A comprovação indiscutível do não acesso à justiça por brasileiras violentadas

Dados fornecidos pelo próprio CNJ indicam que o Poder Judiciário não superou a lógica da Lei 9.099/95, que caracterizava os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher como delitos de menor potencial ofensivo

Marcha das mulheres em Solânea (PB) teve como principal tema a oposição à construção de um complexo de energia eólica na região.

Por Artenira da Silva e Silva, Cláudio Guida, Patrícia Tuma Martins Bertolin e Flávio de Leão Bastos Pereira, Diplomatique.

Para as instituições do Sistema de Justiça, a Lei Maria da Penha constitui um marco importante para o enfrentamento à violência doméstica e/ou familiar em todo país. Assim, o monitoramento de processos que versam sobre esse tipo de violência tem, recentemente, começado a deter maior atenção por parte do Poder Judiciário, com o fim, em tese, de aprimorar e oferecer respostas mais tempestivas e eficazes a esse tipo de violação de direitos humanos.

Nesse mesmo sentido, o CNJ, por meio da Resolução 254/2018, criou uma Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.

Entretanto, referida resolução estabelece apenas mecanismos de coleta de dados quantitativos básicos relativos à atuação dos juizados brasileiros de violência doméstica e familiar contra a mulher, que, mesmo sendo básicos, já comprovam o não acesso à justiça de mulheres brasileiras violentadas, como se verá dos dados a seguir publicados pelo próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O país possui 8.346 varas, 1.206 juizados especiais e apenas 145 juizados especializados, podendo-se concluir, portanto, que a maioria das ações referentes à violação de direitos humanos de mulheres em âmbito familiar tramita e é julgada por varas únicas, que são localizadas em comarcas com baixo índice populacional. Ou seja, as 145 varas especializadas de violência contra a mulher representam apenas 1,7% do total de varas brasileiras, em um país continental.

Os dados referentes a 2021 demostram que a chamada “crise do Judiciário” persiste indefinidamente, descaracterizando o conceito de crise. No que diz respeito à dita “crise”, em relação às ações penais referentes à violência doméstica e familiar contra a mulher, os números informados são prova inequívoca que os processos de persecução criminal em que as mulheres são vítimas crescem, porém, não têm andamento.

Sobre violência doméstica e familiar, em 2021, houve a distribuição de 630.948 novos processos, tendo sido sentenciados apenas 333.090. No entanto, as informações sequer apresentam o tipo de sentença, se foi condenatória com aplicação de pena de reclusão ou com a sua suspensão, ou absolutória, com julgamento de mérito ou em função da prescrição da pretensão punitiva. Nas três últimas hipóteses, na prática, tem-se impunidade.

Outro dado absolutamente cruel é o de 627.776 processos baixados (já concluídos) em 2021, estando estocados 1.301.605 processos à espera de providências iniciais, o que significa dizer que há centenas de milhares de brasileiras, vítimas, aguardando uma resposta do Sistema de Justiça. Vale esclarecer que processos “baixados” são aqueles que, em regra, já transitaram em julgado (nos quais não cabem mais recursos a tribunais superiores), iniciando-se assim a fase de cumprimento de sentença, não obstante existam algumas outras situações que possam caracterizar processos baixados, a exemplo de processos remetidos para outros órgãos judiciais competentes, desde que vinculados a tribunais diferentes, encaminhados para as instâncias superiores ou arquivados definitivamente.

Para fins do CNJ, consideram-se processos baixados aqueles arquivados em definitivo. Processos estocados, por sua vez, são aqueles que estão aguardando o impulso processual, da Secretaria da Vara, do Ministério Público ou do Magistrado, quando este deve realizar um despacho ou proferir uma decisão.


Dados fornecidos pelo próprio CNJ indicam que o Poder Judiciário não superou a lógica da Lei 9.099/95. (Foto: Midia Ninja)

Referidos processos podem estar parados também por ausência de servidores na comarca, cumprindo esclarecer que os dados do CNJ não apresentam as razões específicas dos estoques desses processos, sendo as mais comuns as apresentadas aqui.

Os processos que versam sobre crimes que violam os direitos humanos de mulheres são vagarosos, quando não permanecem inertes até sua prescrição, o que cruelmente determina que o direito fundamental e constitucional à razoável duração do processo para brasileiras violentadas no âmbito familiar ou doméstico não passa de ficção.

Regionalizando os dados nacionais, no Maranhão, por exemplo, existem ao todo quatro varas especializadas e exclusivas para o enfrentamento da violência doméstica e/ou familiar contra as mulheres.

O Painel informa que só no Maranhão, nas varas especializadas e não especializadas, foram denunciados e recebidos 15.202 novos processos; as sentenças prolatadas foram 1.855; houve 20.002 processos baixados e 27.904 processos em estoque, que ainda aguardam algum tipo de diligência, ou seja, processos que estão, na prática, parados sem que a prestação jurisdicional tenha previsão para ocorrer, fato que gera impactos devastadores nas vítimas, quando não fatais.

Percebe-se que a quantidade de 1.855 sentenças é insignificante, se comparada ao número de processos baixados (20.002) e de processos que estão aguardando algum tipo de impulso processual (processos estocados: 27.904).

Reitere-se, portanto, que 27.904 são os processos com andamento moroso, sem andamento ou já prescritos, em detrimento de meras 1.855 sentenças, que podem incluir sentenças de absolvição por prescrição ou ainda suspensão condicional do processo, em casos de condenação.

Tais dados fornecidos pelo próprio CNJ indicam que o Poder Judiciário brasileiro não superou a lógica da Lei 9.099/95, que caracterizava os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher como delitos de menor potencial ofensivo.

Referida constatação significa que, para o Poder Judiciário brasileiro, a violação de direitos humanos de mulheres continua sendo um conflito sem importância. Isso mesmo considerando que as ações que chegam a juízo, em geral, são de ameaça de morte e de lesão corporal, como lesão à integridade física, deixando-se de atacar o contexto mais grave presente na base da pirâmide: a violência psicológica, considerada pelas vítimas como a mais gravosa e a que as destrói em vida mediante a eliminação de suas perspectivas existenciais (dano existencial).

Quando é prolatada uma sentença, uma das partes pode apelar ao Tribunal de Justiça competente, estacionando, assim, a execução da pena.

Segundo o Painel do CNJ, houve em 2021, 163 execuções no Maranhão, quando o sentenciado, em tese, deveria cumprir a pena, uma vez que foi expedida a guia de execução. No entanto, das mencionadas 163 sentenças executadas, apenas 48 agressores cumpriram a sua sentença de forma satisfativa; 53 processos foram baixados, por motivos não apontados pelo referido painel, podendo ter havido a prescrição da pretensão executiva. Em estoque estão 567 processos, aguardando para serem executados.

Um dos dados que chama a atenção, quando se considera o Maranhão, é que a taxa de congestionamento dos processos tabulados até 2021 na 1º Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar chega 69%, impedindo, dessa forma, o acesso à justiça justa. Eis, em números e no próprio Painel do CNJ, o principal fator que pode estar definindo a impunidade como resultado da prestação jurisdicional destinada às brasileiras: a prescrição da pretensão punitiva.

Os dados apresentados referentes ao Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, proporcionalmente, refletem a realidade de todos os tribunais do Brasil, conforme dados nacionais apresentados sobre violência doméstica e familiar. Tome-se, por exemplo, dois tribunais com o maior número de processos que versam sobre a violência doméstica e/ou familiar: o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).

Segundo o Painel do CNJ (2021), no TJSP existem ao todo 28 varas especializadas e exclusivas para o enfrentamento da violência doméstica e/ou familiar contra as mulheres. Observe-se que no TJSP, nas varas especializadas e não especializadas, foram denunciados e recebidos 115.939 novos processos; houve 35.293 sentenças prolatadas; 77.347 processos baixados e 258.605 processos em estoque, que ainda aguardam algum tipo de diligência, ou seja, processos que estão, na prática, parados e acumulados.

Com relação às execuções de sentenças, o TJSP apresentou os seguintes números: 60 novas execuções, 19 sentenças, 23 processos baixados e 130 em estoque. O número de sentenças na fase de execução pelo TJSP é estarrecedor, uma vez que no mesmo período foram sentenciados 35.605 processos. Ou seja, o número de sentenças na fase da execução foi inferior inclusive ao do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (TJMA), que já se registrou aqui ter sido baixíssimo: 163 execuções.

No TJRJ existem, ao todo, onze varas especializadas e exclusivas para o enfrentamento da violência doméstica e/ou familiar contra as mulheres. O Painel do CNJ informa que no TJRJ, nas varas especializadas e não especializadas, foram denunciados e recebidos 62.008 novos processos; prolatadas 71.929 sentenças; 80.941 processos baixados e 124.523 processos em estoque, que ainda aguardam algum tipo de diligência, ou seja, processos que estão, na prática, parados.

Com relação às execuções, o TJRJ apresentou os seguintes números: 258 novas execuções, 7.398 sentenças, 1.883 baixados e 875 em estoque.

Os quantitativos básicos sobre os processos nacionais, produzidos pelo CNJ, evidenciam que o Estado ainda enfrenta sérios obstáculos estruturais para proteção das brasileiras, bem como que ainda não considera os compromissos por ele assumidos perante a comunidade internacional, mais especificamente quanto à Convenção de Belém do Pará, entregando impunidade ao percentual ínfimo de mulheres que chegam a ajuizar ações no Sistema de Justiça Nacional, o que explica o empoderamento de agressores e a crescente taxa de feminicídios.

Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) vem apreciando, ainda em estágio inicial, o caso Artenira v. Brasil, no qual se discute exatamente as questões estruturais que, no âmbito do Poder Judiciário, constituem obstáculos à prestação de Justiça às vítimas mulheres que buscam seus direitos, com comprometimento de seus projetos existenciais, em tempo razoável, tal como garantido pela Constituição Federal de 1988.

O caso, ainda em estágio de admissibilidade perante a Comissão, reafirma a relevância dos dados acima analisados, uma vez que projetam verdadeiro fator estrutural que gera a inefetividade da Lei Maria da Penha, também resultante de caso apresentado à CIDH.

Artenira da Silva e Silva é professora e pesquisadora em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), pós-doutora em Psicologia e pós-doutora em Direitos Humanos.

Cláudio Guida é advogado criminalista, psicólogo e historiador. Mestre em Educação e mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMA.

Patrícia Tuma Martins Bertolin é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo, professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie e líder do Grupo de Pesquisa (CNPq) Mulher, Sociedade e Direitos Humanos.

Flávio de Leão Bastos Pereira é pós-doutorando em Direitos Humanos, doutor em Direito Político e Econômico pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor em Direitos Humanos e em Direito Internacional na Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado em Cortes Internacionais.

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