Por Aline Gatto Boueri.*
“O lixo vale ouro”, comenta com um sorriso Marcelo Loto, de 46 anos (foto). Com sua voz mansa e fala pausada, o cartonero (catador de lixo), resume a crise na gestão de resíduos na cidade e de Buenos Aires e sua área metropolitana. Um pouco antes de assumir a o governo da capital argentina, em 2007, o atual prefeito Mauricio Macri, reeleito em 2011, deixou escapar uma frase que ficou na memória de quem trabalha como catador, justamente porque se referia a eles, os artesãos da coleta diária de resíduos: “Os cartoneros estão roubando o lixo”, disse Macri.
A Argentina tem uma empresa nacional que se encarrega da gestão dos resíduos, a Coordenação Ecológica Área Metropolitana Sociedade do Estado (CEAMSE). Criada em 1977, durante a última ditadura militar da Argentina, a CEAMSE trouxe com ela a criminalização do cirujeo, como era conhecida a atividade dos catadores até o final da década de 90. O lixo pertencia ao Estado. O apelido de ciruja para os catadores de outras épocas, segundo Marcelo, é derivado da própria arte de reciclagem. “Naquela época não havia plástico. Os catadores coletavam principalmente metal, papel e ossos descartados pelos frigoríficos. Para vender os ossos era preciso tratá-los, e faziam com tanto cuidado que pareciam cirugiões”, conta.
Somente em 2002, logo depois do default e da crise econômica que mudou a configuração do país – e incluiu de forma dramática o trabalho dos cartoneros na paisagem urbana de Buenos Aires -, os catadores ganharam o reconhecimento por sua atividade. Na província (estado) de Buenos Aires, esperaram até 2006 para sair da ilegalidade. Mesmo assim, o conflito permanece. A CEAMSE gestiona o lixo nos aterros sanitários, mas a coleta é terceirizada – e agora a frase de Mauricio Macri talvez faça mais sentido – em licitações municipais.
“O trabalho dos cartoneros diminui muito a quantidade de resíduos. Reduzimos em mais de 50% o volume e em 30% o peso do lixo. Nosso ofício demonstra que o que antes era descartado pode voltar ao setor produtivo”, afirma Marcelo. Como as empresas licitadas para a coleta pelas prefeituras de Buenos Aires e da Área Metropolitana cobram por peso, aí nasce o conflito entre as empresas e os catadores.
Inspiração brasileira
Marcelo trabalha na cooperativa de catadores de lixo Reciclando Sueños, que funciona em La Matanza, o maior município da Grande Buenos Aires, onde recebeu a reportagem de Plurale e mostrou, orgulhoso, o trabalho que fazem. “Nossa relação com o Brasil é muito estreita, o Movimento de Catadores é o espelho onde nos olhamos.” Marcelo conta que participou do Festival Lixo e Cidadania de Belos Horizonte em 2002 e se inspirou. “Me chamou muito a atenção que os companheiros brasileiros faziam coleta seletiva. Aqui, nós não trabalhávamos ainda dessa maneira, vendíamos o que encontrávamos ou trocávamos em feiras solidárias”, lembra.
Hoje Marcelo percorre o galpão onde a cooperativa funciona e conta o processo de profissionalização pelo qual passaram ao longo dos anos. Explica que as máquinas que usam para limpar os resíduos recicláveis ou para separar os diferentes tipos de plástico são feitas pelos próprios cartoneros, muitas vezes com o material recolhido das ruas. “A gestão do lixo deve ser integral, responsável e sustentável. É preciso pensar na fabricação, na venda, no consumo, na forma como se joga fora, se coleta e se separa. Todos esses passos têm que ser pensados para uma gestão sustentável do lixo. E foi isso que aprendemos com os anos de trabalho. Também aprendi que tenho uma profissão e a me sentir orgulhoso dela.”
O diferencial da Reciclando Sueños é o trabalho feito de porta em porta com os moradores da zona. Os trabalhadores da cooperativa tocam campainha aos vizinhos e os convencem de que separar o lixo orgânico do reciclável é bom para todo mundo. “No início nos diziam que era uma loucura que os vizinhos abrissem a porta para os catadores e entregassem o lixo”, recorda Marcelo. “Primeiro pedíamos que por favor nos deem o lixo. Hoje exigimos que separem. E lhes contamos que vamos ajudá-los a ser melhores cidadãos, melhores pessoas. Foi uma transformação. Não somos coitadinhos, somos trabalhadores que coletamos o lixo de forma seletiva. Somos sócios, trabalhamos juntos. Estou agradecido porque os vizinhos são bons com o meio ambiente, e eles devem estar agradecidos porque eu sou bom com o meio ambiente. Todos somos importantes.”
Um problema político
Na cidade de Buenos Aires algumas cooperativas têm subsídios do governo – ainda que muito inferiores aos contratos das empresas coletoras -, mas na grande Buenos Aires, onde fica a Reciclando Sueños, isso ainda não existe. O trabalho feitos pelos recicladores ainda não é considerado um serviço público e essa é uma das lutas do setor hoje. “Queremos que se reconheça que uma gestão diferenciada do lixo é necessária e que é um serviço público. Hoje há um monopólio para a gestão do lixo na cidade e na Grande Buenos Aires”, reivindica Marcelo. “As empresas coletam o lixo e entregam sem separá-lo. Nós fazemos uma coleta seletiva reciclamos. As empresas não fazem isso porque dá muito trabalho, cobram dinheiro por quilo de lixo que entregam e contaminam. As cidades pagam para que contaminem.”
Segundo o atropólogo Santiago Sorroche, que integra uma equipe da Universidade de Buenos Aires (UBA) que trabalha com a Reciclando Sueños, os cartoneros são essenciais para a gestão sustentável do lixo. “Quem mantém a sustentabilidade da gestão de resíduos hoje são os cartoneros, em termos ambientais e socioeconômicos. Geram trabalho a muitas pessoas que não têm acesso a outros empregos, são especialistas. São os únicos que respeitam a lei, diminuindo o volume de resíduos aterrados, além de regressar parte desses resíduos ao circuito produtivo”, adverte.
Santiago se refere à lei Basura Cero (Lixo Zero), da Cidade de Buenos Aires, promulgada em 2006 e regulamentada em 2007, que determina a redução progressiva dos aterros sanitários, administrados pela CEAMSE. A empresa paralisou o serviço várias vezes este ano para reclamar o não cumprimento da lei e para advertir que os aterros sanitários estão a ponto de atingir sua capacidade máxima. Tanto a cidade quanto a Área Metropolitana enterram seus resíduos na Grande Buenos Aires. As medidas de força deixaram nas ruas de Buenos Aires a evidência de que uma economia baseada em consumo produz mais lixo do que podemos suportar ver.
A CEAMSE pede a ampliação dos aterros sanitários, o que pressiona os pequenos municípios da Grande Buenos Aires e tem um custo político altíssimo. “Nenhum prefeito quer sequer escutar esse rumor”, reconhece Santiago. “O lixo é também um problema político.”
Santiago também aponta ao que chama de “contradição do modelo industrial argentino”, que estimula a substituição de importações. “Com o trabalho dos cartoneros poderíamos substituir importações de derivados do petróleo, como plásticos, ou mesmo minerais, como o alumínio, que poderiam regressar ao circuito produtivo”, analisa.
Há poucos anos de os cartoneros eram ilegais. Hoje, são imprescindíveis para uma Argentina sustentável.
* Correspondente de Plurale na Argentina
Esta matéria é Destaque na Edição 32 de Plurale em revista que está circulando.
A matéria é um pouco antiga. Dá uma olhada no blog ou procura no facebook para ver se eles ainda existem http://recisu.blogspot.com/
Sou artista plástica brasileira e trabalho com produtos reciclados, que seriam jogados no lixo, tais como, aparas de madeira, dos fazedores de móveis, radiografias já usadas, e vidros, transformando-os em objetos de decoração, os quais ponho em lojas de Shoppings Centers e em lojas de arte. Pretendo ir a Buenos Ayres em final de ano e gostaria de contactar com artistas locais que trabalham com este tipo de reciclagem. Abaixo estão os meus dados e gostaria de contactá-los.