Por Helena Velloso Rodrigues.
Em um fim de semana qualquer, minha neta me chamou para ver o novo filme da moda “Ainda estou aqui”. Fui sem saber sobre o que se tratava e era sobre a ditadura militar. Não tinha passado meia hora do início e eu já estava em prantos lembrando das minhas vivências e desventuras políticas.
Sempre sonhei em entrar na universidade, eu queria ser médica, porém, meu pai era um homem machista, “cheio” de costumes e militar e não permitiu que eu fizesse isso, ele queria que eu me tornasse professora, como praticamente toda mulher dos anos 60 fazia. Bom, azar o dele, cursei sim o magistério, mas logo que saí, me matriculei em uma faculdade de medicina fora da cidade. Foi lá que consegui ser, finalmente, livre, onde construí um forte posicionamento político e revivi minha antiga paixão pela história e pela sociologia.
Nessa empolgação de caloura, me inscrevi em muitos clubes e me envolvi, rapidamente, em um partido político. Vivi anos de ouro, até o dia no qual descobrimos que o Jango havia caído e os militares haviam assumido o poder. Com o tempo, tudo foi ficando mais grave e cada vez mais restrições estavam sendo impostas, nós estudantes não podíamos ficar inertes diante dos absurdos e violações que ocorriam com quem lutava por liberdade e democracia. Por isso, muitas noites nós saíamos para pixar muros, protestar nos quartéis e “vandalizar” prédios políticos. No entanto, com a instauração do AI-5, tudo mudou, tínhamos que fazer tudo com mais cautela e ouvíamos boatos de que na capital havia gente sendo morta e torturada.
Nada nos parava. Porém, há um dia que nunca esquecerei – e nunca vou deixar um neto ou filho meu esquecer – aquele no qual fomos pegos. Estávamos numa passeata, pedíamos por liberdade e pela volta da democracia, quando meus olhos começaram a arder e a lacrimejar, escutei gritos, acho que eram os meus, e fui puxada diante da multidão. Me levaram para um galpão escuro, eu estava vendada, mas lembro de ter sentido um cheiro podre e mórbido. Fui interrogada cruelmente, me acusaram de ser comunista, neguei, eu era socialista, mas omiti a informação, me espancaram, me desumanizam e não satisfeitos em me agredir fisicamente, ainda passaram as mãos sujas no meu corpo, não lembro de ter sentido me pior em toda minha vida, foi uma noite de terror, e tudo isso, por um ato político no qual eu tentava defender meu país das mãos daqueles vermes covardes que acabaram com a democracia.
A partir daí não me recordo de muito, só da dor física e psicológica com a qual me torturaram. O que sei é que pela manhã um dos companheiros de base do meu pai me reconheceu e arranjou um jeito de me tirar de lá – nem quis perguntar o que ele fazia lá – mas ele me levou direto para casa do papai, onde fui quase deserdada.
Depois disso, fui a decepção do papai até o dia que ele morreu, mas no fundo, talvez ele tivesse orgulho de ter uma filha tão obstinada em lutar pelo país, pela liberdade e pela democracia, eu tenho orgulho de mim mesma. Me entristece saber que violências como essas não apodreceram no âmago da história e ainda ocorrem com Marielles e Eunices por aí.
