Por Ualid Rabah.
É notória a cada vez maior rejeição a Israel no mundo, o que se dá pela sua insistência em se fazer um Estado gangster, à margem de tudo que preconiza o Direito Internacional, característica mais visível em sua desobediência a todas as resoluções da ONU pertinentes à Palestina. Apesar disso tudo, este regime, já classificado por documentos oficiais recentes da ONU como de apartheid, bem como de ter cometido genocídio e limpeza étnica, segue impune e aumentando sua atividade criminosa na Palestina e contra os demais povos da região, e mesmo fora dela ao apoiar regimes extremistas ou treinar polícias e forças militares para reprimirem seus povos.
Isto só foi possível porque, por um lado, após a 2ª Guerra Mundial, conforme bem descreve o historiador israelense Ilan Pappé, hoje exilado devido às ameaças que sofreu em Israel por revelar com detalhes a limpeza étnica realizada na Palestina, o mundo preferiu calar ante os crimes dos euro-judeus que autoproclamaram-se estado e autodenominaram-se Israel. Em uma de suas conferências, em que reafirmou o quanto a limpeza étnica era metodicamente planejada pelos euro-judeus portadores da ideologia sionista, cujo “objetivo era o desaparecimento de um país inteiro”, afirmou sem rodeios: “Houve uma conspiração do silêncio (da Comunidade Internacional)… Todos receberam os relatórios do que aconteceu (a limpeza étnica em curso desde fevereiro de 1948) e tomam uma decisão política de não publicar esses relatórios… Ninguém no mundo ocidental queria publicar esta história. Lhes ocorreu uma ideia de que, poucos anos após o holocausto, não seria uma boa ideia dar essa imagem aos judeus: de assassinos, que expulsam pessoas de suas casas, ladrões, ocupantes e colonizadores.”.
Ou seja: aquela parcela de europeus que cometeram crimes de lesa humanidade contra outras parcelas, dentre elas aquela parcela de europeus professantes do judaísmo, preferiu calar-se acerca dos crimes que seus compatriotas cometiam na Palestina justamente para não precisarem falar de seus crimes. Em troca deste silêncio dos países europeus, os estrangeiros euro-judeus que massacravam na Palestina também silenciariam para sempre quanto aos crimes que sofreram em seus países de origem, basicamente europeus.
Temos então que o mundo permitiu, por incontáveis razões, dentre elas esta indicada por Pappé, permitir que a Palestina fosse riscada do mapa para que nascesse algo inédito na história humana, um estado estritamente “puro”, tendo por base um credo religioso, o judaísmo. É até incrível que isto tenha acontecido, posto que, sem necessitarmos de muita profundidade teórica, podemos afirmar que estes euro-judeus realizaram na Palestina o que a Alemanha nazista pretendeu realizar e fracassou.
Entretanto, se isto é verdade, somando-se à conduta dos EUA, de manter seu veto às tentativas de condenar os crimes de Israel no Conselho de Segurança da ONU, por outro lado há mais um problema, ainda que pareça recente, muito grave à realização dos objetivos nacionais palestinos: sua divisão. E a solução deste problema só depende dos palestinos, por mais complexas que sejam – ou pareçam – as questões e visões para a Palestina que distingam as forças políticas e sociais no que respeita à resistência à ocupação israelense.
O quadro atual na Palestina, que se arrasta desde ao menos 2007 em sua forma mais grave, praticamente parte em dois o povo palestino: um enclausurado em Gaza, sob uma tentativa de governo liderado pelo Hamas, e outro, não menos enclausurado, embora as aparências enganem, na chamada Cisjordânia, com sua sede administrativa em Ramallah e liderado por Al-Fatah, a maior força política no seio da OLP – Organização para a Libertação da Palestina.
Duas forças políticas terem visões distintas nem de longe é o problema, até mesmo porque é o que as distingue como tais, isto é, como duas unidades políticas separadas. É assim em todas as democracias, em que distintas forças políticas disputam o poder político. O anormal e inaceitável é isso levar a que o povo palestino seja dividido em dois, o que é ainda mais grave diante da ocupação israelense, única beneficiária de fato desta divisão, que não permite aos palestinos uma reação conjunta, organizada, com todas as suas capacidades política, diplomática, social.
Esta ausência de coesão tem confundido a população palestina ao ponto de esta acusar a situação de ser a responsável pelo avanço da ocupação, e mesmo levando a um fenômeno ainda mais grave: o desencanto de parcelas do povo, especialmente da juventude, com a própria ideia de resistência, abandonando as discussões políticas e se apegando ao que de pior pode haver, seguir ONGs que despolitizam o debate.
Não bastasse, a divisão fratricida palestina confunde a opinião pública mundial, e mesmo a da Comunidade Internacional – os países, suas organizações multilaterais e bilaterais, os organismos regionais – que se questionam acerca de como contribuir se nem os palestinos se entendem. Esta perplexidade também tem contaminado as diásporas palestinas no mundo, inclusive as imobilizando e fragilizando, quando não as dividindo nos mesmos moldes fratricidas reinantes na própria Palestina, não raro permitindo que narrativas absolutamente inconsistentes se afirmem.
E este quadro tem permitido, também, algo ainda mais grave: que as forças políticas palestinas fiquem reféns de outros interesses que não os palestinos. Diante da necessidade de algum apoio internacional para suas posições, não raro estas forças, ou parte delas, se entregam aos interesses de potências estrangeiras, algumas regionais, em troca de apoio político e material. Haver aliados estrangeiros não é um problema; ao contrário, é uma virtude. Entretanto, isso é perigoso quando as potências patrocinadoras querem realizar os seus interesses às custas do sacrifício dos interesses legítimos do povo palestino.
Usar o povo palestino para a realização de outras agendas ocultas poderá levar ao sepultamento da causa palestina. A ousadia de Trump e Netanyahu de anunciarem o malfadado “Negócio do Século”, por exemplo, e em seu rastro a publicamente anunciada anexação de mais territórios palestinos, só se dá porque a Palestina, dividida, não tem estratégia comum para enfrentar estas ameaças.
E, de outro lado, os regimes da região mais açodados pela normalização plena com o regime de Israel aceitam qualquer arranjo que se pareça com uma “solução ao “conflito’”.
E, claro, Israel é o principal beneficiário deste quadro. De um lado, mantém Gaza sitiada, no que de fato é um experimento de ocupação à distância, que agora busca implementar onde mais lhe interessa, na Cisjordânia, em que os cerca de 80 enclaves palestinos isolados por assentamentos judeus e forças de ocupação serão verdadeiras mini-Gazas. Para manter Gaza sitiada o discurso é de criminalização do Hamas, tal qual já fez desde sempre contra todas as forças e lideranças palestinas, aí cnotando-se a OLP e Yasser Arafat, este acusado de “terrorista” até seu assassinato por envenenamento.
Aliás, a criminalização da OLP voltou à tona, especialmente porque esta recusou todos os arranjos que ameaçou retirar dos palestinos o direito ao seu estado soberano, desde as chamadas Conversações Multilaterais de Madri, em 1991, até o atual “Negócio do Século”, passando por Camp David (2000) e Annapolis (2004), todos arranjos basicamente cópias do que tenta impor agora Trump.
De outro diz ao mundo que os palestinos não são capazes de se autogovernarem, que não têm um plano de paz, que não há interlocutores, isto é, com quem “negociar”. Afinal, com qual “parte” da Palestina Israel conversaria? Só com este argumento Israel desmoraliza o lado palestino. E a própria Comunidade Internacional pode questionar com quais palestinos fará locução!
Mas prece haver luz no final do túnel e esta apareceu na quinta-feira, com as declarações conjuntas de lideranças de Al-Fatah e Hamas, as forças políticas mais relevantes no atual quadro palestino.
Frente aos planos de Trump e Netanyahu, Jibril Rajub, secretário geral de Al-Fatah, afirmou que serão “implementados todos os mecanismos para garantir a unidade nacional”. De acordo com Rajub, “hoje (quinta-feira, 2), declaramos um acordo com Hamas para confrontar o plano de anexação e o ‘Negócio do Século’”.
Falando pelo Hamas desde Beirute (Líbano), Saleh al-Aruri, chefe adjunto de seu escritório político, assegurou que a decisão é pelo “consenso nacional” e que a oportunidade deve “iniciar uma nova etapa”. E afirmou, ainda, que as duas formações políticas liderarão juntas a batalha sob a bandeira palestina para “conquistar um estado palestino independente e soberano nas fronteiras de 1967 e resolver o problema dos refugiados com base nas resoluções internacionais”.
Caso isto se afirme e a Palestina se unifique, o maior temor de Israel, seu verdadeiro pesadelo, terá se dado. A ocupação sempre apostou na fragmentação da resistência palestina e usufruiu disto. Isto era verdadeiro quando Israel buscava fragilizar a OLP apoiando outras vozes palestinas, mas se tornou especialmente grave de 2007 em diante.
E a unidade nacional palestina também impõe ao mundo, especialmente ao chamado mundo árabe, uma nova realidade, frente à qual não poderão seguir os esquemas de aproveitamento da Questão Palestina para aplacarem suas agendas internas, ou mesmo para as realizações de seus planos geopolíticos na região, nos quais a Palestina é apenas um pedaço de terra para implantação de um porto, de uma base militar ou apenas de um projeto econômico em que os palestinos serão mão-de-obra, qualificada ou não, e os “investidores” lucrarão dinheiro e prestígio de “mecenas da paz”.
Os palestinos de todo o mundo clamamos desde sempre pela unidade palestina e comemoramos o presente anúncio. A unidade nacional é nossa maior “arma”. Se todos somos palestinos, todos devemos ser igualmente libertados. O adversário, hoje também claramente inimigo da humanidade, é comum e sua situação frente às opiniões pública e da Comunidade Internacional nunca foi tão frágil. O regime de ocupação só voltará a ganhar terreno se lhe renovarmos o presente da nossa divisão. Cremos que isto não ocorrerá.
*Ualid Rabah é presidente da FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil
—