A captura do Estado brasileiro pelo rentismo. Por Carlos de Assis e Paulo Lindesay

Grande parte das reformas administrativas realizadas no âmbito da União desde a ditadura, e reforçadas por iniciativas posteriores dos governos neoliberais, visaram principalmente à redução de custos com o funcionalismo, e não com a melhora do serviço público.

Andrii Yalanskyi/GettyImages

Por Carlos de Assis e Paulo Lindesay.

A captura do Estado nacional brasileiro pelo rentismo não é um projeto recente, nem isolado. Remonta aos governos militares, tendo sido acentuada, contraditoriamente, após a Constituição de 1988. Seu principal instrumento foi a construção de uma imensa dívida pública que, a partir de determinado momento, sob efeito da correção monetária e cambial, não teve contrapartida em investimentos reais na economia. Essa dívida implica um pagamento anual de juros, amortização e correção  que deixa estreita margem para despesas públicas de interesse do povo.

Esse processo se refletiu principalmente nos programas de desestatização, privatização e precarização dos serviços públicos, paralelamente ao  esmagamento pelas despesas financeiras do orçamento primário discricionário da União. Isso implica sucessivos cortes nesse orçamento, a fim de sustentar o serviço da dívida pública, que não tem limites desde que foi introduzida na Carta Magna um dispositivo fraudulento em seu artigo 166, que indicaremos adiante.

Assim, os ajustes fiscais sucessivos para pagamento do serviço da Dívida Pública abocanham, em média, cerca de metade do fundo público federal, em detrimento de despesas primárias extremamente importantes para a população. Nestas se incluem despesas com funcionalismo, saúde, educação, saneamento básico, construção de moradias para pobres e, no atual momento de desastres climáticos extremos, os prejuízos causados pelas terríveis enchentes e queimadas que temos visto em todo o território brasileiro.

Além dos ajustes anuais para equilibrar o orçamento primário, com cortes, aos níveis exigidos para sustentar o serviço da Dívida Pública – que não podem ser cortados -, o “mercado financeiro” exige,  através da mídia a ele subordinada, ajustes estruturais que tornam ainda mais precárias as condições dos serviços públicos. É o caso de terceirizações irrestritas nas áreas fins do Estado, contratos com organizações sociais (OS) e consultorias
privadas e contratações precárias de servidores em todas as esferas de governo.

Chega-se ao absurdo de desobrigar os entes federados de admitirem servidores públicos pelo regime estatutário da lei 8112/1990. Agora, caminha-se em direção à criação de fundações públicas de direito privado, com gestão privada, que poderão se alastrar por grande parte dos órgãos públicos, executando funções específicas de Estado. Com isso, tende a piorar a qualidade de prestação dos serviços públicos, pois se desmonta a maior parte das carreiras dos servidores, enfraquecendo as relações estáveis e garantias de empregos, inclusive dos concursados.

Tudo isso, detalhado mais adiante, está centrado no objetivo de desidratação das despesas públicas primárias, onde se contabilizam  o Estado Social brasileiro, incluindo os serviços públicos, em favor do orçamento financeiro. Além disso, o governo liquida os valores do orçamento federal primário, mas não os executa em sua totalidade. O superávit daí resultante é também destinado ao  pagamento da amortização da Dívida Pública. Dessa forma,  o Estado fica na posição apenas de subsidiário (financiador) das políticas públicas, não mais de seu executor pleno.

Com o imenso valor do serviço da Dívida Pública, o Estado está forçado a garantir lucros crescentes e vitalícios, através do mercado financeiro especulativo, ao grande capital rentista e às grandes corporações industriais, comerciais e do agronegócio, beneficiárias inclusive da chamada “moeda financeira”. Esta última é produto da Selic, criada ainda na ditadura, com a faculdade de garantir rentabilidade diária no over aos especuladores, bastando que estes deixem nos bancos suas sobras de caixa  de um dia para o outro.

Utilizada pelo Banco Central, de forma imprópria, para supostamente controlar a inflação, a Selic de fato antecipa a inflação futura com 45 dias de antecedência, quando é anunciada ao mercado, regularmente, nesse intervalo de tempo. Além disso, devido a sua rentabilidade diária, e sua assimilação a uma taxa de juros elevada, ela promove a migração do capital produtivo para o capital rentista no over, refletindo-se na redução da produção e da oferta e contribuindo igualmente dessa forma para o processo inflacionário.

É ainda a Selic, equivalente, em suas operações no mercado aberto a uma taxa de juros,  o principal instrumento para o aumento contínuo da Dívida Pública, pois ela se tornou o principal indexador do sistema financeiro e da economia em geral. Nessa condição, recai também sobre o estoque da Dívida.  O resultado é um montante de serviço da Dívida Pública que, só de juros, ultrapassa  R$ 1 trilhão anuais.

Entretanto, vamos recuar até o Governo Vargas, no período do Estado Novo, para examinar  como evoluiu um Estado indiscutivelmente progressista para o Estado de serviços públicos degradados, como o atual, com servidores em situações de trabalho cada vez mais negativas e desestimulantes, e que acumulou, progressivamente, a partir da ditadura,  a gigantesca Dívida Pública que estamos carregando ainda hoje.

O objetivo explícito de Vargas era modernizar o Estado e a economia brasileira, em contraponto com as oligarquias rurais que funcionavam como uma espécie de estados independentes. Sua primeira iniciativa nesse sentido foi criar, em 1938, o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), com o objetivo de acelerar a reforma administrativa do Estado e impedir sua captura pelas oligarquias rurais.

Na busca de modelos externos para orientar a organização do DASP, Vargas promoveu intercâmbios e enviou bolsistas a universidades do exterior, principalmente norte-americanas, mediante a promulgação do Decreto-lei n 0 776, que tomou o nome de Missão de Estudo no Estrangeiro, de autoria de Luís Simões Lopes. Os candidatos tinham auxílios para afastamento do trabalho e estudos oferecidos por uma instituição privada, Institute of International Education (IIE), de Nova York, que distribuía bolsas em parceria com o governo brasileiro, a partir de  seleção do DASP.

Portanto, a primeira tentativa de reforma administrativa do Estado estava totalmente baseada no  modelo administrativo dos Estados Unidos. Criaram-se,  ainda, órgãos nos estados, conhecidos como “daspinhos”, nos quais os diretores entravam permanentemente em contato com o presidente por meio de interventores da ditadura Vargas. Contudo, o DASP foi um departamento que conseguiu construir uma tecnocracia, ou uma elite técnica, cujas ações desagradaram as antigas oligarquias. Mas só seria  extinto em 1986, um  ano após o final da ditadura e o início da redemocratização política do Brasil, em 1985.

Em 1952, o governo Getúlio Vargas havia aprovado  a lei 1711, instituindo o Estatuto dos Funcionários Públicos Federais, pelo qual parte dos servidores era admitida por concurso pelo DASP. Esse estatuto perdurou até 1990. Em dezembro de 1990, foi sancionada a lei 8112, em substituição à lei  1711, que instituiu o novo Estatuto dos Servidores Públicos Federais. Denominado Regime Jurídico Único (RJU), foi aprovado pelo governo Collor de Melo, e subsiste até hoje. O novo Regime estatutário veio para substituir as admissões dos servidores públicos  pós-Constituição Federal de 1988 por concursos públicos. Até 10 de dezembro de 1990, esses servidores, na grande maioria, eram admitidos no regime celetista, desde a década de 70, o que possibilitou  o virtual loteamento do Estado entre políticos e pessoas influentes junto aos governos.

Em 1967, com a promulgação da Constituição Federal da ditadura,  havia sido editado o Decreto-lei 200, a primeira reforma administrativa do governo militar, nunca revogado. Primeiro marco legal na tentativa de implantar a Administração Gerencial no Estado brasileiro, pautou  o fortalecimento do “Sistema de Mérito”, elaborando as diretrizes do “Plano de Classificação de Cargos (PCC)”, e viabilizando a flexibilização das relações de trabalho no setor público federal.

Com isso, permitiu-se a aplicação de dois regimes de trabalho: estatutário e CLT. É esse Decreto que o Ministério da Gestão e Informatização (MGI) e a Advocacia Geral da União (AGU) estão estudando para propor, neste ano, o novo projeto de lei com as diretrizes da reforma administrativa infraconstitucional.

No início da década de 70 havia sido aprovada a lei 5.645/1970, estabelecendo as diretrizes para a classificação de cargos do Serviço Civil da União e das autarquias federais. Quatro anos depois, em 1974, outra lei importante, 6.185, foi aprovada e sancionada pelo então presidente, general  Ernesto Geisel. Ela avança em direção à concretização da reforma administrativa do governo militar idealizada a partir da promulgação da Constituição Federal e do Decreto-lei 200, de 1967.

Esses dois instrumentos legais possibilitaram que  grande parte dos servidores públicos, na década de 70, fosse admitida pelo regime da CLT. A menor parte continuou admitida por concursos no regime estatutário da lei 1711/1952. São os setores reconhecidos como inerentes ao Estado, isto é, com atividades que somente o Estado executa, sem correlação
com o mercado privado. Os demais servidores estatutários, regidos pela lei  1711/1952, que não migraram para as novas carreiras da CLT, ficaram em Quadro em Extinção ( QPEX).

Pela lei 5.645/1970, foi criado o Plano de Classificação de Cargos (PCC) no contexto da reforma  administrativa do final da década de 1960, nunca revogado. Baseou-se no Decreto-lei 200, de 1967. A lei consistia em estruturar os cargos civis da União,  chamados, na prática,  de Classes, em Categorias Funcionais, que, por sua vez, eram reunidas em 10 Grupos: I – Direção e Assessoramento Superior; II – Pesquisa Científica e Tecnológica; III – Diplomacia; IV – Magistério; V – Polícia Federal; VI – Tributação, Arrecadação e Fiscalização; VII – Artesanato; VIII – Serviços Auxiliares; IX– Outras atividades de nível superior; e X – Outras atividades de nível médio.

Como se pode observar, o tratamento privilegiado dado a alguns setores do funcionalismo não nasce do acaso ou da preferência de governos de plantão no Palácio do Planalto, mas é baseado em um arcabouço legal projetado pelos neoliberais, nunca revogado. São eles que definem quais os setores dos órgãos públicos que são considerados estratégicos para os governos e o mercado financeiro. A esses setores se dá tudo, aos demais, as migalhas.

Em 1974, o governo do general Ernesto Geisel aprovou a lei 6185, nunca revogada, com base no Decreto Lei 200 e como base para mais uma tentativa de reforma administrativa e modernização do setor público.  Os servidores públicos federais foram divididos em dois grupos: os admitidos por concursos públicos pelo regime estatutário, com atividades inerentes ao Estado como Poder Público, sem correspondência no setor privado, e os demais servidores federais, admitidos para cargos integrantes do Plano de Classificação no regime da CLT.

Portanto, as atividades inerentes ao Estado não alcançam todas as atividades do Estado brasileiro. Apenas aquelas exclusivas ou típicas dele e que são classificadas como essenciais à execução do Poder estatal. Estão definidas no arcabouço legal, nunca revogado, no projeto do MARE, a Reforma do Estado dos anos 90, capitaneada pelo ex-ministro Bresser Pereira e baseada no senso comum dos servidores e de muitas representações sindicais.

Grande parte das reformas administrativas realizadas no âmbito da União desde a ditadura, e reforçadas por iniciativas posteriores dos governos neoliberais, visaram principalmente à redução de custos com o funcionalismo, e não com a melhora do serviço público. Dessa forma, pretendeu-se, sobretudo, abrir espaço para cortes nas despesas do orçamento primário em favor do orçamento financeiro. Este, atualmente, consome só de juros para o pagamento da Dívida Pública Federal cerca de R$ 1 trilhão em favor dos rentistas no mercado financeiro especulativo.

A história da reforma administrativa do Estado não finaliza aqui. Nos próximos  dois artigos
daremos continuidade a ela mostrando os mecanismos de destruição do  Estado Social brasileiro e da infraestrutura econômica pública do País, representados pelas empresas públicas e estatais que acabaram sendo privatizadas ou sucateadas,  em detrimento da qualidade do serviço público e em favor do rentismo parasitário.

Entretanto, antes mesmo de concluirmos a primeira matéria desta série, fomos surpreendidos pela decisão absolutamente imoral do presidente do Senado, David Alcolumbre, de mudar mandatoriamente para 4/3 a jornada dos servidores da Casa, oferecendo-lhes, além disso, vantagens financeiras totalmente desalinhadas com as do resto do funcionalismo público. A Câmara se prepara para seguir atrás, numa verdadeira provocação contra a  maioria dos trabalhadores do País. Contudo, provando sua traição ao interesse público, o Congresso sequer havia aprovado  o  orçamento da União para 2025, o que deveria ter sido feito até dezembro de 2024.

Isso não aconteceu porque os parlamentares, na sua grande maioria, chantagearam o governo Lula em represália à atitude do ministro do STF, Flávio Dino, que havia suspendido o pagamento das Emendas Parlamentares. O próprio relator da Proposta de Lei Orçamentária para este ano, o Senador Ângelo Coronel, do PSD/BA, afirmou em vídeo que o Congresso Nacional somente a aprovaria o após a liberação das Emendas, um verdadeiro escândalo!!!

Essa atitude política do relator e dos parlamentares paralisou a estrutura de Estado. Até a presente data, o governo federal executou apenas cerca de R$ 1,233 trilhão das despesas
orçamentárias. Desse total, cerca de R$ 851 bilhões, ou 69%,  foram executados em favor do serviço da Dívida Pública Federal (juros + amortização), um privilégio para os rentistas. Além disso foram liberados por Medida Provisória cerca de R$ 4 bilhões para o setor do agro, outro setor privilegiado. De outro lado, a Medida Provisória 1286/2024, que garantiu a retroatividade dos reajustes salariais dos servidores, não teve tratamento prioritário. Depende da aprovação da LOA.

Foi aproveitando as vésperas do carnaval, quando o povo estava totalmente voltado para a folia futura, que o Senador Alcolumbre aprovou por baixo dos panos o pacotão de privilégios na Casa:  aumentos dos salários dos senadores, folgas extras, reajuste de 65% na cota parlamentar, com impacto fiscal de R$ 5 milhões anuais, e escala 4 X 3, que representará uma carga horária menor para o trabalho no Senado. Para a maioria da classe trabalhadora, os parlamentares, cinicamente, querem aprovar a escala 6X1, o que significará uma superexploração dela. Mudam as peças, mas o modus operandi continua o mesmo: garantir o privilégio do grande capital financeiro rentistas e privilégios e benefícios para as  classe política e empresarial. Enquanto isso, a população brasileira entra em 2025 com o custo de vida nas alturas!

Espera-se que a jornada dos servidores federais contra esses abusos, que deve começar hoje no Rio e em outras cidades e estender-se até sexta-feira, dê frutos e force o presidente do Senado a recuar de sua decisão temerária. Esta agrava os desequilíbrios entre as carreiras superiores e inferiores da administração pública,  presentes principalmente no Legislativo e no Judiciário, onde já se concentram os maiores privilégios das categorias superiores, enquanto, para os que estão abaixo delas restam condições salariais e de trabalho  vergonhosas.

Jornalista e economista, doutor em Engenharia da Produção pela UFRJ.
Paulo Lindesay, Coordenador da Auditoria Cidadã/Núcleo RJ e Diretor da Assibge-SN.

Diretor da
ASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo Sindical Canabarro/Coordenador da Auditoria
Cidadã da Dívida Núcleo RJ.

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