A campanha milionária da CIA contra Allende

A CIA gastou 11 milhões de dólares no Chile em operações secretas para “desestabilizar” o governo de Allende e “precipitar sua queda”. Para isso, financiou o jornal El Mercurio, além de se infiltrar no exército e no Partido Democrata-Cristão.

O escândalo da CIA no Chile completa 50 anos

Washington, DC, 9 de setembro de 2024 – Há cinquenta anos, quando o New York Times se preparava para publicar um artigo importante sobre as operações secretas da CIA no Chile, o arquiteto dessas operações, Henry Kissinger, enganou o presidente Gerald Ford sobre os esforços clandestinos dos EUA para minar o governo eleito do líder do Partido Socialista Salvador Allende, segundo documentos divulgados em 9 de setembro pelo Arquivo de Segurança Nacional. As operações secretas foram “planejadas para manter o processo democrático em andamento”, informou Kissinger a Ford no Salão Oval, dois dias antes da publicação do artigo, que faz cinquenta anos esta semana. De acordo com Kissinger, “não houve tentativa de golpe”.

“Eu vi a história do Chile”, disse Ford a Kissinger em 9 de setembro de 1974. “Há alguma repercussão?” Kissinger respondeu: “Na verdade, não”.

Na verdade, o artigo de primeira página escrito pelo jornalista de investigação Seymour Hersh – “O chefe da CIA diz à Câmara dos Deputados que houve uma campanha de US$ 8 milhões contra Allende em 1970-1973” – deu início ao maior escândalo de operações secretas que a comunidade de inteligência já havia vivenciado. O artigo de Hersh de 8 de setembro de 1974 levou diretamente à formação de um comitê especial do Senado, presidido pelo senador Frank Church, que conduziu a primeira grande investigação sobre as ações secretas da CIA no Chile e em outros países e foi o primeiro órgão do Congresso a avaliar o papel das operações secretas e clandestinas em uma sociedade democrática. A repercussão política forçou o presidente Ford a reconhecer publicamente as operações da CIA no Chile, embora negasse veementemente que elas tivessem algo a ver com a fomentação de um golpe de Estado. Posteriormente, o advogado do presidente na Casa Branca informou a Ford que sua declaração “não era totalmente consistente com os fatos porque ele não havia recebido todos os fatos”.

Em uma coletiva de imprensa em 16 de setembro, Gerald Ford tornou-se o primeiro presidente a reconhecer e defender publicamente as operações secretas da CIA, que, segundo ele, limitavam-se a proteger as instituições democráticas do Chile contra a ameaça de Allende. Ele afirmou que as ações da CIA eram “do melhor interesse do povo do Chile e, certamente, do nosso melhor interesse”. (minuto 11:55 com a declaração de Ford no vídeo acima).

A investigação do Senado, que também revelou planos da CIA para assassinar líderes estrangeiros, e uma investigação semelhante na Câmara dos Deputados levaram a uma legislação para melhorar as verificações e o equilíbrio das operações da CIA e limitar a capacidade dos futuros presidentes de “negar plausivelmente” programas de ação secreta no exterior. Os documentos da Casa Branca revelam o profundo desânimo expressado por Ford e Kissinger diante da perspectiva de reduzir as operações secretas. “Precisamos de uma CIA e precisamos de operações secretas”, disse Ford ao seu gabinete nove dias após a publicação do artigo do Times. O artigo e uma série de artigos subsequentes de Hersh sobre a CIA, como Kissinger reconheceu mais tarde em suas memórias, “tiveram o efeito de um fósforo aceso em um tanque de gasolina”.

O VAZAMENTO QUE MUDOU A HISTÓRIA

A história de Hersh foi baseada em um resumo do testemunho secreto do diretor da CIA, William Colby, e de um lendário funcionário da CIA, David Atlee Phillips, que apresentou uma visão geral das operações secretas contra Allende no Chile durante uma sessão executiva do Comitê de Serviços Armados da Câmara em 22 de abril de 1974. De acordo com o resumo, Colby informou ao Comitê que, entre 1962 e 1973, o ultrassecreto “Comitê 40”, que supervisionava as operações secretas, havia autorizado a CIA a gastar US$ 11 milhões no Chile, incluindo US$ 8 milhões para “desestabilizar” o governo de Allende e “precipitar sua queda”. O resumo afirmava que “as atividades da agência eram vistas como um protótipo, ou experimento de laboratório, para testar as técnicas de investimento financeiro pesado em esforços para desacreditar e derrubar um governo”.

O resumo foi escrito por um congressista liberal de Massachusetts, Michael J. Harrington, que soube do testemunho TOP SECRET de Colby e solicitou permissão especial para analisá-lo. Harrington leu a transcrição de 48 páginas da audiência duas vezes (em 5 e 12 de junho de 1974) e percebeu que o testemunho de Colby contradizia claramente as negações anteriores de Kissinger e dos altos funcionários da CIA (durante audiências anteriores sobre as operações da CIA e da ITT no Chile) de que havia esforços secretos para minar Allende.

Harrington compartilhou sua preocupação de que os agentes da CIA tivessem cometido perjúrio com o diretor da equipe do senador Frank Church, Jerome Levinson. Em suas memórias não publicadas, Levinson lembrou que Harrington “me perguntou o que eu achava que ele deveria fazer”. Levinson recomendou que Harrington escrevesse uma carta ao presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, senador William Fulbright, solicitando uma investigação completa sobre o papel da CIA no Chile. Em 18 de julho de 1974, Harrington enviou uma longa carta a Fulbright, fornecendo um resumo do testemunho secreto da CIA e concluindo que o Congresso e o povo estadunidense “têm o direito de saber o que foi feito em nosso nome no Chile”.

Depois que ficou claro que Fulbright não estava disposto a ordenar uma grande investigação sobre o papel da CIA no Chile, Levinson decidiu dar o passo ousado de chamar a atenção para o testemunho ainda secreto de Colby: ele vazou a carta de Harrington para Seymour Hersh. No início de setembro, depois de almoçar com Hersh no Jean-Pierre’s, um elegante restaurante de Washington DC, Levinson deu a Hersh uma cópia da carta de Harrington. Em 5 de setembro de 1974, Hersh começou a ligar para os funcionários do Departamento de Estado para pedir comentários sobre o furo de reportagem que estava por vir, dando início a uma enxurrada de reuniões e relatórios na Casa Branca sobre as informações que Hersh poderia ter obtido. Em 8 de setembro, o Times publicou a história na primeira página de seu jornal de domingo, o que gerou um grande escândalo e, por fim, resultou na acusação do ex-diretor da CIA, Richard Helms, por mentir ao Congresso.

REAÇÃO DOS AGENTES CHILENOS DA CIA

O vazamento do testemunho de Colby forçou a CIA a entrar em contato urgente com seus agentes chilenos para determinar as repercussões das revelações de Hersh em sua rede de agentes e informantes. Em um relatório secreto revelador, quatro dias após a publicação do artigo do Times, a estação da CIA transmitiu as reações de vários agentes chilenos – identificados por nomes de código como FUBARGAIN, FUPOCKET e FUBRIG – que estavam infiltrados nas forças armadas chilenas, no partido político chileno Democrata-Cristão e no jornal El Mercurio, que a CIA havia financiado como porta-voz da oposição ao governo de Salvador Allende. “Os seguintes agentes da Estação foram contatados, no período de 8 a 10 de setembro, em conexão com as revelações mencionadas”, informou a Estação de Santiago à sede da CIA.

O agente, de codinome “FUBRIG-2”, “recebeu a notícia com tranquilidade, mas estava muito preocupado com as implicações das tentativas de divulgação e expressou sua opinião de que o sistema em Washington deveria ser mudado para evitar tais vazamentos”, disse a CIA. “Ele ficou aliviado com o fato de El Mercurio não ter sido mencionado pelo nome.”

De acordo com esse telegrama, o agente dentro das forças armadas chilenas, FUBARGAIN-1, disse à CIA que “o general Pinochet não parecia muito chateado, mas [havia] comentado… que a revelação ‘parecia um absurdo’”. Mas o mesmo agente disse à CIA que outros oficiais militares chilenos mais jovens interpretaram o vazamento como uma tentativa deliberada de “prejudicar [a] Junta e lançar falsas dúvidas sobre sua independência e seu papel na queda de Allende”. “O resultado é que o corpo de oficiais chilenos está cada vez mais desnorteado e ressentido com os Estados Unidos, de acordo com essa fonte.”

DOCUMENTOS AINDA SECRETOS

Cinquenta anos após o surgimento do escândalo sobre as operações da CIA no Chile, o testemunho original de Colby perante o Comitê de Serviços Armados da Câmara permanece secreto, assim como a transcrição completa de 48 páginas da audiência fechada. No ano passado, o governo chileno solicitou oficialmente que o governo Biden desclassificasse esses registros como um gesto de “diplomacia de desclassificação” no 50º aniversário do golpe, mas a CIA não cooperou.

“No interesse da responsabilidade histórica, é imperativo que a CIA desclassifique o testemunho de Colby sobre o Chile, bem como outros documentos relevantes”, disse Peter Kornbluh, que dirige o Projeto de Documentação do Chile do Arquivo. Com a aproximação do 50º aniversário da formação da Comissão Especial do Senado para Estudar as Operações do Governo com Respeito às Atividades de Inteligência, em janeiro de 2025, o Arquivo também pediu aos líderes do Senado que comecem a divulgar os volumosos arquivos de investigação da Comissão sobre o Chile e outros países que foram alvo de operações secretas de mudança de regime.

“Meio século de sigilo em torno desses registros”, observou Kornbluh, ‘deve chegar ao fim’.

Publicado em National Security Archive

Tradução: TFG, para Desacato.info.

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