Por Flávio Aguiar.*
De repente se espalhou o vírus – dentro e fora do Brasil, em parte da mídia internacional e até em comentários de articulistas de esquerda – que nega a existência de um “povo” em nosso país. Ou que “o povo” está completamente apático e anestesiado diante da crise. Cheguei a ler um comentário afirmando que a greve geral do dia 30 de junho não aconteceu de fato, porque “greve que não ocupa a Esplanada dos Ministérios ou a frente do palácio presidencial, não é greve”. Outro comentarista internacional argumentava que a greve do dia 30 protestava contra as reformas trabalhista e da previdência, mas não contra o governo. Ainda outro perguntava por que as multidões que protestaram contra Dilma não estavam protestando nas ruas contra Temer. E mais outro afirmava que a greve seria articulada apenas “pelos sindicatos”, sem “povo”.
Penso que a situação é muito mais complexa do que essas visões simplificadas querem fazer crer.
Há protestos, sim, continuados e massivos, em todas as grandes cidades brasileiras. Há também uma repressão brutal, como a que se fez contra a marcha sobre Brasília. Na greve do último dia 30 houve repressão generalizada por toda parte. A própria cobertura internacional atestou isto. Pode-se ver, por exemplo, a excelente e ampla cobertura feita pelo site RT.com (Russia Today). Há ainda o forte elemento depressivo provocado pela falta de emprego e pela própria recessão econômica que abatem o país.
É verdade que a parcela embasbacada e ressentida da classe média que saiu às ruas contra o governo petista a partir da virada à direita das manifestações de 2013 está mais perplexa do que apática. Pude vivenciar (sem dados de pesquisa científica) o sentimento ou impressão de que esta parcela da classe média hoje se divide em diferentes “facções”.
A primeira fatia, pouco numerosa, mas ativa em redes sociais, se aferra à ideia de que “no tempo da ditadura era tudo melhor” e vai votar, provavelmente, em Bolsonaro. Tal camada – ou crosta – pode muito bem apoiar uma solução do tipo “suspender até mesmo as eleições de 2018”.
Uma segunda fatia, mais ampla, está com o rabo no meio das pernas, se sentindo lograda e “traída” pelas circunstâncias. Não queriam Dilma, não engolem Temer, mas não querem dar o braço a torcer. Preferem reduzir suas panelas e matracas a um “silêncio obsequioso”.
Ainda uma terceira fatia, mais numerosa, sai pela tangente do “é tudo igual”, “os políticos são todos farinha do mesmo saco”. Esse grupo viu em Doria e seu marketing de “gestor não político” uma solução fácil, mas vai se desiludindo com a camaçada de erros desencontrados que o novo prefeito vai cometendo. Daqui pode sair uma guinada que favoreça algum juiz ou procurador açodado que queira se candidatar a algo.
Finalmente, uma quarta camada, ainda incipiente, mas crescente, sacou o erro cometido e agora remói um sentimento amargo em relação ao ciclo petista: “Eu era feliz e não sabia”. As três últimas parcelas acima enumeradas curtem brava ressaca. E ressaca não convida a grandes movimentos. Esse sentimento do “eu era feliz e não sabia” anima também uma grande parte do eleitorado mais à esquerda.
Essa parcela da população viu-se durante muito tempo ofuscada pela campanha do “todo petista é ladrão e todo ladrão é petista”. Essa ofuscação passou, mantida que era pelo jornalismo provinciano e reacionário que segue igual, mas teve de mudar o refrão diante da completa derrocada do governo que sobreveio do golpe jurídico, parlamentar e midiático construído a partir de 2013, ampliado em 2014 e 2015, e desferido em 2016.
O sentimento do “eu era feliz e não sabia”, cada vez mais amplo, predomina nesse segmento, que se amplia sensivelmente, como atesta recente pesquisa do Datafolha que conclui pela “leve ida para a esquerda” do eleitorado potencial no Brasil. Ainda assim, não se deve menosprezar o sentimento de desilusão que atingiu muito militante de esquerda ao deparar com a ideia de que políticos petistas se enrolaram em práticas que antes condenavam em outros partidos.
Mas no lado esquerdo do cenário brasileiro também existem divisões. Uma parte quer Dilma de volta pela anulação do impeachment. Outra, mais numerosa, quer Lula de volta. Ainda nesse bolo há os que querem Lula de volta por ser ele a liderança inconteste que é e também há aqueles que o querem de volta por não verem outra solução.
Entretanto, há uma parcela grande desse lado esquerdo – muito da juventude mais jovem está aí – que não engoliu o impeachment, que aceita uma eventual volta de Lula, mas que no fundo está à espera de alguma nova construção à esquerda. Não se deve esquecer tampouco que a população que passou a amadurecer por volta de 1988 (ano da nova Constituição, que a direita sempre combateu e que é, no fundo, o alvo do golpe de 2016) e que hoje está abaixo dos 45 anos de idade só teve, até então, ganhos em matéria de direitos. Agora estão vendo de perto, pela primeira vez, o que é “perder direitos”. Não raramente o primeiro sentimento que isso provoca é de frustração, desencanto, medo e descrença, em vez de revolta e rebeldia.
Ou seja, em muitos casos há mais perplexidade do que apatia; em outros, mais hesitação do que alienação; em outros, mais confusão do que abulia. E o que há também é enorme complexidade desse “trem” chamado Brasil. Sem falar que há, com certeza, mais à direita, os que pensam que agora sim o país entrou “nos trilhos”; e outros, bem mais à esquerda, que continuam pensando que tudo, durante os governos petistas, não passou de uma “ilusão” ou “desilusão”, que não houve melhora de fato nas condições de vida da ampla maioria da população. Esses últimos são minoria, é verdade, mas nem por isto menos barulhentos.
Não surpreende, diante dessa complexidade de um país de mais de 200 milhões de habitantes, do tamanho de meio continente, e diante do labirinto em que a armação do golpe de 2016 o enfiou, que a inteligência sinta-se comprimida pelo desânimo e deprima, tomada de assalto pela desesperança, pelo desalento e pelo ressentimento diante do “povo” que não é “povo” e sua “apatia”.
Para muitos comentaristas internacionais, esse país de 5.570 municípios e 27 unidades federativas guarda ainda a imagem de um condomínio unitário e administrado em bloco por um síndico e alguns zeladores sediados em Brasília, Rio e São Paulo. Esses observadores ainda têm dificuldade em reconhecer, por exemplo, as injunções geopolíticas que também cercam e condicionam a política interna brasileira. Para tais visões simplistas, é fácil falar em “primavera árabe” ou em “revoluções florais ou coloridas” nos países do antigo Leste Europeu. O mundo – e nele o Brasil não é exceção – é muito mais complexo do que isto. Por isto mesmo – e o Brasil também não é exceção – deve ser um convite ao exercício da inteligência no lugar de sua depressão.
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(*) Publicado originalmente no Blogue Velho Mundo, da Rede Brasil Atual.
Fonte: Rsurgente.