“É ingênuo pensar que são apenas as pesquisas que estão com problemas, porque não podem antecipar as eleições corretamente e se equivocam uma vez ou outra. Esta é uma crise da inteligência – da academia, das ciências sociais – que seguiu uma corrente (mainstream) sem questionar suas premissas básicas, sem olhar pela janela, ensimesmada em modelos matemáticos que não dizem nada sobre as expectativas (sonhos), as demandas (necessidades) e os chamados indivíduos, que nada mais são do que pessoas com nome e sobrenome. Esta é a crise da inteligência, que invisibilizou outras visões e teorias desenvolvidas para além de suas fronteiras”, escreve Marta Lagos, pesquisadora, fundadora da ONG Latinobarômetro, em artigo publicado por El Mostrador, 10-11-2020. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
O que aconteceu com a inteligência? As mentes brilhantes que enchem os organismos internacionais, as universidades que conseguem formar profissionais que desenvolvem as mais inimagináveis tecnologias, não podem usar sua inteligência para melhorar o funcionamento da política, das sociedades, dos Estados, da democracia?
Chama a atenção que as ciências sociais tenham se confinado na economia para abordar os problemas das sociedades, circunscrevendo isto a um assunto de recursos, criando uma gigantesca maquinaria internacional de especialistas em organismos internacionais, centros de pensamento e universidades.
Essa maquinaria, no entanto, não enfrentou o problema das relações interpessoais entre os cidadãos de uma nação, sociedade, Estado: as relações de poder, a política. A expertise científico-econômica consumiu a presença de outras ciências sociais, a inteligência foi assim superada pelas massas de cidadãos que os deixam mudos, sem entender, sem explicação, sem saber por que as coisas acontecem.
Nós, pesquisadores, nos tornamos as bisagras substitutas dessas ciências sociais, interpelados a “antecipar” não mais simples eleições onde competem uma série de candidatos, mas muito mais a conhecer, interpretar e explicar a evolução das sociedades, seu comportamento.
Existem, no entanto, ainda, as ciências sociais, a ciência política, a sociologia política, a antropologia, a psicologia política… ciências que se fecharam em si mesmas na academia guiada pelos americanos, com o padrão anglo-saxão, produzindo sofisticadas análises “indexadas”, que claramente não olham e nem deixam enxergar a floresta.
Toda essa inteligência perdida, escondida, em desuso para compreender, analisar e entender, para atuar sobre nossas sociedades.
Cresce o número de países onde os acontecimentos eleitorais revelam fenômenos (depois evidentes) não enxergados em nada pelo o mainstream das ciências sociais. Somente nas últimas semanas:
1. A Bolívia mostrou como, apesar de Morales, o voto de esquerda mantém a fortaleza que mostrava há uma década, não diminuiu em nada. No entanto, dava-se a entender que algum candidato poderia ter a expectativa de vencer diante disso. Não entender o que acontece com as demandas políticas de um povo que vem se expressando por mais de uma década, não é um erro de cálculo em algumas pesquisas em uma eleição. É não compreender essa sociedade no todo.
2. O Chile, um país que durante anos se mostrou ao mundo como algo que não era, onde dominaram visões triunfalistas dos frutos do crescimento, sem olhar as demandas das pessoas que finalmente explodiram e transbordaram o copo. O copo acaba de entornar em um plebiscito que vota 80/20 a favor da mudança. Só aí o país começa a reagir. É a crise da inteligência das ciências sociais invisibilizada por versões dominantes.
3. Agora, os Estados Unidos, onde se nota muito o contraste de uma elite de superinteligentes abrigados em universidades que atraem mentes brilhantes do mundo inteiro, e um resultado conciso, quase inexistente, de sua própria academia para conhecer sua própria realidade. O fracasso das ciências sociais nos Estados Unidos em compreender as mudanças societárias das últimas décadas explode em sua cara, nesta eleição, onde acontecem apenas coisas que ninguém havia enxergado. Os cidadãos dão uma lição às ciências, saindo para votar como nunca antes e votar não como esperavam.
Não é em nada derrotada uma visão que obtém 70 milhões de votos, mais que qualquer outro perdedor na história dos Estados Unidos, ou um ganhador com 74 milhões. Quebram-se todos os recordes. O trumpismo não são as frases insolentes, inaceitáveis de Trump, mas é um fenômeno social, político, econômico, que agora terão que começar a explicar. Por sua parte, os democratas não arrasam, mas brigam voto a voto, com margens estreitas.
As pesquisas erraram novamente, mas só as pesquisas? Por acaso este não é um problema da ciência, a que erra ao interpretar a sociedade? Nós, pesquisadores, só podemos testar as teorias existentes, as pesquisas não produzem teoria, só as confirmam/rejeitam e as medem.
As pesquisas acertam especialmente de maneira muito precisa nos anos 1950, após a II Guerra Mundial, nos países do primeiro mundo, quando havia teoria sociológica e política, partidos estáveis, eleitorados que se comportavam de acordo com as categorias medíveis. Hoje, mais da metade das premissas com as quais as sociedades eram medidas são voláteis: os partidos, as classes sociais, as ideologias. Não conheço mecanismos para captar a volatilidade sem teoria alguma, é como tentar tirar uma foto de um pássaro, sem saber onde está voando.
É ingênuo pensar que são apenas as pesquisas que estão com problemas, porque não podem antecipar as eleições corretamente e se equivocam uma vez ou outra. Esta é uma crise da inteligência – da academia, das ciências sociais – que seguiu uma corrente (mainstream) sem questionar suas premissas básicas, sem olhar pela janela, ensimesmada em modelos matemáticos que não dizem nada sobre as expectativas (sonhos), as demandas (necessidades) e os chamados indivíduos, que nada mais são do que pessoas com nome e sobrenome. Esta é a crise da inteligência, que invisibilizou outras visões e teorias desenvolvidas para além de suas fronteiras.
É hora de mudar a maneira como se usa a inteligência, abrir as fronteiras, sair do sapato chinês, não fazer mais “papers” para encher volumes de “journals”, mas fazer ciência simples e pura. Aproximar as ciências sociais das sociedades e seus problemas, elucidar os fenômenos sociais que explicam o comportamento das pessoas, desenvolver teorias que expliquem as sociedades no momento em que estamos, questionar as premissas, os métodos, as metodologias, os resultados, avançar no desenvolvimento científico de novos métodos e melhores resultados.
Com a ajuda da ciência, para os que amam a democracia e as liberdades que ela garante, em que dúvida será necessário se concentrar nas décadas seguintes no desenvolvimento da política e das sociedades. Os “atrasos” que esta eleição americana mostrou ao mundo, não apenas apontam para os Estados Unidos e seu sistema eleitoral, mas muito mais, indicam que é “a política” – as relações de poder na sociedade – a desatendida, não a economia, a grande beneficiada do establishment.
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