Do Facebook de Raquel Varela (historiadora portuguesa).
Não me revejo no feminismo dominante, cujo epicentro é agora Hollywood. Não me representam. Oprah Winfrey – conservadora, bilionária, líder de programas “lixo”, juíza em directo, sem garantias de protecção de direitos dos acusados – não é a minha heroína. Ser negra e mulher em nada atenua o facto de que é um ser humano, disposta a fazer justiça sem provas, em nome de todos, uma espécie de Maria Antonieta dos tempos modernos, a líder moral que decide sozinha quem é culpado e quem é inocente, de preferência em directo na TV. Mais do que coragem ela reflecte a profunda decadência das sociedades ocidentais em que os media substituem os tribunais. Não muito longe de Trump nos métodos, essa é a dura verdade da crise de civilização norte-americana. Não a autorizo a usar-me, como mulher, para o seu exército.
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Quero deixar a minha opinião inequívoca sobre isto por mais que incomode tanto o fanatismo actual que confunde luta de ideias com imposição de ideias.
Uma operária violada, como conheci centenas de casos relatados no estudos que fiz sobre o final do salazarismo, porque dependia do trabalho para alimentar os filhos, não pode – não pode jamais – ser equipada a uma estrela que está 20 anos calada para ganhar milhões e nesses 20 anos é fotografada sorridente ao lado daquele que hoje diz que a agrediu sexualmente durante esses 20 anos. Estas mulheres são em primeiro lugar vítimas da sua ambição e é acintoso, imoral comparar operárias ou trabalhadoras que sofreram na pele o terror sexual em nome da sobrevivência, a estrelas à procura de um lugar de topo na carreira mais competitiva do mundo. Eu não sorrio ao lado de homens que me ameaçaram, sexual ou moralmente, sejam eles directores, reis, presidentes ou operários. E não é porque eu sou uma mulher forte que teve a sorte de nascer num lugar confortável, é porque eu tenho balizas morais e princípios claros na vida. Conheci muitas mulheres, por razões de trabalho sobre a revolução dos cravos, como eu, aprendi muito com elas. Com a diferença que que eram pobres, miseráveis algumas, e mesmo assim colocaram uma linha a partir da qual não passavam. E conheci o contrário, muitas que nasceram em berço de ouro dispostas a tudo. Lamento, mas como mulher, não acho que todas as mulheres estão no papel de vítimas. Há muitas mulheres no mundo que fazem parte do jogo de dominação e desigualdade da sociedade actual e que estão a cavalgar uma situação real – a desigualdade de género – para disputar espaço nas carreiras pondo assim em causa uma das mais nobres causas que temos, a luta pela igualdade social.
A disputa por chegar a lugares de topo das estrelas, gestoras e outros quadros que está a levar a uma substituição da (falhada) “justiça burguesa” pela ainda mais falhada justiça medieval não tem o meu apoio. Sou mulher, defendo uma sociedade igual, mas não acredito na difamação – sem provas, advogados, julgamentos e presunção da inocência – como arma contra o machismo. A maioria dos quadros hoje nas universidades são mulheres, são impedidas de ter uma participação igual aos homens nas decisões porque os homens usam esses lugares de poder para, através do assédio, impedir que os seus lugares fiquem em risco por mulheres jovens e dinâmicas, multifacetadas, e muitas vezes – por experiência própria vejo-o – , mais brilhantes e dedicadas que os homens. Tudo isso é verdade e a sociedade paga um preço alto por isso.
Mas nada disso autoriza a uma nova onda inquisitorial em que os justos pagam por pecadores. Lamento, como mulher, que aquilo que era uma esperança, um movimento de mulheres sério e empenhado em luta pela liberdade e justiça seja dirigido hoje não pelas mulheres clarividentes que conheço neste campo, mas por arrivistas sociais movidas pelo ódio contra os homens. Não me representam.
Para derrotar o machismo é preciso, como se diz em Portugal, ter classe, frase que tem um duplo sentido que gosto muito – remete para a classe como origem social e para a classe como atitude moral. E eu na verdade não gosto nada de gente sem classe.
Quando as questões de intersecção se colocam em um movimento, o movimento é de radicalizar esse mesmo espaço – e não diz que tá saindo, que não serve mais. Desse jeito, só parece birra. Pelo menos é isso que eu espero de alguém que reivindica pra si um posicionamento de esquerda. Pelo visto a carta das 100 mulheres tocou em várias feridas, não só nas ditas liberais.
Eu acredito nos argumentos desse texto, mas a linguagem dele é tão marcadamente conservador que chega a soar caricato.