A Revista Cláudia, comercializada sob a etiqueta de “feminismos plurais”, vendeu na capa de fevereiro o conceito de “afropatys”, descritas como mulheres negras que rompem com a violência contra seus corpos na busca de hábitos de consumo sem culpa.
A “transgressão” expressa na forma de egoísmo é bem documentada na historiografia cultural pós-moderna, muito frequentemente desaguando no consumismo deliberado. O punk, hoje em dia glorificado como movimento politicamente dotado e militante, tem raízes inescapáveis em uma espécie de catarse niilista e violenta em meio à estagnação política ocidental dos anos 80 e a falência dos movimentos pacifistas sessentistas. O “incelismo”, julgado pela mídia liberal muito ingenuamente como resultado de uma visão de mundo mimada e privilegiada é provavelmente seu descendente direto pro zeitgeist pós 2010, uma diagnosticação correta dos males que parasitam a convivência capitalista tardia (a comodificação do acesso social principalmente), mas uma descrença em possíveis reparações, resultando na agressividade antissocial como única forma de exteriorização possível (e a atitude misoginista observada nesses grupos). Uma forma de desafiar os axiomas rousseauianos que fundamentam a moral burguesa contemporânea e são desde a revolução francesa seguidamente provados fracassados.
Nas tais esferas de visão de mundo mimada e privilegiada fenômenos parecidos são observáveis. O consumo na internet é divisível em dois períodos distintos. O excessivismo hedonista anterior à ascensão da extrema direita produziu um ambiente extremamente consumista e nostálgico, onde produtos de maior ressonância eram atividades envolvendo o imaginário noventista, o entretenimento, a cultura pop. Mentalidades da espécie como o Angry Videogame Nerd, Nostalgia Critic, Sonic For Hire, Egoraptor, os grandes “produtores de conteúdo” que fundaram a internet eram pesadamente dependentes do fator nostálgico em suas obras, em uma época em que tal conteúdo não via tato pela mídia tradicional. Por essa razão o sentimento contracultural era predominante no espírito do consumo. Não existia culpa no consumo, filmes do Zack Snyder eram vistos pela mesma ótica glorificadora que qualquer arte, e portanto, justificável. Seus pais não queriam que você jogasse videogame violento e isso elevava eles.
Depois do gamergate o ambiente internético foi forçadamente radicalizado, “apolonizado”, politicamente catequizado frente aos horrores e medos oferecidos pelo trumpismo crescente. A crítica anticapitalista ineducada se tornou um espírito comum e o consumo passou a ser vigiado pela constante autoavaliação, que transforma comportamentos hedonistas em ironia insincera, e gerando, obviamente, um desejo de retorno ao intrauterino cultural.
Talvez a primeira iteração disso tenha se dado no Tumblr, rede tradicionalmente habitada por uma parcela materialmente protegida da internet com uma mentalidade liberal progressista, quando o pop “Clairo-core” explodiu pouco depois das eleições americanas de 2016. A estética baseava-se num otimismo infantil, distorção da nostalgia, no conforto caseiro. Roupas coloridas, mentalidades adolescentes. A constante vigilância crítica da internet moderna provavelmente mastigou esse grupo nas “soft-girls” contemporâneas e seu plano estético baseado numa performance quase satírica do excesso de informação visual publicitária. O grupo é relevado pela moda neotenizadora e apropriação de adereços considerados infantilmente femininos. A “fetichização consciente” de marcas como Sanrio são lugar comum, filtros de Instagram sobre o anime infantil 2000ista Hamtaro são predominantes, o uso de glitter sobrecarregado, cores femininas, latas de Monster, consumo deliberado de obras como Lucky Star e Love Live, investimentos em Furbies e Monster Highs. Parece uma tentativa desesperada e sardônica de retorno à mentalidade publicitária infantil do começo dos anos 2000, em que marcas como Bratz refletiam a noção Spice Girls de sociabilidade colorida, energética e liberadora que parecia suceder o fim da guerra fria. Tudo sob um tom fatalista, crítico mas passivo sobre o excessivismo e a comercialização. As modelos criam uma postura expressiva indiferente às próprias regalias. Mais uma de suas apropriações de teor hedonista, o ahegao utilizado na pornografia japonesa pra denotar sobrecarga sensorial, parece tentar denotar exatamente a mesma sobrecarga aqui.
Crianças criadas sob a guarda da filosofia emocionalista-psicologista que gerou o screamo encontram um refúgio catártico do consumismo dentro do próprio, uma atitude introspectiva e automutilatória que a publicidade da revista Cláudia já alcança e politiza asquerosamente, com um uso arbitrário da palavra “corpo” e todo o dialeto identitarista já manjado, lei da microrrebeldia. E a verdadeira contracultura da internet se guarda no amoralismo incelista, esse sim, inapropriável pelo social media da campanha bidenista.
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Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.
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