Por Soraya Misleh.
Neste ano, completam-se 70 anos da Nakba (catástrofe) palestina, cujas consequências seguem presentes na vida de milhões de famílias sob ocupação, colonização e apartheid, na diáspora ou em campos de refugiados.
O termo árabe Nakba é utilizado para designar a criação unilateral do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948, em 78% do território histórico da Palestina. Como resultado, foram expulsos aproximadamente 800 mil palestinos de suas terras e destruídas cerca de 500 aldeias – o que equivalia à época a 2/3 dos habitantes árabes nativos. A sociedade foi inteiramente fragmentada e a paisagem, transformada. Sob os olhos do mundo e cumplicidade silenciosa ou direta, a partir de limpeza étnica deliberada, deu-se origem à mais longa situação de refúgio da era contemporânea. Atualmente são 5 milhões vivendo em campos de refugiados no mundo árabe, além de milhares na diáspora.
A Nakba é resultado da implementação do projeto sionista – que surgiu em fins do século XIX, cujo jornalista áustro-húngaro Theodor Herzl é considerado o idealizador. Esse movimento político visava constituir um estado homogêneo, exclusivamente judeu, na Palestina.
Sob esse horizonte, Herzl publicou “O Estado judeu” em 1896, em que apresentava as bases de tal projeto. Não sugeriu na publicação exclusivamente a Palestina para sua criação. Em seu livro, coloca a questão: “Devemos preferir a Palestina ou Argentina?.” Sua resposta é que a “Sociedade (dos Judeus) aceitará o que lhe derem, tendo em consideração as manifestações da opinião pública a este respeito”. Na sua análise, nos dois locais houve experiências bem-sucedidas de “colonização judaica”. Em 1897, durante o I Congresso Sionista realizado na Basileia, Suíça, que reuniu 200 delegados do Leste da Europa, a Palestina acabou por ser escolhida: “Esse nome por si só seria um toque de reunir poderosamente empolgante para o nosso povo. Para a Europa, constituiríamos aí um pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a barbárie. Ficaríamos como Estado neutro, em relações constantes com toda a Europa, que deveria garantir a nossa existência”, descreve Herzl em “O estado judeu”.
“Pai” do sionismo político, ele empreendeu esforços para obter o apoio das elites judaicas e governantes europeus a tal projeto. O pressuposto era que o movimento alcançaria seu intento por meio de aliança com a grande potência dominante do momento, como salvaguarda de seus interesses na região – no caso a Grã-Bretanha, pós Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Sinalização dada a partir da Declaração Balfour, emitida em 2 de novembro de 1917, em que a Inglaterra se declarava favorável à constituição de um lar nacional judeu em terras palestinas.
“Transferência” populacional
No projeto sionista de “conquista da terra e do trabalho”, esse apoio foi determinante. Havia dois movimentos nesse sentido, que implicavam “transferência” populacional: a imigração para a Palestina de judeus da Europa, com fins de colonização, simultaneamente à expulsão dos habitantes árabes nativos. O objetivo era transformar a demografia local, rumo à constituição do Estado judeu. Nessa direção, a limpeza étnica era uma necessidade para os sionistas, como se demonstraria: mesmo após várias ondas de imigração, em 1948 menos de 30% da população na Palestina era de origem judaica.
Em seu livro intitulado “Expulsões dos palestinos: O conceito de ‘transferência’ no pensamento político sionista – 1882-1948” (na tradução livre do inglês para o português), o historiador palestino Nur Masalha apresenta uma série de citações de lideranças sionistas que demonstram a predominância da ideia de “transferência voluntária ou compulsória” da população árabe local desde cedo – um eufemismo para a limpeza étnica pretendida. “Theodor Herzl forneceu uma referência prévia à transferência mesmo antes de delinear sua teoria de renascimento sionista em seu Judenstaat (‘O estado judeu’)”, aponta na obra.
Ainda de acordo com Masalha, Israel Zangwill – criador do lema “Uma terra sem povo para um povo sem terra”, propaganda ideológica sionista que servia para justificar ao mundo a transferência – apresentou a remoção de árabes da Palestina como pré-condição para a realização do projeto sionista.
Plano Dalet
Assim, segundo o historiador israelense Ilan Pappé em “A limpeza étnica da Palestina” (Editora Sundermann), foram traçados planos com o objetivo de preparar as forças paramilitares sionistas para as ofensivas nas áreas rurais e urbanas. Os planos foram: A (esboçado por Elimelech Avnir, comandante da Haganah em Tel Aviv, a pedido de Ben Gurion em 1937); B (concebido em 1946); C (uma fusão de ambos); e, por fim, D (Dalet).
Este último selou o destino dos palestinos. Conforme escreve Pappé, “independentemente de se esses palestinos decidiam colaborar ou se opor ao Estado judeu, o Plano Dalet propunha sua expulsão de forma sistemática e total de sua terra”. Derradeiro, e o mais agressivo, este foi finalizado no dia em 10 de março de 1948, em reunião das lideranças sionistas no local que se convertera no quartel-general da Haganah, a Casa Vermelha em Tel Aviv – convertida depois em capital de Israel. Continha mapas indicando por onde os grupos paramilitares atacariam cada aldeia, como seriam essas incursões, a partir das informações de cada vila, mapeadas nos anos 1940. O Plano Dalet foi colocado em operação pelas organizações paramilitares Stern Gang, Irgun e Haganah – que recebiam armas de Stálin via Tchecoslováquia, enquanto os árabes estavam submetidos a embargo militar britânico. De todo modo, como aponta Pappé, “o mundo árabe, os seus líderes e sociedades juraram salvar a Palestina. Os políticos não estavam propriamente a ser sinceros; é provável que os soldados e seus comandantes tivessem um empenho mais genuíno no salvamento da Palestina”.
Por seu turno, bem armada e treinada, a tropa de elite da Haganah, Palmach, passou de 700 membros em 1941 para 7 mil em 1948. Mais tarde, as organizações paramilitares se fundiram para constituir as Forças de Defesa de Israel.
Cada brigada, como descreve Pappé, “recebeu uma lista das aldeias que deveria ocupar. A maioria estava destinada à destruição, e somente em casos excepcionais os soldados receberam ordens para deixá-las intactas”.
Impulsionado pela recomendação feita pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 29 de novembro de 1947 de partilha da Palestina em um estado árabe e um judeu, o deslocamento de palestinos se expandiu significativamente. Relatos e documentos dão conta das táticas utilizadas pelos grupos paramilitares sionistas. De posse das informações de cada local, enquanto em boa parte das aldeias há indicações de que a estratégia era atacar deixando-se uma única saída para os habitantes saírem rumo a países árabes vizinhos, em outras, cercava-se dos quatro lados, não havendo como escapar. Nessas, os massacres e atrocidades são descritos por historiadores como Ilan Pappé. Serviram de propaganda para expulsar os palestinos que viviam em aldeias vizinhas.
Os britânicos permaneceram na Palestina até 15 de maio de 1948. Assim que a Inglaterra partiu, os Estados Unidos reconheceram o Estado de Israel. Dois dias depois, foi a vez de a União Soviética fazê-lo. Na sequência, mais países deram o mesmo passo. As consequências para os palestinos não foram levadas em conta. E embora houvesse dezenas de observadores da ONU, conforme Pappé, eles nada fizeram a respeito. Exceção ao emissário Conde Folke Bernadotte, que propôs a revisão da divisão do país em duas partes e o retorno incondicional dos refugiados palestinos. Tendo chegado à Palestina em 20 de maio de 1948, foi assassinado por “terroristas judeus” em setembro do mesmo ano, “quando repetiu sua recomendação no informe final que apresentou à ONU”.
Ao final, foram três fases da limpeza étnica. A primeira foi inaugurada em dezembro de 1947, dias após a partilha recomendada pela ONU, e se prolongou até maio de 1948. A segunda, entre esse mês e janeiro de 1949, incluiu bombardeios aéreos indiscriminados e disparo de canhões em bairros com populações mistas. Durante essa etapa, foram assinadas duas tréguas e, ao final, um armistício entre os exércitos árabes e Israel. A terceira fase do Plano Dalet se prolongou até 1954. Antes, contudo, já haviam sido destruídas centenas de aldeias.
Em 1967, Israel ocupou militarmente o restante da Palestina – Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental –, o que culminou em mais milhares de refugiados. Desde então aprofunda-se o regime institucionalizado de apartheid, a colonização e ocupação.
Os jovens não esquecerão
Muitos jovens e crianças conhecem a terra onde remontam suas raízes apenas pelos olhos de seus pais ou avós – testemunhas da Nakba, hoje com aproximadamente 80 anos de idade ou mais. Não obstante mantêm vivo o desejo de retornar e a identidade palestina. Crianças nos campos de refugiados não titubeiam: “Somos palestinos, vamos voltar.” Desafiam o projeto sionista e contradizem o primeiro premiê israelense, David Ben-Gurion, que afirmara: “Os velhos morrerão, os jovens esquecerão.” Sabem que seu amanhã é a Palestina livre.
Crianças e idosos alimentam esse sentimento. Aos mais velhos, até o sonho de morrerem em suas terras é negado. Mas eles resistem e perpetuam esse sentimento ao compartilharem suas memórias coletivas. Como expressou em 2011 um dos sobreviventes da Nakba, Tawfiq Abder Hahim, palestino refugiado no campo de Baqaa, na Jordânia: “Um dia na minha aldeia vale por tudo. Nos deixem em casa e Deus vai premiar vocês. Não queremos nada de vocês. A tragédia palestina não foi provocada pelo povo palestino, a responsabilidade é de toda a humanidade. Todo mundo tem que ser julgado por esse crime, esse povo tem uma história, sua cultura compõe a da humanidade. É a terra dos mensageiros, sagrada, dos escritos. A humanidade tem que ser julgada por esse crime, por nos colocar como objetos numa estante. Sofremos muito, mesmo aqueles que saíram, se educaram, enriqueceram, viveram em outra sociedade, têm a alma palestina. É a terra dos nossos avós, nossos pais morreram com um grande vazio. Quem vai devolver o orgulho vazio de nossos pais? Minha terra, minha terra… Se me derem todo o mundo, não aceito, só a minha terra… Saímos há 63 anos, três irmãos, e há duas semanas enterramos um deles, o do meio. O último tinha uma casa boa na região de Amman (Jordânia), mas o olhar dele seguia a Palestina. Conheci um sheik aqui em Baqaa que não se sentava entre as pessoas senão com o rosto virado para a Palestina. Morreu, e com ele seu sonho. (…) A Palestina é um nome e um corpo, uma coisa amável que jamais se esquece. A Palestina é diferente, se eu usar o mesmo forno em outro lugar, o gosto é diferente. A Palestina é sagrada. Tudo na Palestina é lindo.”