A arte na guerra de ser mulher – Um salve às artistas

Apesar do pouco estudo, Carolina Maria de Jesus era uma mulher culta, inteligente e tinha consciência de classe. / Divulgação

Por Débora Garcia.

Sem nenhum exagero, o contexto de desigualdade social e os números alarmantes de violência praticada contra mulheres na sociedade brasileira ratificam que estamos em um estado de guerra social, na qual, somos as maiores vítimas.

Nesse contexto de contínua mobilização crítica da sociedade brasileira em torno dessa pauta, acredito que a arte assuma um papel fundamental para travar esses embates cotidianos e registrar que nossa luta é histórica.

A arte torna-se uma importante aliada no processo de construção do empoderamento feminino, da consciência étnica, de gênero e na desconstrução da cultura da violência contra a mulher, principalmente nas periferias, onde estão as mulheres mais vulneráveis, carentes de informações e redes de apoio.

Por isso, vou utilizar esse espaço para dar um salve para todas as mulheres que fizeram e fazem da sua arte um instrumento potencial de denúncia e resistência, em especial às artistas negras que ainda passam por processos estruturais de invisibilização das suas histórias de vidas, da sua produção artística e intelectual.

Na política, cito a filósofa e ativista Angela Davis, que alçou notoriedade mundial como integrante do partido Panteras Negras na década de 1970. Enfrentou um dos mais emblemáticos julgamentos da história dos Estados Unidos e tornou-se porta voz da luta pelos direitos civis dos negros e das mulheres, trazendo importantes contribuições conceituais sobre o feminismo negro. Sua principal obra, intitulada Mulheres, raça e classe, é considerada um clássico sobre a interseccionalidade.

Na literatura cito a escritora e intelectual francesa Simone de Beauvoir, que com o seu livro O segundo sexo, popularizou mundialmente o debate sobre o feminismo.

Acrescento à baila das escritoras brasileiras, a filósofa Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, importante ativista e uma das principais autoras do feminismo negro brasileiro. Bem como a filósofa Djamila Ribeiro que, a meu ver, traz a importante contribuição de popularizar a discussão sobre o feminismo negro no Brasil. Na literatura há Conceição Evaristo, e através desta, todas as escritoras que têm dado vez e voz às mulheres negras em suas obras.

Nas periferias da cidade de São Paulo, escritoras e poetisas têm tomado de assalto os espaços dos saraus literários e das batalhas de poesias, pontuando a condição da mulher em seus versos, performances e narrativas.

O fortalecimento do discurso feminino se reflete não somente na maior presença de mulheres nesse cenário, mas na criação de cenas nas quais são protagonistas. Assim cada vez mais mulheres têm se organizado em coletivos artísticos com um forte viés politico: Levante Mulher, Fala Guerreira, Sarau das Pretas, Slam das Minas, Mijiba, Pretas Peri, Sarau Alcova, Nós Mulheres da Periferia, Cia Capulanas de arte negra, dentre outros.

Na dança cito Renata Prado e a Cia Batekoo, que apresenta o corpo negro numa perspectiva libertária, como porta voz das questões de gênero, estética e politica.

Estes coletivos têm como pauta principal da sua atuação artística o universo feminino, o feminismo e a denúncia intransigente das diversas formas de violência às quais as mulheres diariamente são submetidas. Cabe destacar que esses trabalhos também pautam de maneira incisiva a questão do racismo, que potencializa as situações de exclusão e violência contra as mulheres negras.

Nas artes visuais é fundamental citar Frida Khalo, artista Mexicana cuja obra traz de forma visceral os questionamentos, a dor física e psicológica de uma mulher a frente de seu tempo.

No cenário nacional, imprescindível citar a obra de Rosana Paulino, pioneira ao abordar a representação e representatividade da mulher negra nas artes visuais. Ainda nessa seara, apresento a potência da artista Renata Felinto, que aborda, em suas telas e performances, o papel da mulher negra na sociedade com importante enfoque para a questão da maternidade.

Cito também a cineasta Renata Martins que, em sua série Empoderadas colocou nas telas corpos negros femininos como protagonistas de suas narrativas. E a cineasta carioca Yasmim Thayná, que roteirizou e dirigiu o filme KBELA, uma experiência cinematográfica sobre ser mulher e tornar-se negra, e que hoje é um nome promissor nas belas artes brasileira.

Na música, cito a sambista Alcione que, em 2007, gravou a música Maria da Penha na qual a personagem, amparada pela lei, rompe com uma relação violenta. Essa música fez com que muitas mulheres passassem a conhecer a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006. Em 2015 a cantora Elza Soares, que também já sofreu violência doméstica, lançou o álbum intitulado A Mulher do fim do mundo, um trabalho ácido onde aborda com veemência essa questão. Um verdadeiro desabafo por tantos anos de silenciamento.

Por fim, quero falar de Carolina Maria de Jesus, uma mulher que é central no meu processo de tornar-me negra e escritora.

Carolina Maria de Jesus tornou-se conhecida por relatar o seu drama pessoal em um livro intitulado Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, publicado em 1960. Em um contexto totalmente improvável, sendo uma mulher negra, favelada, autodidata e mãe de três crianças, Carolina publicou um livro-denúncia no qual revelou através de sua história de vida, a condição dos favelados no Brasil. Seu livro ficou mundialmente conhecido e Carolina realizou o sonho de comprar uma casa de alvenaria, fora da favela, com o dinheiro do livro.

Apesar do pouco estudo, Carolina era uma mulher culta, inteligente e tinha consciência de classe. Quando conheci sua obra, eu tinha 25 anos, acabava de conhecer os saraus literários e ainda me ambientava com toda essa novidade. Estava em processo de transição capilar e questionando-me se poderia eu, ser escritora. Quando imergi na vida e obra de Carolina, essa dúvida dizimou-se e eu compreendi que tinha algo a dizer.

Compreendi que a minha arte seria esse agente de transformação da minha vida e que, com esta, poderia contribuir para que outras mulheres negras encontrassem potencialidades em suas histórias de vida, por mais desacreditadas de fossem.

Esse breve panorama registra categoricamente, o quanto nós mulheres estamos nas trincheiras, nos fronts, aramadas de arte para enfrentar a guerra de ser mulher numa sociedade racista, machista e patriarcal.

Sabemos que essa guerra está longe do fim e que serão necessários muitos séculos para reverter o cenário atual. Mas através da arte registramos a nossa luta e contribuição para que as futuras gerações encontrem uma sociedade onde ser mulher não seja sinônimo de insegurança.

Débora Garcia é poetisa e gestora cultural. É idealizadora e artista no coletivo Sarau das Pretas.

Edição: Daniela Stefano

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