A crise de eletricidade na África do Sul prossegue

Por Vashna Jagarnath / Globetrotter.

South Africa Metallic flag, Textured flag, grunge flag

Ao final do regime do apartheid, em 1994, somente 36% das casas na África do Sul tinham luz elétrica, com quase todos os domícilios brancos tendo acesso à energia e a maior parte dos domicílios negros sem acesso à eletricidade. Dez anos mais tarde, mais de 80% dos domicílios tinham acesso à energia elétrica. Foi uma realização importante, apesar de ter deixado para trás os moradores das favelas, em rápido crescimento em todo o país.

Mas esse progresso chegou a um limite em 2007, quando a África do Sul começou a sofrer com os “cortes de carga”, que é o corte do fornecimento de energia para diferentes áreas de forma rotativa. O “corte de carga”, implementado quando a companhia estatal de energia, a Eskom, é incapaz de prover eletricidade para todo o país e a rede de energia precisa ser mantida estabilizada, parece ter chegado a um novo nível nos últimos dias, com a maioria das regiões ficando sem energia elétrica por até 12 horas por dia. Houve avisos de que blecautes totais podem ser necessários.

A Eskom foi incapaz de manter um fornecimento estável de energia por 15 anos por conta da falta de investimento na atualização da infraestrutura e pouca manutenção, um período de saque sob o regime cleptocrático do ex-presidente Jacob Zuma, e um longo programa de austeridade estatal que resultou no desinvestimento geral nas empresas estatais.

A crise energética tem sido bastante danosa para uma economia que tenta se recuperar de uma desindustrialização socialmente devastadora, da austeridade estatal e do crescente controle das máfias políticas sobre a vida econômica. Há estimativas de que o “corte de carga” tenha levado a uma perda de 500 bilhões de randes (cerca de 28 bilhões de dólares) na economia sul-africana desde 2018, sendo responsável por uma perda de cerca de 1 bilhão de randes por etapa, isto é, por dia.

A África do Sul tem taxas de conectividade energética muito maiores que o resto da África subsaariana, onde cerca de 90% das crianças que conseguem acessar a educação básica vão para escolas sem energia elétrica. Mas com o corte de carga fazendo com que a energia fique desligada durante a maior parte do dia, muitas pessoas na África do Sul podem enfrentar condições semelhantes às que vivem no resto da África subsaariana. Dado que a África do Sul é hoje o país mais desigual do mundo, o aprofundamento da crise energética aumenta as diferenças entre ricos e pobres, com os últimos sendo majoritariamente negros e, em grande parte, mulheres.

De acordo com relatórios recentes, mais de 30,4 milhões de pessoas na África do Sul vivem abaixo da linha de pobreza, de uma população total de 60,6 milhões. Cerca de 50% da população vive com 1.335 randes por mês, ou cerca de 75 dólares. O custo básico da eletricidade para um domicílio pobre é de algo entre 1.100 e 1.500 randes, o que já é um custo maior do que a renda de metade da população do país. Junto da ampla insegurança alimentar, é provável que a mesma população de mais de 30 milhões de sul-africanos enfrente a “pobreza energética”, um termo usado para descrever uma situação na qual as contas de eletricidade, gás e outras fontes de energia tomam uma larga parcela dos gastos do domicílio, dificultando que esses sul-africanos cubram os custos com comida, aluguel e roupas. Além disso, o uso reduzido de energia em domicílios e locais de trabalho tem um impacto negativo em sua saúde física e mental. Nas favelas, a falta de eletricidade tem se traduzido há muito tempo em pessoas usando velas e gás para cozinhar e iluminar suas casas, vivendo em condições precárias que frequentemente resultam em incêndios devastadores. Com cortes de carga frequentes, os incêndios também devem se tornar mais comuns nesses tipos de moradia.

Além de tudo isso, a África do Sul teve a oitava taxa de homicídios mais alta do mundo em 2020, e a quarta maior taxa de violência de gênero no mundo, de acordo com dados de 2016. As horas cada vez maiores de cortes de carga e a queda abrupta de eletrificação tornará essa violência ainda maior. Um estudo realizado em 2017 no Brasil sobre o impacto socioeconômico da eletrificação concluiu que o acesso à energia resulta em quedas significativas nas taxas de violência de gênero, por conta da melhor iluminação em espaços públicos.

O fardo da reprodução social sempre foi carregado majoritariamente pelas mulheres. O acesso à eletricidade pode reduzir esse peso. Um estudo de 2021 intitulado “Energizando domicílios e empoderando mulheres” concluiu que, ao liberar o tempo das mulheres, a pobreza é reduzida pela criação de oportunidades para que mulheres e meninas desenvolvam meios de subsistência, entrem na força de trabalho ou se concentrem na escola. Isso também pode reduzir a exposição a poluentes nocivos dentro de casa, aumentar a saúde materna e diminuir a violência de gênero.

A demanda pela resolução da crise de eletricidade tem sido uma das poucas questões que ajudaram a unir os pobres, a classe trabalhadora e a classe média. Mas, até agora, essas exigências não estão bem organizadas e foram atendidas com pouco mais do que chavões pelas elites dominantes, incluindo o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa.

O comprometimento do Congresso Nacional Africano (CNA) com a austeridade neoliberal tem se traduzido em investimentos insuficientes na companhia estatal de energia. Sua única proposta tem sido substituir as estações de energia estatais a carvão, que são altamente poluentes, para formas privadas de energia renováveis. Atualmente, uma das pessoas mais bem colocadas para se beneficiar disso é o cunhado do presidente, o bilionário Patrice Motsepe, levando em conta seus investimentos em energia renovável.

Os sindicatos na África do Sul têm insistido que, apesar de uma mudança para fontes renováveis ser bem-vinda, realizá-la por meio de privatizações aumentará o custo da energia elétrica para os pobres e a classe trabalhadora, resultando em uma inclinação para atender aos interesses dos capitalistas e dos ricos. os sindicatos propuseram que as fontes renováveis sejam públicas e geridas socialmente.

As propostas dos sindicatos foram ignoradas, a austeridade prossegue, e houve pouco movimento para a privatização da produção elétrica. É uma situação de estagnação.

Especialistas acreditam que os cortes de carga, com seus efeitos econômicos e sociais altamente prejudiciais, provavelmente continuarão pelos próximos três ou quatro anos. Muitos analistas argumentam que isso deve atingir a popularidade do Congresso Nacional Africano nas próximas eleições presidenciais, previstas para 2024. Uma crise de energia poderia significar uma perda de poder político. Com os partidos xenofóbicos e de direita avançando, o cenário não é de muito otimismo.

A África do Sul não verá luz até que o valor social do acesso à eletricidade seja tomado em conta. A proposta dos sindicatos por uma mudança para fontes renováveis administradas e detidas socialmente é a melhor opção na mesa. Nós precisamos de uma solução que vise a maioria, e não alguns poucos.

Este artigo foi produzido pela Globetrotter e traduzido por Pedro Marin para a Revista Opera.

Vashna Jagarnath é uma acadêmica, sindicalista e ativista. Ela é a diretora da Pan Africa Today (PAT) e trabalha no escritório do secretário geral do Sindicato Nacional dos Metalúrgicos Sul-Africanos (NUMSA). Ela também é vice-secretária-geral do Partido Socialista Revolucionário dos Trabalhadores (SRWP) da África do Sul.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.