Por Carmen Susana Fava Tornquist.
Há duas bandeiras do Brasil na SC 401, rodovia que liga o centro de Florianópolis ao norte da ilha.
A primeira é a maior, imponente, içada em um enorme poste de ferro em frente a um dos grandes shoppings-centers da região. Ao seu redor, tudo é grande: megastores de luminárias, móveis, cerâmicas, acessórios -para a casa, para o carro, para o corpo-; roupas para esportes, decoração de interiores. Magazines de carros, nacionais e importados, ao estilo do freguês.. Na sombra desta bandeira, centenas de out doors, ampliando a lista das necessidades urgentes : pré vestibulares, sex shops, empresas de segurança privada, os novos condominios, os clubes de golf. Afinado com tamanha movimentação ao redor da rodovia, sintonizado com os novos tempos que chegam à cidade, as recentes liberações de novas construções e prédios mais pujantes ainda. Imagens de potência, força, liberdade. Ausência de limites. Nas Torres novas previstas, seguindo a tendência local, uma média de quatro vagas nas garagens, mais guaritas, câmeras internas e guardas. Um mundo infinito de compras e prazeres atravessando a cidade, considerada top em “qualidade de vida”. As elites que desfrutam disto que as vitrines descortinam, de fato, renovam seus pertences com notável freqüência: carros, casa, mesas, camas, colchões, louças, luzes. Quase não se vê por detrás dos anúncios e lojas as paisagens que supostamente motivam a vinda dos turistas em busca de belezas naturais, praias e tranqüilidade. Também não se vê neste trecho as montanhas de lixo (descartes) nem as fontes de água e de energia que sustentem a Ilha da Magia. Sente-se no ar a ausência de um projeto mais efetivo de saneamento, mas a s blindagens dos carros e os ares condicionados permitem deixar o problema em suspensão.
Alguns quilômetros mais adiante, perto da ESEC Carijós, surge uma outra paisagem, verdes se impondo no caminho, paisagem diversa daquela deixada atrás. O observador atento não deixará de perceber uma outra bandeira do Brasil. Igual a tantas outras: as mesmas cores, as mesmas, estrelas, a mesma consigna de Ordem e de Progresso. Plantada lá onde o milímetro da terra vale ouro, nas margens do Rio Ratones, ela descansa discreta, firmada em um pequeno bambu. Ao seu redor, dezenas de casinhas erguidas com os mesmos bambus, lonas, materiais usados, bricolagens diversas.
As primeiras moradas foram erguidas ainda antes do apagar das luzes de 2013, iniciando uma movimentação infindável de idas e vindas de trabalhadores, homens e mulheres, moradores de territórios invisíveis da cidade. Movimento freado pelas autoridades, que logo exigiram um basta, antevendo a provável adesão de outros tantos moradores da ilha. Vieram pedreiros, faxineiras, agricultores, vigilantes, artesãos, as professoras, os motoboys, eletricistas, padeiros. Terceirizados. E pescadores, “que mesmo gastando horas em ocupações sem sentido, mantém nas horas vagas o trabalho que ainda lhes confere gosto e identidade. Junto vieram os jovens e as crianças. Matogrossenses, pernambucanos, cearenses, gente do Piauí, famílias de Oeste, lageanos, gaúchos, paraneanses. Paraenses, também. E os kaigang irmãos na luta pela terra. Migrantes em busca de trabalhos precários e “oportunidades” que vão e que vem, com auxílio da fé, da família, de deus, e agora, da luta. E os “daqui mesmo”, nascidos e criados na Ilha desde gerações, hoje encurralados em territórios nos quais outrora, predominavam as terras comunais, o mar aberto, os campos soltos. Mistura de rural com urbano, de gente com natureza, esta é, sem dúvida, a novidade que surpreendente a cidade, explicitando a Floripa real.
Amarildo não é única ocupação da cidade. Há Contestado, há Palmares. Mas é a mais escancarada. E, por este escancaramento, paga um preço, alto, todo o dia, figurando nas mídias e falares locais como “feia, suja e malvada”, argumento que não se sustenta , pois as pessoas são belas, o lugar é lindo , limpo e cuidado, as famílias são de trabalhadores.
Amarildo é explícita demais para as mentes conservadoras da ilha-capital, insuportável a esta parte da cidade dividida, por mostrar o lado obscuro – imprescindível e profundamente injusto- das áreas de serviços que fazem, no entanto, cidade funcionar.
A mesma estrada, duas bandeiras, dois modos de vida, um só país.
No km 14 se encontra a bandeira que faltava no território da cidade.