Por Már Guðmundsson. [*]
Este discurso sereno e razoavelmente optimista do Governador do Banco Central da Islândia contrasta estranhamente com o desvario atabalhoado e as dramatizações das autoridades monetárias e financeiras portuguesas. Por que tal contraste? Na Islândia, autoridades com sentido da dignidade nacional e dos interesses do seu povo não adoptaram a postura servil de “bom aluno” frente aos abutres do capital financeiro. Tão pouco submeteram-se servilmente às chantagens da União Europeia e preferiram por o seu povo acima de qualquer outra consideração. Lá houve um Presidente da República com sentido de dignidade nacional que, impondo-se aos politiqueiros locais, obrigou à realização de um referendo acerca da assunção ou não por parte do Estado de dívidas de banksters privados – e o povo soube dizer não a essa tentativa de extorsão depois de uma intensa campanha popular. A Islândia salvou-se por isso mas – também e sobretudo – porque nunca perdeu a sua soberania monetária. Soberania essa que em Portugal foi abdicada por deputados do PS, PSD e CDS, sem qualquer mandato para isso.
O caso da Islândia encerra lições para Portugal e os demais países do Sul da Europa. A primeira é que a resistência popular é decisiva; a segunda é que é importante ter gente digna entre os governantes; a terceira é que é imperioso libertar o país dos grilhões do euro.
Sr. Presidente da Islândia, Srs. Embaixadores, Senhoras e Senhores
Quase todos vós sabeis provavelmente que quase 90% do sector financeiro da Islândia faliu na primeira semana de Outubro de 2008. Esse facto está bem estabelecido nos espíritos dos especialistas da crise financeira internacional. O que provavelmente é muito menos conhecido é que, nessa altura, a Islândia já estava a caminho de uma recessão depois de uma explosão insustentável e de um sério sobreaquecimento durante 2005-2007 e de uma crise de divisas na primeira metade de 2008. Claro que o colapso bancário, a perda de riqueza a ele associada e a maior depreciação da divisa acentuaram a recessão, mas foram também um dos factores que provocaram a crise sistémica da economia global no quarto trimestre de 2008.
Nesse outono, dois acontecimentos separados mas interligados convergiram com o desastre islandês para um final trágico. Foram eles:
- O ciclo expansão/recessão e os problemas de gestão macroeconómica em pequenas economias, abertas e financeiramente integradas. Este é um problema já visto muitas vezes em todo o globo e muitos dos seus elementos já eram conhecidos na Islândia. Desta vez, pode ter sido muito mais acentuado, mas não foi fundamentalmente diferente.
- A ascensão e a queda de três bancos transfronteiriços que funcionavam na base da legislação da UE (o ”passaporte” europeu). Este acontecimento não teve precedentes, já que envolveu a primeira crise financeira na Europa desde que se formou o mercado único da UE no início dos anos 90.
Hoje não vou falar sobre a acumulação destes acontecimentos, e pouco terei a dizer sobre o segundo ponto. Já me alarguei sobre ambos em diversas publicações e discursos que vos posso indicar. Em vez disso, vou falar sobre o que aconteceu à economia da Islândia depois disso – a sua profunda recessão e a sua recuperação posterior – e depois reflectir sobre alguns dos desafios políticos que ainda enfrentamos.
Mas primeiro reflictamos sobre o caminho percorrido desde esse fatídico Outono de 2008. O sector financeiro da Islândia estava a desmoronar-se e as autoridades tiveram que tomar medidas extraordinárias para manter as transacções dos bancos, incluindo deixar a parte internacional do sistema financeiro resolver a sua situação, limpar todos os activos nos bancos, e demitir os seus gestores. Muita gente pensou que a dívida soberana ia incumpir suas obrigações, o que teria deixado a Islândia isolada dos mercados de capitais internacionais durante anos. Um aspecto crucial da gestão da crise foi assim proteger a dívida soberana dos bancos insolventes e minimizar a socialização dos prejuízos do sector privado. E a Islândia ia a caminho da sua pior recessão do pós-guerra, quando o PIB se contraiu em 12,5 %, desde o seu pico no quarto trimestre de 2007 até ao mínimo nove trimestres depois, no primeiro trimestre de 2010. Caiu de um pico insustentável, é verdade, mas de qualquer modo a queda foi espectacular.
Onde estamos agora, quase cinco anos depois?
Em primeiro ligar, já pouco se fala de um possível incumprimento da dívida soberana: o sector público tem um excedente primário, calcula-se que o défice total se aproximou dos 2% do PIB no ano passado, a dívida do governo, enquanto percentagem do PIB está numa trajectória descendente, e as três principais agências de avaliação classificam a Islândia na ‘categoria de investimento’.
Em segundo lugar, estamos muito avançados na reconstrução de um sector financeiro interno. Os novos bancos nacionais, que foram instituídos sobre as cinzas dos três bancos internacionais falidos, são lucrativos, estão bem capitalizados, têm liquidez e com rácios de empréstimo muito razoáveis que, embora ainda altos devido à crise, estão a voltar a níveis normais à medida que a restruturação da dívida do sector privado avança e a economia recupera.
Em terceiro lugar, a economia recuperou realmente, conforme se pode ver na Figura 1a. A economia tem vindo a crescer desde o segundo trimestre de 2010, e o desemprego caiu de um pico de cerca de 9% para cerca de 5,5 %. E conforme mostra a Figura 1b, prevê-se que a Islândia se encontre este ano entre as cinco economias avançadas de crescimento mais rápido do mundo, com um crescimento estimado de 2,1%, embora isso se deva em parte ao recente abrandamento em muitos outros países avançados. E a previsão é que a Islândia cresça ainda mais rapidamente durante os próximos dois anos, ou seja na escala dos 3,5-4% por ano, fazendo com que a economia saia da estagnação e com que a taxa de desemprego caia para cerca de 4%.
Então como é que chegámos aqui?
Para responder a esta pergunta, é preciso recordar que a recuperação não está ligada apenas aos choques negativos que atingiram a economia em 2008 mas também às políticas aplicadas. Para além da gestão da crise dos bancos falidos, que já mencionei, o programa económico, que as autoridades islandesas elaboraram em cooperação com o FMI, desempenhou um papel fundamental. Conseguiu um financiamento no valor de 5,1 mil milhões de dólares, com que criámos um fundo de reservas de divisas estrangeiras. O programa teve três objectivos: estabilizar a taxa de câmbio, definir uma fiscalidade sustentável, e sanear o sector financeiro. Os controlos abrangentes de capitais foram um elemento fundamental do programa.
As respostas políticas mitigaram a recessão mas não puderam impedi-la de se tornar a mais grave na história da Islândia do pós-guerra e muito profunda se a compararmos internacionalmente conforme se pode ver na Figura 2. Contudo, a Islândia não foi o país mais duramente atingido, como se pode ver neste diapositivo. Além do mais, os desenvolvimentos estavam mais ou menos em linha com as previsões do Banco Central da Islândia. O resultado foi que a Islândia caiu significativamente na Liga das Nações.
A divisa desempenhou um papel significativo, tanto na formação da crise como durante a sua subsequente estabilização e recuperação. A crise da divisa materializou-se numa depreciação da coroa islandesa de cerca de 50% durante o ano de 2008. Atingiu os sectores empresariais e as famílias profundamente endividados, em que uma grande parte dessas dívidas era denominada ou estava directamente ligada a divisas estrangeiras, ou a elas ligada indirectamente através da indexação de preços numa época de variação forte e rápida das taxas de câmbio. A depreciação da divisa comprimiu assim os balanços substancialmente. Daí a necessidade de estabilizar a taxa de câmbio, o que foi conseguido em meados de 2009.
No entanto, a depreciação real da coroa islandesa – que reduziu a taxa de câmbio real a cerca de 30% abaixo da sua média histórica durante algum tempo e a mantém no nível presente de cerca de 20% abaixo dessa média – reduziu as importações e estimulou as exportações, ajudando assim a transformar o défice das contas correntes de dois dígitos num excedente subjacente. Mas o estímulo às exportações é limitado pelo facto de as principais exportações industriais, como as pescas e as fundições de metais de consumo intensivo de energia, enfrentam constrangimentos de capacidade que só podem ser ultrapassados por investimentos que até aqui têm sido bastante limitados.
Um elemento muito importante, bastante inovador e que explica o êxito da nossa política foi a interacção da consolidação fiscal, da política monetária e dos controlos de capitais. A crise desferiu um rude golpe às finanças públicas islandesas, conforme se pode ver na Figura 5. O défice resultante – 10% do PIB em 2009 – teria sido muito mais difícil de financiar na ausência dos controlos de capitais que impediram a fuga de capitais estrangeiros e captaram novas poupanças internas. No entanto, não havia alternativa para escapar à consolidação fiscal necessária para colocar as finanças do governo numa via sustentável, visto que a Islândia perdera a confiança externa e o acesso ao mercado. Foi um grande esforço, conforme se pode ver na Figura 6a, e começou no meio de uma crise económica, que está longe de optimizada. Mas a política monetária tem sido progressivamente capaz de apoiar a economia depois de a taxa de câmbio ter estabilizado e a inflação ter descido (ver Figura 6b). E o âmbito da política monetária para apoiar a economia interna apesar da crise da balança de pagamentos foi, por sua vez, reforçada pelos controlos de capitais, conforme se pode ver neste diapositivo, que compara as taxas de juros reais a curto prazo durante a recente crise financeira na Islândia com as taxas reais a curto prazo na Coreia durante a crise financeira asiática.
Finalmente, permiti que diga algo sobre os actuais desafios da Islândia. Vou referir-me a três.
O primeiro é fazer regressar a inflação à meta dos 2,5%. Neste momento está em 4,8% e é alimentada por uma divisa fraca e pelos aumentos salariais acima do crescimento da produtividade, que por sua vez são provocados pelas boas condições num sector de exportação que beneficia de uma taxa de câmbio baixa. Prevê-se que a inflação recue para essa meta em meados do próximo ano, embora isso dependa da evolução da taxa de câmbio.
O segundo está ligado à desalavancagem, ou redução dos níveis da dívida. Os níveis de endividamento público e privado estão numa via de declínio, conforme se pode ver na Figura 8. No caso dos negócios em especial, uma parte significativa assume a forma da reestruturação da dívida e de reduções. Isso, juntamente com o processo de resolução dos bancos falidos, levará à redução da dívida externa líquida da Islândia a um nível sustentável (ver Figura 9). Claro que isso é uma coisa boa, mas o processo de desalavancagem tem dois efeitos laterais a curto e médio prazo que têm que ser geridos. O primeiro respeita ao efeito negativo da desalavancagem sobre a procura interna. O segundo respeita ao seu efeito negativo sobre a taxa de câmbio, visto que as entidades económicas com dívida externa, com pouca ou nenhuma receita de divisas estrangeiras e sem acesso ao crédito estrangeiro, são forçadas a reembolsar a dívida externa mais depressa do que seria ideal, para elas e para a economia. Esta é uma parte do problema da nossa balança de pagamentos.
Isso leva-me ao terceiro desafio, que é acabar com a crise da balança de pagamentos da Islândia e abandonar os controlos de capital. Através da consolidação fiscal e do reforço das suas reservas de divisas estrangeiras (ver Figura 10ª), a Islândia tem assistido a uma profunda queda no risco da dívida soberana conforme reflectido nos diferenciais CDS. Além disso, a dívida soberana conseguiu aceder por duas vezes aos mercados de capital externo, num total de 2 mil milhões de dólares, e usar parte dos proveitos para reembolsar uma parte significativa dos empréstimos associados ao programa do FMI antes do prazo marcado. As reservas de divisas estrangeiras e outros activos de divisas estrangeiras do Banco Central cobrem actualmente os reembolsos da dívida soberana externa para lá de 2022 (ver Figura 10b).
O problema da balança de pagamentos, que os actuais controlos sobre a fuga de capitais pretendem assim controlar, reside noutra área. Estão mais bem demonstrados na Figura 11, que mostra, por um lado, os activos líquidos ISK na posse de não-residentes, que se elevam a 22% do PIB, e dos activos ISK dos antigos bancos, que, na ausência de outra acção, cabem sobretudo a residentes estrangeiros e podem ser adicionados às existências de possíveis coroas islandesas líquidas ultramarinas. Dado que o excedente subjacente de contas correntes se situa na região de 3-4% do PIB e dado que há muitos outros reembolsos de dívida que o reclamam, é óbvio que, se estas quantias fossem libertadas de um dia para o outro, correríamos o risco de outra crise da divisa, com possíveis implicações significativas numa estabilidade financeira. É por isso que estes activos têm que ser libertados depois de valorizações significativamente reduzidas em termos de divisa estrangeira ou têm que se escoar durante um período muito maior. Quanto mais se reduzir o seu valor em termos de divisa estrangeira, mais depressa podem ser eliminados os controlos.
As autoridades islandesas têm uma estratégia montada para eliminar gradualmente os controlos de capitais, logo que as condições o permitirem, sem minar indevidamente a taxa de câmbio e a estabilidade financeira. A estratégia está actualmente a ser revista. É claro que o processo será significativamente afectado pela forma como for tratado o problema da coroa associado à liquidação dos antigos bancos, visto que uma solução amigável pode acelerar muito a eliminação dos controlos.
Mas a ideia básica vai manter-se a mesma. O primeiro elemento é garantir as condições de enquadramento para a eliminação dos controlos, como, pelo menos, finanças equilibradas do sector público, um excedente subjacente de contas correntes, e reservas de divisas estrangeiras adequadas. Tudo isto está a andar ou está bem encaminhado. O segundo elemento será pôr em vigor os enquadramentos da política económica e regras prudentes que possibilitem que a Islândia encare os riscos associados aos movimentos livres e voláteis do capital. Também isso está a caminho. O terceiro elemento é reduzir a provisão da coroa líquida externa a um nível mais seguro, quer através da implementação de um desconto quer amarrando a coroa ultramarina a prazos mais prolongados e a investimentos reais. Isso também está encaminhado, embora haja quem ache que o processo é demasiado lento. O quarto elemento é abrir o acesso ao mercado e, através de outros meios, gerar influxos a longo prazo para substituir o capital que quer fugir. A história mostra que quem embarca cedo nesse comboio têm muito a ganhar.
Permitam-me que termine dizendo que a Islândia fez grandes progressos desde o Outono de 2008. A principal tarefa que se segue é reintegrar a Islândia financeiramente na economia global, mas temos esperança que desta vez seja de modo mais seguro.
Muito obrigado.
[*] Governador do Banco Central da Islândia, Discurso na Conferência organizada pela Câmara de Comércio franco-islandesa; Islândia, La Renaissance, Paris, 28 de Fevereiro de 2013.
O original se encontra no site do BC da Islândia.