A crueldade das pessoas já superou a ficção

Por Rodrigo Casarin. 

Responsável por publicar autores como o holandês Hendrik Groen, o japonês Shusaku Endo e o norte-americano Bob Dylan, último agraciado pelo Nobel de Literatura, o selo Tusquets é o braço da Planeta para obras de excelência artística. É por ele que a editora lançou, no começo deste ano, a nova edição de “Capão Pecado”, livro mais famoso de Ferréz, referência na produção marginal e periférica brasileira.

Sim, é um feito em tanto um escritor se lançar no Capão Redondo, bairro pobre de São Paulo onde Ferréz vive até hoje, vender mais de 100 mil exemplares de um único título como “Capão Pecado” já vendeu e, 17 anos depois da primeira edição, receber o mesmo tratamento editorial que um Bob Dylan. Foi graças a esse livro que Ferréz, também autor de títulos como “Manual Prático do Ódio” e “Deus Foi Almoçar”, transformou-se em um dos escritores mais conhecidos do país. E é principalmente sobre esse livro que conversamos na entrevista a seguir.

No papo, Ferréz conta, por exemplo, que conheceu gente chamada Rael em homenagem ao protagonista de sua história, que aposta em um conturbado relacionamento amoroso para revelar o cotidiano da periferia. Sobre a “quebrada”, aliás, o escritor diz que ela mudou muito desde que lançou “Capão Pecado”. O autor ainda se mostra surpreso com a sociedade em geral: vídeos de pessoas sendo agredidas, torturadas e mortas que com frequência são compartilhados entre celulares o fazem acreditar que, na realidade, a crueldade do ser humano já extrapolou o limite que a ficção poderia imaginar para a barbárie.

Ferréz, um escritor que era visto quase que como um maluco lá no Capão agora tem seu livro mais famoso lançado pelo mesmo selo que publica gente como o Nobel Bob Dylan. O que isso representa?

Representa anos e anos de batalha; para todo periférico é muito mais difícil de fazer as coisas do que para quem mora no centro da cidade, que tem regalias. Marca, pra mim, uma vitória perante toda dificuldade que eu tive para convencer as pessoas de que eu era escritor, para convencer as pessoas a lerem, porque tive que formar muito do meu público, insistir para começassem a ler. É uma vitória muito grande, mas ainda há muito a se fazer, há muitos estados para alcançarmos, muita gente para trazermos para o mundo da leitura.

Como o “Capão Pecado” mudou sua vida?

Ele mudou minha vida e influenciou a de várias pessoas também. Sou reconhecido em diversos lugares por causa desse livro. Apesar de ter publicado outros, sempre falam: “olha o cara do ‘Capão Pecado’”. Conheci muita gente, tive acesso a artistas, por causa dele. E até hoje há quem me pare na rua para comentar sobre os personagens, a Paula, o Rael, então é um livro vivo. No cotidiano das comunidades por onde passo, é minha obra-prima, a que ficou vinculada a mim. E isso para as coisas boas e para as ruins. Muita gente me associou à criminalidade porque ela é tratada no livro, ainda há quem confunda o escritor com personagem.

Como é a sua relação com o Rael? Qual é a importância desse personagem na sua carreira?

Ele é muito importante. Conheço criança que se chama Rael por causa do personagem, é o filho de uma mulher que estava num ônibus lendo “Capão Pecado” e o cobrador começou a conversar com ela, hoje eles são casados e tem esse menino. É um personagem que permanece no meu dia a dia. Até música já me mandaram contando a história do Rael, algo meio “Eduardo e Mônica”.

Você costuma dizer que a literatura permitiu conhecer o coração dos seres humanos. O que encontrou nesses corações?

Sim, digo isso. Me permitiu ver o lado bom das pessoas que querem o progresso, ajudar o próximo, mas também me permitiu ver o lado egoísta, o lado de quem não consegue aceitar o sucesso do outro, Quando se lança uma obra dessas, você consegue ver muito bem como as pessoas são de verdade, as máscaras não se sustentam.

“A literatura é egoísta demais para se dividir com o crime”, você escreve na apresentação dessa nova edição. Pode falar um pouco mais sobre isso?

Uma hora precisamos tomar uma decisão na vida e o fluxo, o movimento, de um bairro como o Capão de certa forma arrasta a gente para alguns lados. Então, quando tive que fazer essa escolha, a literatura se mostrou egoísta mesmo: queria que eu lesse o tempo todo, estudasse, soubesse o que eu estava fazendo. Quem lê, quem se informa, quem está nesse meio literário não aceita coisa mal feita, então é preciso muito empenho. Eu passei por uma escola defeituosa, horrível, que me transmitiu pouco conhecimento, apesar de ter tido professores maravilhosos, então tenho que correr atrás disso, ser autodidata, tudo para fazer uma obra um pouco melhor.

Desde o lançamento do “Capão Pecado”, em 2000, o que mudou na realidade das periferias?

Muita coisa. Quando escrevi o “Manual Prático do Ódio” [de 2003] ela já tinha mudado, inclusive. A periferia muda de livro pra livro, mudam as gírias, o comportamento… Na época não tinha uma presença tão grande da criminalidade, com tanta força das facções. O crime era mais com cada um fazendo seu jogo, cada um por si. Além disso, os espaços públicos diminuíram bastante, a parte cultural diminuiu bastante, a bebida passou a impactar muito mais nas comunidades… Com certeza vivemos outros tempos.

E na sociedade em geral?

Também mudou muito, as pessoas ficaram mais cruéis. Isso de compartilhar vídeo de gente batendo, com o sofrimento dos outros, pelo celular… Eu não acreditava que isso um dia pudesse acontecer. De certa forma a crueldade superou até a própria ficção.

Como você avalia o momento social e político que o Brasil vive?

É um momento tendencioso e comparado ao resto do mundo: gente procurando por populistas de extrema direita, votando em pessoas que não têm conhecimento nenhum do que estão fazendo. Estamos seguindo essa mesma vertente, como bom filhote que somos, com o bom complexo de vira-lata que temos. E assim a gente não vai construir um país nunca. Vamos morar dentro de um monte de estados, mas não propriamente em um país.

Fonte; Controvérsia. 

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