa” para reafirmar nosso compromisso com a vida. Assim, poderemos entregar ao coletivo um mundo permeado pela matéria do sonho. Mas para isso é preciso combater o clientelismo funcional, a paciência ruminada da manada, o estado de desrazão em que estamos metidos e instituir uma poética que se equilibre entre a razão e a sensibilidade.

Foto de Clarice Steil Siewert: Fabrício Porto.

Foto de Luce Fabbri: Divulgação

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.