Por Manoella Oliveira.
A repercussão de um trote universitário realizado na semana passada na Universidade de Franca (Unifran) gerou novas discussões sobre as tradicionais recepções a calouros. Em vídeos que circulam nas redes sociais, calouras de Medicina ajoelhadas prometem, sob o comando de um estudante, “nunca recusar uma tentativa de coito de um veterano”.
Um áudio também registra um juramento de calouros sobre “usar, manipular e abusar de todas as dentistas”. O Ministério Público instaurou um inquérito civil na última terça-feira (05/02) para investigar o caso por suspeita de conduta machista.
Por meio de nota, a Unifran informou que é contrária a “quaisquer atos que incitem preconceito, homofobia, machismo, discriminação, constrangimento ou equivalentes, praticados por membros da comunidade universitária, em particular aqueles relacionados aos chamados ‘trotes’ aplicados aos novos estudantes”.
A universidade esclareceu ainda que abriu uma sindicância interna para apuração dos fatos e que os alunos envolvidos serão penalizados conforme previsto no Regimento Geral da instituição.
O episódio não é um fato isolado e se une a um histórico de trotes que ultrapassam os limites do que muitos consideram aceitável. Os excessos têm motivado a gradual limitação ou proibição de tais práticas em grande parte das instituições de ensino superior do país.
“É lamentável que todo início de semestre a gente assista a práticas de trotes degradantes. Já houve casos de mortes no Brasil. Como defender uma prática como essa? É indefensável”, argumenta o professor Tarcísio Mauro Vago, pró-reitor de assuntos estudantis da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde qualquer forma de trote é expressamente proibida desde 2014.
“Estaremos sempre contra o trote que humilha, que desqualifica, que ofende a identidade das pessoas. O que não cabe nas relações humanas não cabe na universidade”, afirma.
De acordo com o psicólogo Raul Aragão Martins, coordenador da Comissão de Prevenção à Violência da Universidade Estadual Paulista (Unesp), os trotes violentos no Brasil têm motivações diversas.
“Primeiro, a própria cultura do trote, cujas origens remontam à Idade Média; segundo, a naturalização da violência na cultura brasileira, especialmente por termos tido quase quatro séculos de escravidão”, explica. “O terceiro é o que nós da Psicologia da Moralidade chamamos de desengajamento moral: não ver o outro como igual. Se ele não é igual a mim, posso maltratá-lo, ele é um objeto.”
A origem dos trotes se confunde com a das próprias universidades. O primeiro registro data de 1342 na Universidade de Paris. A palavra “trote” se refere à forma como os cavalos se movimentam em ritmo ordenado, algo que precisa ser aprendido e é feito à base das chicotadas e esporadas.
“Já o calouro é ‘domesticado’ pelo veterano por meio de práticas vexatórias para esclarecer e demarcar quais são as características das identidades dos novatos e dos veteranos”, explica Antônio Zuin, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor do livro O trote na universidade: passagens de um rito de iniciação.
Ainda hoje, o rito de passagem não está livre de excessos e humilhações. Para Zuin, qualquer trote implica algum tipo de violência, seja ela psicológica ou física.
“A própria palavra ‘trote’ já alude à violência daquele que se julga no direito de domesticar o novato. Sendo assim, nenhum trote pode ser considerado uma brincadeira”, afirma. “Foram feitas pesquisas que puderam comprovar, empiricamente, a característica do trote como rito de integração sadomasoquista na vida universitária.”
Mecanismos inconscientes misturados à banalização da violência explicam por que alguns calouros vítimas de humilhação levam a situação na brincadeira.
“A aceitação quase natural dessas violências é um ato masoquista inconsciente. É como que se a pessoa, por se sentir numa classe social mais elevada, tivesse que pagar um preço para poder entrar numa boa universidade. Ao mesmo tempo, a Psicanálise fala em identificação com o agressor, então em vez de a vítima o repelir, ela o aceita”, explica Martins.
De leite estragado a desfile
Um estudante de Engenharia Química da Universidade Federal de Viçosa (UFV) que preferiu não se identificar conta que, durante seu trote, passou horas sem enxergar após ter uma mistura de óleo usado com leite estragado despejado em sua cabeça.
“Essa foi a pior parte. O cheiro ficou tão forte que algumas pessoas chegaram a vomitar e mesmo assim eles continuaram jogando”, relata.
Além de terem as roupas rasgadas, seus colegas também foram obrigados a simular sexo oral com um chocolate, enquanto ganhavam placas de identificação com apelidos impróprios.
“Eu achei extremamente humilhante, porque a escolha das pessoas que participaram dessa parte ainda foi pautada em preconceitos”, conta o estudante. Ao final, a polícia foi acionada por moradores do entorno e dispersou o grupo.
Ao ser admitida no curso de Administração pela Universidade Federal de Uberlândia, Amanda Ribeiro, à época com 17 anos, teve que participar de um desfile das calouras.
“Mandaram a gente desfilar e pular porque eles queriam ver nossos seios balançando, enquanto eles cantavam uma musiquinha machista”, relembra. “Fiquei super constrangida, e foi péssimo porque não fizeram nada com os meninos.”
Segundo especialistas, situações como essas podem ter impactos de longo prazo, como comprometer a saúde mental e o rendimento acadêmico dos alunos.
“Há o estresse pós-traumático, que se desenvolve posteriormente ao evento e pode ter implicações na aprendizagem. Há também o caso em que a pessoa já tem predisposição a algum transtorno mental, e a violência recebida no trote pode desencadear psicoses e neuroses”, afirma Martins.
Alternativas ao trote violento
O conteúdo dos trotes é tão variável quanto o número de instituições de ensino superior espalhadas pelo Brasil, e nem todos os estudantes consideram a experiência ruim. O estudante de Ciências Biológicas da Universidade Regional de Blumenau (Furb) Rafael Bona, 20, acredita que eles podem contribuir para a integração entre os alunos.
Ao entrar na universidade, ele e seus colegas de curso tiveram que tomar banho numa mistura de frutas podres, ovos e farinha e passar uma bala, que caiu algumas vezes no chão, de boca em boca. A programação, no entanto terminou em confraternização num bar.
“Trote com limite, com certo respeito, é importante para conhecer os veteranos e é uma brincadeira. O problema é quando há exageros”, opina Rafael.
Muitas universidades têm apostado no chamado “trote solidário”, em que veteranos e novatos socializam enquanto visitam creches ou arrecadam alimentos, por exemplo.
Outras instituições, como a UFMG, reforçam a recepção oficial. Os estudantes são convidados a participar de atividades culturais, discussões sobre cidadania e passeios a locais que pertencem à instituição, como museus. Essa também é a estratégia adotada pela Unesp, onde o trote tradicional é proibido há 20 anos.
“Queremos ter alunos com ótimas recordações de seu ingresso na universidade. Os casos de trotes tradicionais, violentos, são cada vez mais raros e, quando ocorrem, são investigados”, informa o coordenador da Unesp.